Cultura

GONÇALVES DIAS: ETNOCÍDIOS E RESISTÊNCIAS | Rossini Corrêa

Foto de Czapp Botond na Unsplash

Edição Comemorativa do Bicentenário
do nascimento de Antônio Gonçalves Dias, lançada

                                                                 em 10 de agosto de 2023.

“Nem era preciso que Horácio o tivesse escrito para sabermos que procurando os pintores assuntos para as suas composições, onde o encontram, que não somente nas crônicas timbradas pela crítica, o efeito do belo os dispensa da prova de verdade.”

Gonçalves Dias

“Não me parece fora de propósito entrar nesta questão preliminar, da qual se tem deduzido argumentos – argumentos que parecem de tanto maior peso, quanto invocam em seu apoio nomes ilustres ou conhecidos, e como que se baseiam na autoridade respeitável da ciência.”

Gonçalves Dias

“É tão inconsistente este argumento, que o mesmo é expô-lo que destruí-lo.”

Gonçalves Dias

Para Natache, elo,
filhos – Anna Raphaela,
Rossini Júnior e Sasha
Corrêa –, e os netos –
Murilo e Eduardo Rossini –,
em nome do Amor.

Raça, racismo ou racialismo e antipatia nacional, encadeados entre si, constituem nuances de um único, mas complexo fenômeno, presente, individual e coletivamente, na história da humanidade. Vertical, horizontal e transversal em sua ancestralidade, o racismo perpassou, precária a consciência moral, tempo e espaço, reivindicando para a sua reiterada manifestação, como testemunho da durabilidade do mal, a eternidade. Muito mais doutrina da cegueira do espírito em conjugação com a animalidade dos instintos, do que qualquer razoável filosofia, o racismo reifica e celebra como se superiores fossem, caracteres raciais efetivos ou imaginários, reivindicando seja a unidade endógena seja a supremacia exógena. Tanto quanto a expressão racial, a palavra racismo é proveniente, em sua raiz semântica, de raça: em italiano, razza e no latim, ratio, a exprimir, como registrou Kabengele Munanga, “sorte, categoria, espécie.”1 Compreende-se, de maneira subjacente, a natureza ideológica da mensagem proposta, a sugerir fortuna, distinção e hierarquia superior sobre os demais.

 

Dois nexos frasais precisam ser chamados à colação. O primeiro: “Este término no puede tener más exactud ou validez científica que el término raza dentro de un contexto determinado,”2 Este termo não pode ter mais exatidão ou validade científica que o termo raça dentro de um contexto determinado. O segundo: “Como denominación de una filosofía o programa carece de precisión,”3 Como denominação de uma filosofia ou programa carece de precisão. O verbete é racismo. No referente à palavra racial, o editor Henry Pratt Fairchild a relacionou, vinculada a raça e a racismo, a antipatia, conflito, diferenças, prejuízo, relações e sentimentos raciais.4 De onde a antipatia racial, em que a percepção de semelhanças (Nós) e diferenças (Eles), detona sentimentos e atitudes, em extrema amplidão, em consequência de caracteres de raça, por suposto. Eis a sua definição: antipatia racial. “Sentimiento de desvio, que va desde la indiferencia al antagonismo, producido por la constituición racial de dos o más indivíduos o grupos diferentes”5, Sentimento de desvio, que vai desde a indiferença até o antagonismo, produzido pela constituição racial de dois ou mais indivíduos ou grupos diferentes. A fronteira restou definida: da indiferença ao antagonismo, a antipatia racial é uma relação, cuja bilateralidade pressupõe um Ego (Eu) referencial empoderado econômica, social e politicamente, contraposto a um Alter (Outro), vulnerável, exposto e passível de ser exterminado. Kabengele Munanga consignou o critério artificial de classificação racial segundo o grau de concentração de melanina: pouca, a definir o branco; mais, a configurar o amarelo; e muita, a conceituar o negro, para caminhar até uma só e inafastável conclusão: “Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não existem.”6 É que o patrimônio genético diferenciado não constitui raças e, muito menos, autoriza a sua hierarquia, conformando-as em superiores e em inferiores, crença que reclamou para si, a partir da Europa colonialista sob a ascensão desigualitária, cêntrica e periférica, do modo de produção capitalista, com vocação globalizante, articulada com economias coloniais, neocoloniais, terceiro-mundistas, subdesenvolvidas e globalizadas. Kabengele Munanga, neste sentido, secundou a Claude Lévi-Strauss, o qual embargou a retirada de consequências psicológicas diferenciadoras, ancoradas em estratificações biológicas sustentadas em crenças pseudamente abrigadas nos albergues da ciência: “Quando procuramos caracterizar as raças biológicas mediante propriedades psicológicas particulares, afastamo-nos da verdade cientifica, quer a definamos de uma maneira positiva quer de uma maneira negativa.”7 Registre-se, neste particular, a ressalva do filósofo e antropólogo belga-francês, de que, para o Conde Arthur de Gobineau, a percepção racionalista, de substância qualitativa, era dirigida, à sombra de supostos “valores absolutos”8, hauridos na “desigualdade das raças humanas”9, em hipotéticas “aptidões particulares,”10 ameaçadas pela degenerescência, “a atingir toda a humanidade, condenada sem distinção de raça a uma mestiçagem cada vez mais desenvolvida”11. Era a apologia ao embargo, à interdição e à paralisia, condenatória de interações e de diálogos interétnicos, fundamentados na força atrativa da cromoinversão.

