Entrevista

Entrevista a João Morgado | Faysal Rouchdi

ENTREVISTA A JOÃO MORGADO

 

Entrevistador: Faysal Rouchdi

 

Quando abordamos a história da humanidade, importa referir Portugal que “deu novos mundos ao mundo”1 através da sua expansão marítima dos séculos XV e XVI, dando o primeiro passo para a “globalização”: explorou e deu a conhecer a costa africana, a partir de 1415; chegou ao Oriente em 1498, quando Vasco da Gama cruzou o Oceano Índico até às Índias; aportou “oficialmente” na América do Sul em 1500, quando Pedro Álvares Cabral pisou as terras de Vera Cruz, hoje, Brasil; e Fernão de Magalhães foi o responsável da primeira viagem à volta do mundo (embora já ao serviço de Espanha). 

 

Nesta minha entrevista, quero questionar João Morgado sobre a história de Portugal e a sua interação com o mundo árabe. Ele é autor de vários romances biográficos sobre grandes navegadores e pode dar uma visão sobre o papel do seu país.

  • Quando foi constituído o país, hoje conhecido como Portugal?

 

Somos um reino independente desde o séc. XII e temos as fonteiras políticas mais antigas da Europa. Nestas terras habitaram os iberos, os fenícios, os cartagineses, os celtas, os romanos, os chamados povos germânicos, e também os muçulmanos – que aqui permaneceram durante sete séculos. 

 

A nossa história começa com a criação do pequeno Condado de Portucale – de onde surge o nome do nosso país (Fígura 1). Era um território dependente do Reino de Leão e Castela (Espanha), mas após a batalha de Ourique, 1140, Afonso Henriques passa a utilizar o título de Rei dos portugueses, soberania que será reconhecida oficialmente no Tratado de Zamora, 1143, que reconhece a soberania portuguesa. As actuais fronteiras só ficarão definidas em 1297, após a conquista das terras do sul da Península. Referir que, nessa época, as comunidades muçulmanas do Algarbe Alandalus eram tão fortes que o historiador Alexandre Herculano escreveu: «comparada com Lisboa, Silves era muito mais forte, e em opulência e sumptuosidade de edifícios dez vezes mais notável2 Uma cultura que ainda hoje está muito presente entre nós.

 

  • Quais foram os motivos dos portugueses para descobrirem o mundo?

 

Basta olhar para o mapa… eramos um reino “cercado” por Castela (Espanha), com quem tínhamos guerras constantes. Só nos restava o mar, essa grande fronteira para o desconhecido… A expansão marítima surge como solução para crescer e fortalecer o reino. Tudo começou com a conquista de Ceuta, em 1415, que permitiu controlar a entrada no Mediterrâneo e a exploração da costa africana. A cultura náutica de que Portugal dispunha foi fundamental, pois permitiu deixar a navegação por cabotagem – sem perder a costa de vista, e avançar no mar alto. Em Portugal, os livros de história falam muito da motivação religiosa – a expansão da fé cristã, mas foi marcadamente uma expansão política e económica. 

  • Em 1498, Vasco da Gama fez uma viagem marítima para a Índia. A maior parte dos árabes diz que Vasco da Gama foi influenciado pelos conhecimentos avançados do árabe chamado Ahmed ibn Majid. Qual é a sua opinião?

 

O desconhecimento do Índico – dos seus ventos, marés, moções -, levou ao recurso de gente local. Contudo, o piloto que ajudou Vasco da Gama era um guzarate (indiano) de que se desconhece o nome. Nada oficial nos leva até Ahmed ibn Majid, e nem a cronologia3 da sua vida aponta nesse sentido. Mas isso não retira a importância da enorme influência árabe no conhecimento científico da Europa, e de Portugal em particular. São inúmeros os estudiosos árabes que, pelo seu pioneirismo, ajudaram a consolidar os cálculos matemáticos para os estudos da astrologia e da cartografia. Até mesmo para a construção e estabilização de barcos, que é um ponto menos referido…

 

  • Porque os portugueses ocuparam o Golfo Arábico?

