Poesia & Conto

Seis poemas | Maurício Vieira

Sede

 

diante deste poço que água não me deu
quando por ele passei sedento
por algo de concentrado, poção, concedo
posso ter passado demasiado cedo
na boca portando um quebranto seco
‘desta água não beberei’
que feito pedra, ao passo que a fonte
afunda, concêntrico reverbera

 

passei cedendo à sede, mas de esguelha fitei
as concêntricas pedras excedentes da terra
invertida torre, no fundo sentinela
o sol secando sua boca silente que talvez
também como a minha sede tivesse
e se pôs em lembrança recorrente
para que certo dia portando sede diversa
me concedesse algo do fontanário inverso

 

mas caso assim tampouco fosse
por ter passado demasiado tarde
ou em outra fonte a sede matado
antes cedo que tarde eu possa
ceder aquilo que deste-me poço, este passe
que em cada um reverbera com a forma
não de sua fala, mas de sua sede
feito água de poço, que concentra e eleva.

as mãos vazias

        alguém que nada

aparta com as mãos a água

          mas ela o conduz

pelas mãos       vazias     para se darem

      quem nada                       bate palmas

como       a dizer         ‘ô de casa’

        agora   repare

parece           acenar a alguém                   que parte

    ou livrar-se                 de uma pedra

mas não     da forma gravada na palma

desenha                            no gesto         a palavra

                    que lhe escapa

        esculpe           seu entorno

tateia     o escuro         da palavra

      observe   agora

num       gesto         grandíssimo

  levanta as mãos                  aos braços atadas

como   quem ergue cajado

                  mas fecham-se os mares 

as estrelas                                 se afastam

as mãos                           se esvaziam                    para se darem

  ao enunciado                         da água

           que                                   o colhe     em suas palmas

 

 

Travessia

                                                          traduttore, traditore

Não sei por que cargas d’água construíste esta barca 

pra transportar pelo corpo que corre por onde vives 

a mesma jaca que levei de canoa pelo corpo que cursa 

minha terra, na lua cheia alta maré fluindo lenta, a água clara, 

nas margens as luzes das casas, vento sudeste, céu estrelado. 

Juntaste tábuas das tuas matas, de fibra, veios e nós 

distintos da tora grossa da qual talhei minha peça oca,

e em ritmo próprio da tua mão, pesada de mania e tradição,

fixaste a boca e o calado, martelando os pregos da tua arte.

Lá vai você largando a margem, num dia nublado na maré

baixa em água turva corrente rápida vento nordeste ondas

batendo ríspidas no casco, neste afluente que com o meu

partilha tão só a mágoa de não ser corpo muito influente

banhando as cartas de meio mundo. Consolo teu, a barca

autônoma não entra água. A travessia é até cênica:

um monte ao fundo, a mata ao lado. O passageiro

está mareado, será das ondas, será da jaca?

Agora a margem oposta se materializa,

Translado feito, missão cumprida.

Assoviando, desces da barca,

traidor, com uma melancia.

 

flor               esta

 

f  l  o  r  e  s  t  a

 

f _  _  r  e  s  t  a

 

_ l  _  _  e  s _  a

 

_ _ _  r   e  _ t  a

 

_ _ _  r   e  s  t  a

 

_ _ _  _  e  s  t  a

 

f  l  o  r _  _  _ _

 

_ _ o  r  _  _  t  a

 

_ _ o  r  e  _  _  _

 

Antropomorfismo

vivo sum, nihil vivi a me alienum puto

a planta não tem coração –os doutos dizem que não há

e nós os animais possuímos o órgão vital

que abre     fecha     bate    rebate    resiste

onde arde paixão ódio e gastrite

onde se alojam—insistem outros doutos, 

as emoções

regedoras da razão que obedece

razões que com frequência desconhece,

materializando, 

do pulsar da bomba incontida,

por vezes contendo estilhaço de gelo,

a fogueira o abrigo o deus do medo

mapas e espadas do desejo de grandeza

o cigarro e o raio-X do desespero

o carro o acelerador e o atropelo

o mestre povo estabelece—o adágio nele impera

o lotação é igual a músculo ensanguentado de mãe

João não tem esse órgão pois que nega esmola

mas o caridoso o tem grande volumoso de sobra

resta ao louco suspeitar em alecrim jasmim fruta 

cânhamo coca ayahuasca papoula lótus cicuta 

carvalho amargoseira sobreiro sansão do campo

quinino aspirina erva-doce espinheira santa  

figueira salgueiro manjericão limoeiro

batata arroz milho sorgo trigo

lírio jacinto rosa narciso orquídea estrume

atmosfera o verde tábua da casa lenha do lume 

 coração que se esconde algures

 

por assim dizer às cegas

we remain unuttered, undefined (Derek Walcott)

 

árvore que não se vê
nem de longe ou de perto
não se reconhece na composição
de ramos e folhas que oscilam
ao vento na face do rio
e no entanto ar e água conhece

 

não vê líquen, musgo, vírus, fungo,
formiga, abelha, onça, urso,
uirapuru, esquilo, aranha, 
mas a quem não há corpo estranho

 

que não se enxerga, e sem ter conhecimento
ensina elevação no durar e no porte 
nos arranjos de forma cor e textura esboça beleza e estética,
em flor broto e fruto humilde lição

 

será a árvore aparato sensorial dos elementos
ou, agindo por assim dizer às cegas,
uma transformação que revela outro sentido,
manifestando o sentir de luz, ar, água e terra?

 

Fotografia de Maurício Vieira. Autor da foto: Daniel Mordzinski

 

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