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Ciclo das horas III | Ângela de Almeida

passam os últimos minutos

e passam silenciosos e sombrios

 

passam os últimos rouxinóis

e passam afónicos e aflitos

 

passa uma orquestra estoirada

mais as horas com passo apressado

 

e ainda a ventania dos quintais

mais as beatas dos cigarros

 

passa um velho abrigado à sombra

e uma criança que vem da folia

 

passam as uvas do pomar

e o casal da mercearia

com

apressado passo

 

passa o poeta da sílaba ardida

e o músico com uma flauta em chamas

 

passam o frio e o temporal

mais as flores que enfeitaram o dia

 

passa a pressa

passa o vagar

 

passam o tempo e a pausa

passam os namorados enlaçados

 

e ainda os que já não se enlaçam

 

passam cestos com beijos

e um ramo de rosas abatido

mais os copos roubados ao jantar

 

passam as garrafas esganiçadas

e as frases derrotadas

 

passa a espera

e os tambores gelados

 

passa um rio em lágrimas

e outro rio em lágrimas passa

 

passa uma cascata de ruídos

mais um barco estilhaçado

 

passa um pescador com passo lento

e também uma oração vencida

 

passa a notícia amparada pelo jornal

e passam todas as palavras condenadas

 

passa o silêncio num tabuleiro

de sons desfeitos

e ainda o tempo e os cheiros

e também as cores combalidas

e os sabores consumidos

numa taça de romãs a arder

 

passa o riso de um pássaro migrante

e também o choro ofegante

de uma árvore

 

passa uma mulher abraçada a uma janela

mais um homem com o telhado aos ombros

 

passa um circo sem palhaço

e também uma roda

 

passa a última carruagem

dum comboio alucinado

 

passa uma urgência pregada no peito

duma flor estoirada

 

passam uma praça e passa um jardim

e ainda um campo imenso

de gerberas brancas

 

passa uma guerra cabisbaixa

e também uma paz comovida

 

passa uma religião

 

passa outra religião

e ainda uma língua ao lado de outra língua

agarradas a uma Constituição

 

passam tratados

passam leis

 

e também uma Declaração amarrotada

 

passa um manto de gente

com a emoção em cinzas

 

passa a ardilosa razão

e os soluços de uma confissão de amor

 

passa moribunda a confissão de amor

 

passa ela e passa ele

 

vem a noite

e eles continuam a passar

 

rompe o dia

e eles ainda passam

e trazem novos alfabetos

 

passa a esperança

 

passa a vida

 

e ao longe no mar um navio passa

e passa tão longe o mar desse navio

 

e de repente

passa um passo de encontro ao navio

 

e de repente

outro passo passa

 

de encontro ao mesmo navio

e também o caminho e a correria

e passo eu e passas tu

e corremos a caminho do navio

 

e passas comigo

e tudo levamos nos passos

 

e passas comigo

e tudo fica

 

e tudo fica

 

***

 

ALMEIDA, Ângela (2018). «ciclo das horas III». caligrafia dos pássaros. Lisboa: Colibri, 50-55.

 

Fotografia de Ângela de Almeida

 Ângela de Almeida é uma poeta e investigadora portuguesa, natural da cidade da Horta. Doutorada em Literatura Portuguesa, é autora de Natália Correia, um compromisso com a humanidade – ensaio sobre a obra édita e inédita (2019), Natália Correia, A simbólica da ilha e do Pentecostalismo (2018), estudos introdutórios à obra daquela autora. No domínio da poesia, publicou sobre o rosto (1989), manifesto (2005), a oriente (2006), caligrafia dos pássaros (2018), estado de emergência (2020, em co-autoria com Henrique Levy). Escreveu a narrativa poética o baile das luas (1993) e dois livros de viagem. Colabora com revistas e participa regularmente em colóquios e outros encontros literários.

 

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