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Poemas | Kátia Bandeira de Mello

POEMAS

 

(sem título)

 

Nasceram em 1968 as bonecas
transplantes de anjos perdidos
há perguntas vagando entre nossos rostos
olhos imediatos nascidos em 1968
ano envernizado, de lábios cheios
de sorrisos irônicos, lacônicos
esferas no ar, lágrimas alcalinas
lágrimas do tersol, aperte as contas
do terço entre os rostos nossos
orações pequenas enraizadas
nas paredes de vida crescente
melhor não haverem nascido
no quarto cirúrgico obscuro
estes olhos imediatos ainda
pediram que nascêssemos vezes
repetidas com lentes de fracasso azul
as nossas mortes envelhecendo desde 1968
sem jamais contar a história aquosa
dos prantos contidos entre nossos rostos

Entre nossos rostos há um mundo de subserviência

Eu choraria se fosse eu,
se eu fosse eu choraria
sem parar numa efusão quase alegre
se fosse quem deita sobre o chão de papelão
alguém brincasse comigo,
espiasse a cavidade bucal
e logo ali se derramasse um leite sonoro
eu não sendo eu, o rosto não me pertencendo,
a boca gemendo, a boca sozinha
a gritar no meio de 1968, o endereço numérico
onde se firmaram as poses daqueles senhores
árvores nobres, vegetais ameaçadoramente rápidos, 

uns versos e lagartos no cruzamento.

Houve engano entre os nossos rostos
quando o poeta me fez crer que eu era eu,
que a realidade tomava a forma dos sinos
que se dobravam por quem?
detrás da imensa porta de entrada
a convite do sujeito não amoroso,
faminto por bolas amassadas de papel,
frias, frias como a neve da cidadela encerrada,
andei descalça e desfigurada.

 

 

Sarabande

 

I

Quando os versos do espírito se ausentarem,

o que farás em um novembro tardio

frente ao acasalamento das tuas sombras mais fiéis,

ao modus do Senhor Eliot?

Será que encherás a tua xícara de açúcar mascavo até a colher 

empertigar-se por virtudes femininas e esperarás

pelo dia ao meio, o derramamento do café,

os líquidos foscos e rubros como as finalidades da vida,

adoçando o teu sangue para contornar as curvas 

glicêmicas, sob os impulsos da tinta explosiva,

exultando a fuga exitosa de cães assustados 

pelos fogos de artifício, cotovias estridentes,

a luta do Escorpião contra o Sol, enquanto,

as palavras nômades atormentassem as articulações 

de memórias, os fósseis aflitos dos meus, dos teus 

ossos. Enredado pelos anéis saturninos de latão, 

cerca farpada de uma cidadela desfeita, 

o amor dissolve-se. 

 

II

A esperança ao cruzar as colinas de metais ligeiros, 

retalhou-nos, afiando-se, desafiando os semblantes

a dançar a zarabanda, rodopios no fugato 

Foi quando avancei na direção do cruel pressentimento.

O resíduo de tudo conduzido por micropartículas 

extremas, cataclisma de pequenas ruínas, 

humanos e singelos acenos mais a tua recusa, o poente 

a cismar no fundo do horizonte, despedimo-nos 

através da amplidão, os voos angulosos de corações, 

magníficos testículos quentes, espectros quase mortais. 

Atrasaram-se, as possidônias, instalando-se no tempo secreto 

da música do maestro libidinoso em catarse científica. 

Bastou a pausa do som para a dor brilhar.

 

III

Arrastam-se pela porcelana as mãos, os cânticos 

de anjos genitais em preces estelares, dentro

de uma xícara, o sopro viril a exalar provocações barrocas

da Lua encapuzada de ave racional, a escala de notas e cores 

entreamores/entretramas/entre glaciais vulcânicos.

Manuseei os dedos delicados de um deus visionário,

tateei rosto tronco asas bicos e a cauda do animal

ardendo em pelo no réquiem da zarabanda,

censurada e licenciosa, encoberta pelo desejo; 

a Lua ainda submissa aos golpes que o mar dava, 

fundindo-se aos cascalhos, vegetando prateada e resiliente, 

por ora, o mar deixava vingar as embarcações,

estriando o céu surpreso, os órgãos lavrados em parcos 

areais retilíneos. Desacostumados, os corpos, os nossos 

dançantes, negaram ao bastão do cello de Bach 

que regesse a suíte abandonada, soltando-se 

em arquipélagos sobre folhas vegetais, cancros ou ilhas, 

moldes que o amor colado aos ossos toma para si 

na inutilidade de um novembro tardio, um estrondo, 

um sussurro, o café para degustar l’après-midi.

 

 

(sem título)

 

o que dizer dos homens que dormem de costas,
sonham, eles, ao reverso
dão hóstias às mulheres que amam
mutilam-se para um altar
de anjos e santos extraviados.
quantos exércitos formariam esses homens do decúbito ventral
velam por suas sombras que esmagam o peso, 

o peso, logo a dor, atirando-os sobre o colchão, crucificados.
acendamos um fósforo em homenagem a eles:
comportam-se como se tivessem um dedo preso à porta.
um dia um deles sussurrou uma prece diáfana e confessou: 

durmo de costas, com a cabeça sobre a mão e não temas mais.

 

 

(sem título)

 

Dê-lhe sepultura,
e um ponto na frase.
Ces petits cadeaux
dispostos na vitrine,
Paris 1968 so-le-tra-do,
a voz de Belmondo era quem
aparava os seus fios de cabelo,
acertava a desordem, um abalo
atemporal na cabeça a chacoalhar
tal qual ave pós-chuva/pós-guerra
ou o cão pós-diluviano sob plenilúnio,
a voz seguia cortando intervalos,
as hortênsias suscitando azar,
os corpos de poetas que não sabiam nadar, 

boiando no Sena como os guarda-chuvas de Cherbourg.

 

Há dias que lembram filmes.

 

 

(sem título)

 

Ontem dizíamos
como é simples
a bondade,
enquanto o Esquilo roubava as nozes ao Cardeal Vermelho, rubro como o sangue de Cristo.

A bondade é simples mas não se estica a ponto de cobrir a língua, dois rios, um caminho, uma estrada entre amorosos irreconhecíveis.

Nada tão fácil como confundir a lentidão da serpente com a bondade do vagar de um poeta na areias da Normandia.

 

 

Fotografia de Kátia Bandeira de Mello

Kátia Bandeira de Mello  é uma escritora, poeta e artista visual, nascida no Rio de Janeiro e radicada nos Estados Unidos desde 1998. Graduou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law. Possui publicações em várias revistas internacionais e é também curadora da Revista Philos. Seu livro de poesias “Baleias, Bromélias e Outras Naturezas” foi lançado pela Editora Gato Bravo em Lisboa, julho de 2022. Neste mesmo ano, publicou seu quinto livro de ficção “A Patafísica do Quadrado, um romance na rota das galochas” e “Caderno de Artista” ambos pela editora Confraria do Vento, Brasil. Convidada frequente em universidades americanas e europeias, assim como festivais internacionais de literatura.





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