 

Assiste razão a Kabengele Munanga, quando impugna Carl von Linné e Jean-Baptiste-Pierre-Antoine de Monet, chevalier de Lamark, por considerar as suas classificações botânicas e zoológicas inempregáveis à espécie humana12, coisa em que Charles Darwin, na essência, acreditava, inspirando o racismo e a eugenia contidos no chamado darwinismo social. Não parece razoável, entretanto, a ênfase concedida por Kabengele Munanga aos mundos medieval e moderno, o primeiro, a conectar raça à comum ancestralidade, guardando a descendência e concertando a linhagem por seus caracteres diferenciadores e o segundo, no propósito classificatório de François Bernier, a estratificar, por meio de contrastes físicos, grupos raciais13. De onde o embate na França, entre os séculos XVI e XVII, a dissociar a elite dos Francos, de procedência germânica e a massa dos Gauleses, de origem celta e dominados pelos romanos14. No antagonismo em questão já se vislumbravam as reivindicações de pureza, as pretensões de superioridade, o chamamento, para si, de valorosos caracteres psicológicos e a construção multirretórica de justificativas para o exercício da dominação15 estrutural – econômica, social, jurídica, política e ideológica.

 

Se tudo traduzido da narrativa em epígrafe tem veracidade, o fio condutor é muito pretérito e remete para a noite primeira, em muito antecedente à era axial, toda recente, de Karl Jaspers, cabível de 800 a 200 a.C. E retroage, sim, aos tempos das hordas, bandos, clãs e tribos e seu sentido endógeno, circunscrito e concentracionário, desafiado pela aparição e pelo encontro de outras gentes – se gentes fossem para os outros de si mesmos -, aqueles seres, famílias, grupos, povos, enfim, populações exógenas e diversas, perante as quais explodiu o ânimo da disputa, da rejeição e da exclusão, segundo a arte da guerra16. O sítio de pouso, elemento vital de sobrevivência, contendo água, frutos, arbustos, caça e pesca era somente um e os pretendentes grupais a controlá-lo, dois, ou mais, diversos, afinal, pacificados na ordem interna e, agora, belicosos na fronteira externa, pelo instinto coletivo de sobrevivência perante o outro de cada um, a despertar as energias atávicas e inconscientes, desafiadas e estremecidas pelos abalos sísmicos da surpresa, do inusitado e do terror cósmico dos horizontes próximos e remotos, sob a legenda do ignoto: incógnito, ignorado, desconhecido.17

 

