Poesia & Conto

Poema XI | Henrique Dória

POEMA XI

 

Os mortos não vêm o sangue
Dos vivos
Nem as suas chagas
Ou as suas centelhas
Da pele e da alma.

 

Para os mortos os vivos
São só
O longo frio da noite
A carne que se irá desfazer
Em sombra
Debaixo da erva.

 

Deviam colocar estrelas
Nos olhos dos mortos
Para que eles vissem os vivos
A luz a sair-lhes do corpo
Com os corações famintos
A luz erguendo-se do cesto
E da amassadeira
Com a paz e o prodígio
O sinal e a maravilha.

 

Eles são a grande escuridão
Que não logra encontrar-se
Com outros corpos
Não procuram as portas
Nem entram nem saem
Não contemplam o mar pelas janelas
Nem a árvore na encosta
Nem o cavalo verde na montanha.

 

Não partem nem regressam
Esqueceram a seda e o perfume
O espelho e a delicadeza
E encerram-se nas estações.

 

Apenas se encontram na memória
E descansam em lugar nenhum.
Eles são os véus dos templos
Pesados e taciturnos.

 

Deuses estrelas onde estais deuses
Que não vindes ao seu encontro
Para os ressuscitar?
Onde estais deuses que vos alimentais
Dos mortos
Que roeis as veias sedentas dos vivos
E ergueis as suas vísceras
Como triunfos?

 

As vossas facas estão cheias de sangue
O tempo que vós sois
Está cheio de sangue.
Fugis dos mortos que são o vosso espelho
Escondeis-vos dos vivos
Entre nuvens de cinza
Invisíveis
De vós só se vêm
As luvas vermelhas.

 

Mas nós sabemos que de gelo são
Os vossos olhos glaucos
Que para vós as vidas dos homens
Não valem
A extremidade de um galho.
Terríveis impassíveis
Aportais às ilhas dos mortos
Às sombras dos cedros.
Não morais na terra nem no céu
Apenas nas lápides
Infinitamente mortas
Porque não acordaste nos nossos leitos
Nas manhãs de verão
Tão tonitruantes
Tão impérios que sois.

 

Deuses vós sois os grandes mortos.
Ah! deixai-nos
Deixai-nos!

 

Vós alimentais-vos dos mortos
Eles são a vossa ambrósia
Vós sois o fogo e o enxofre
Vós sois o suspiro dos mortos.

 

Ah! deixai-nos
Deixai-nos!
Nós saberemos estar sós.

 

HENRIQUE DÓRIA

 

Fotografia de Henrique Dória

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.




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