 

Quando Constantinopla foi tomada pelos turcos, em 1453, o comércio da Europa cristã sofreu um rude golpe. As famosas especiarias das Índias chegavam a preços exorbitantes. Os indianos cultivavam as especiarias, mas eram os árabes que as vendiam para o resto do mundo (pois os indianos consideravam impuro andar no mar). Foi isso que motivou os portugueses a transporem o continente africano e chegarem até ao Oriente. Poderiam comprar especiarias sem intermediários e conseguirem lucros fantásticos. Assim, numa primeira fase, os portugueses chegaram ao Oriente como… mercadores. Mas esta ousadia colocava em causa o controlo do comércio por parte da comunidade árabe, pelo que esta logo se mostrou hostil aos navegadores portugueses. Tanto Vasco da Gama como, mais tarde, Pedro Álvares Cabral, foram atacados. Portugal optou então por uma estratégia militar. Na altura tinha os mais ágeis barcos de guerra, os canhões mais potentes, poderia assim proteger os barcos comerciais. Comprou uma guerra no outro lado do mundo. Mais tarde, Afonso de Albuquerque avançou para uma estratégia de ‘mare clausum’, construindo uma cadeia de fortalezas estratégicas que fechavam todas as passagens navais no Mar Arábico, dentro do Índico — controlando o Mar Vermelho e o Golfo Pérsico. Foi um controlo armado para Portugal desenvolver a sua política imperial nas Índias…

  • A imagem de Afonso de Albuquerque é uma imagem negativa na história árabe. Mas, na história portuguesa, é diferente, é outra coisa. Pode descrever a imagem de Afonso de Albuquerque?

 

Para os portugueses, foi um líder, um homem poderoso, um génio militar. Foi considerado “O Grande”, o “César do Oriente”, o “Leão dos Mares”. Foi honrado na epopeia d’Os Lusíadas, de Luiz de Camões. Acredito que a grande família árabe tenha dele uma imagem negativa. Mas importa dizer algo, Albuquerque era tão terrível no combate ao inimigo, como era depois diplomata e justo com as populações sob o domínio português. Muitas vezes, lutando contra as injustiças e imoralidades da própria nobreza portuguesa, o que lhe valeu grandes ódios e inimigos junto do rei D. Manuel I. Na hora da sua morte, é-lhe atribuída a frase: “Mal com el-rei por amor dos homens, mal com os homens por amor de el-rei.” Teve mais indígenas no seu funeral que portugueses, o que diz da sua justiça… O rei chegou a tirar-lhe o cargo de Vice-rei das Índias… e a partir daí, perdemos o controlo dos territórios. Quando lhe devolveu o cargo, já tinha falecido. Temos de o enquadrar no seu tempo, mas espero que os árabes o recordem com o respeito que merece um temível adversário, um grande guerreiro, mas também um grande diplomata, e um homem de uma grande estatura moral…

 

  • Quais foram as batalhas entre os mouros e os portugueses no Golfo Arábico?

 

Portugal fez conquistas estratégicas para travar a navegação de armadas muçulmanas e impedir o escoar de mercadorias preciosas para o Mediterrâneo. Tudo começou com a conquista de Ormuz, em 1507, onde construiu, mais tarde, o forte de Nossa Senhora da Conceição (De que ainda existem ruínas). (Figura: Ormus” (Braun e Hogenberg. “Civitates Orbis Terrarum”, 1572). Quando perdeu esta praça, ainda assegurou o domínio de algumas fortalezas na entrada do golfo Pérsico, como as de Mascate, que se mantiveram entre 1588 e 1650, e as de Curiate, Matara, Sibo, Borca, Soar, Corfação, Quelba, Mada, Libédia e Doba. Com alianças de um lado e de outro, com praças conquistadas e praças perdidas, os portugueses mantiveram algum controlo das costas do Golfo Pérsico até à reconquista de Ormuz, pelo xá Abbas I. Mas a história é mais que datas, locais e batalhas. Creio que devemos concentrar-nos no que de positivo restou. Gostaria que o ensino falasse mais do longo período de convivência entre muçulmanos e cristãos, e como se prosperou na cultura e na ciência.

