

passam os últimos minutos
e passam silenciosos e sombrios
passam os últimos rouxinóis
e passam afónicos e aflitos
passa uma orquestra estoirada
mais as horas com passo apressado
e ainda a ventania dos quintais
mais as beatas dos cigarros
passa um velho abrigado à sombra
e uma criança que vem da folia
passam as uvas do pomar
e o casal da mercearia
com
apressado passo
passa o poeta da sílaba ardida
e o músico com uma flauta em chamas
passam o frio e o temporal
mais as flores que enfeitaram o dia
passa a pressa
passa o vagar
passam o tempo e a pausa
passam os namorados enlaçados
e ainda os que já não se enlaçam
passam cestos com beijos
e um ramo de rosas abatido
mais os copos roubados ao jantar
passam as garrafas esganiçadas
e as frases derrotadas
passa a espera
e os tambores gelados
passa um rio em lágrimas
e outro rio em lágrimas passa
passa uma cascata de ruídos
mais um barco estilhaçado
passa um pescador com passo lento
e também uma oração vencida
passa a notícia amparada pelo jornal
e passam todas as palavras condenadas
passa o silêncio num tabuleiro
de sons desfeitos
e ainda o tempo e os cheiros
e também as cores combalidas
e os sabores consumidos
numa taça de romãs a arder
passa o riso de um pássaro migrante
e também o choro ofegante
de uma árvore
passa uma mulher abraçada a uma janela
mais um homem com o telhado aos ombros
passa um circo sem palhaço
e também uma roda
passa a última carruagem
dum comboio alucinado
passa uma urgência pregada no peito
duma flor estoirada
passam uma praça e passa um jardim
e ainda um campo imenso
de gerberas brancas
passa uma guerra cabisbaixa
e também uma paz comovida
passa uma religião
passa outra religião
e ainda uma língua ao lado de outra língua
agarradas a uma Constituição
passam tratados
passam leis
e também uma Declaração amarrotada
passa um manto de gente
com a emoção em cinzas
passa a ardilosa razão
e os soluços de uma confissão de amor
passa moribunda a confissão de amor
passa ela e passa ele
vem a noite
e eles continuam a passar
rompe o dia
e eles ainda passam
e trazem novos alfabetos
passa a esperança
passa a vida
e ao longe no mar um navio passa
e passa tão longe o mar desse navio
e de repente
passa um passo de encontro ao navio
e de repente
outro passo passa
de encontro ao mesmo navio
e também o caminho e a correria
e passo eu e passas tu
e corremos a caminho do navio
e passas comigo
e tudo levamos nos passos
e passas comigo
e tudo fica
e tudo fica
***
ALMEIDA, Ângela (2018). «ciclo das horas III». caligrafia dos pássaros. Lisboa: Colibri, 50-55.


Fotografia de Ângela de Almeida
Ângela de Almeida é uma poeta e investigadora portuguesa, natural da cidade da Horta. Doutorada em Literatura Portuguesa, é autora de Natália Correia, um compromisso com a humanidade – ensaio sobre a obra édita e inédita (2019), Natália Correia, A simbólica da ilha e do Pentecostalismo (2018), estudos introdutórios à obra daquela autora. No domínio da poesia, publicou sobre o rosto (1989), manifesto (2005), a oriente (2006), caligrafia dos pássaros (2018), estado de emergência (2020, em co-autoria com Henrique Levy). Escreveu a narrativa poética o baile das luas (1993) e dois livros de viagem. Colabora com revistas e participa regularmente em colóquios e outros encontros literários.