 

Ormus” (Braun e Hogenberg. “Civitates Orbis Terrarum”, 1572

  • Conhece esta região do Golfo Pérsico?

 

Infelizmente, não. Nos meus livros falo destas paragens, mas não as conheço pessoalmente. Estive no Dubai apenas um dia, de passagem para a China. Olho para a História com grande respeito. Portugal recebeu uma grande herança deixada pelo domínio muçulmano e que devia ser valorizada. Sabem que temos mais de 19 mil palavras e expressões em português com origem árabe? E também gostaria de visitar estas regiões para falar de Portugal. Para transmitir à grande família árabe que é, hoje, um país pacífico e acolhedor, um país conciliador na Geoestratégia mundial. Quem sabe, um dia faço o trajecto do meu conterrâneo, Pêro da Covilhã.

  • Quem foi Pêro da Covilhã? Qual foi o seu papel no mundo árabe?

 

Pêro era um jovem humilde, não se lhe conhece família, pelo que é conhecido pelo nome da terra onde nasceu – Covilhã. Foi um agente secreto do rei D. João II, uma espécie de James Bond do séc. XV. Esteve como escudeiro ao serviço de um nobre castelhano e aprendeu a língua árabe. 

 

Em 1487, já ao serviço do rei de Portugal, Pêro da Covilhã partiu para a costa oriental de África com a missão de achar a terra da canela e da pimenta, e a melhor forma de lá chegar; apurar se o Índico se ligava ao Atlântico permitindo uma rota marítima; e ainda descobrir o reino do Preste João, um mítico rei cristão do Oriente, que muito poderia ajudar os portugueses naquela parte do mundo. Disfarçado de mercador, foi até Barcelona, seguiu para Nápoles, para a ilha de Rodes, no mar Egeu, Alexandria e depois Cairo, no Egipto, depois Áden, no Mar Roxo, seguindo até Suez, e mais tarde Calecut, nas Índias. Depois seguiu para Sofala e mais tarde para a Abissínia, actual Etiópia, que se julgava ser o tal reino cristão – era afinal um povo a necessitar de ajuda. Aí ficou, transmitindo os seus muitos conhecimentos. Depois da muita informação que mandou para Portugal, ali viveu uma vida calma, onde o foi encontrar um missionário cristão português, rodeado de muitas mulheres e filhos. Uma verdadeira aventura… dava um filme!

  • Qual foi a relação entre o povo dos Emirados Árabes Unidos e os portugueses nesta época?

 

Não tenho muita informação…

 

Notas

 

1 Novos mundos ao mundo irão mostrando”, In: “Os Lusíadas”, Canto II : 113.

 

2 SARAIVA, José Hermano (1986). “O tempo e a alma”. Segundo Volume, p.45. Editora: Resopal, Lisboa.

 

3 Majid era um xiita do Najd que terá aprendido técnicas de navegação em Omã, mas estava retirado desde 1495, vivendo então na Arábia. Foi o autor de um guia marítimo em 866 A.H.

 

 

Fotografia de João Morgado

 

Fotografia de Faysal Rouchdi

 

Faysal Rouchdi é tradutor do Árabe-Português, Mestre em Literatura Comparada e Doutorando em Literatura Portuguesa pela Université Mohammed-V Agdal. Escreve, mensalmente, artigos sobre Literatura Lusófona na revista de arte e cultura Turath, publicada nos Emirados Árabes Unidos.




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