Foi quando, no berço da civilização ocidental, os atenienses tornaram-se senhores do mar e do comércio, recorrendo a todos os extremos procedimentos, para suplantar as torpezas reinantes no mundo do poder militar, econômico e político. O Porto do Pireu foi símbolo da fortuna de Atenas. Tucídides noticiou a constituição da frota de Minos, conquistador, em grande medida, do Mar Helênico e colonizador das Ilhas Cícladas, de onde expulsou os cários, nelas instaurando como governadores a seus filhos, em notório familismo e varrendo do mar, ou o tentando, a pirataria de que lançara mão, “para receber com maior segurança os tributos que lhe eram devidos”18. Sem rebuços, Tucídides confessou que os helenos, buscando vantagens peculiares, passaram a agir como os bárbaros, conquistando e saqueando cidades desservidas de muralhas, tudo pilhando, segundo o costume ancestral que, glorificando a este e àquele, não era objeto de censura19. Sucede, contudo, ter Tucídides assinalado a mudança de qualidade dos atenienses, os quais, uma vez enriquecidos e empoderados, depuseram as armas e passaram a viver e a conviver segundo novos usos e costumes, hábitos e procedimentos: “Os atenienses, todavia, estavam entre os primeiros a desfazer-se de suas armas e, adotando um modo de vida mais ameno, mudar para uma existência mais refinada.”20 Estabeleceu-se em Atenas a Cidade-Estado, passando os citadinos a existir sob a ordem jurídica (Lei) e de acordo com o poder político (Rei).

 

Reivindicaram os atenienses para si a condição de civilizados, atribuindo aos outros a condição de bárbaros, por viverem sem Lei (a Ordem Jurídica) nem Rei (o Poder Político), sem organizarem a Cidade-Estado. Tucídides não apenas exemplificou, mas também ressaltou: “Ainda hoje entre alguns bárbaros (especialmente na Ásia, onde há prêmios para a luta e o pugilismo), os competidores usam esses panos de quadris. É possível demonstrar que os helenos antigos tinham muitos outros costumes semelhantes aos dos bárbaros atuais.”21 E sob a consigna de bárbaros, os gregos inscreveram também os romanos, já decadentes aqueles e ascendentes estes, os quais, a caminho da conquista da hegemonia, advinda das guerras púnicas, com a destruição de Cartago e do controle do Mar Mediterrâneo, portavam antigo mito de fundação. Neste sólido romance do imaginário, a tribo do quirites, povo do rio, à beira do Tigre, seria descendente de uma raça cósmica de deuses que aportara na Terra e depois partira, deixando como testemunho de sua passagem exatamente a si, os lanceiros fundadores de Roma e de sua cidadania, decerto nascida para reinar sobre as demais gentes de origem puramente humana, fossem da Península Itálica, fossem do resto do mundo, próximas ou remotas.22 À sua maneira, reivindicaram as romanos a pretensão de superioridade dos gregos, renovando a divisão do direito em público e em privado e, quanto a este, reservando para si, sobretudo, o quiritário, a princípio, inaplicável às gentes, até o Édito de Caracala, de 212 d.C.

 

Lustrar a origem romana, muitas vezes, de maneira conscienciosa ou inconscienciosa, será o esforço subjacente ao discurso histórico de Dionísio de Halicarnaso, Tito Lívio, Plutarco, Plínio, o velho, Políbio e Estrabão, entres outros.23 Sublinhe-se, neste particular, que a pretensão de superioridade quase nunca esteve dissociada de uma origem mítica, do acúmulo de força, do poderio militar, da riqueza econômica e da supremacia política, suprida a rusticidade cultural, como fizeram os romanos frente aos gregos, especialmente, junto aos atenienses, com a aquisição de todos os seus símbolos de refinamento, das estátuas aos deuses, dos manuscritos aos artistas, até que o momento da educação chegasse e Marco Túlio Cícero disciplinasse o latim, criasse o seu vocabulário filosófico e fundasse o humanismo latino, um continente de cultura relacionado, porém, distinto do grego.24 De qualquer maneira, o outro, sobre o qual, inferiorizado, a dominação foi exercida, foi diminuído em termos de origem, de caracteres étnicos, de usos e costumes, de atribuídos traços psicológicos e, no mínimo, de elementos linguísticos. Enfim, do racismo, antigo como a espécie humana, desde o instante em que, no primeiro dia, Ego (Eu) e Alter (Outro) se encontraram, em seu estranhamento, a revelar a existência da fronteira ainda intransponível, à falta da ponte a conjugar a única metáfora cabível para a unidade na diversidade: a do universo da raça humana.25

 

No mundo medieval, as expedições, preliminarmente, religiosas e militares, denominadas Cruzadas, tinham profundas conotações econômicas e políticas, justificadas, do Ocidente contra o Oriente, pelas consignas de embates entre cristãos e gentios, em um consórcio de interesses entre a Igreja, os Príncipes e os Mercadores, sob o pretexto de libertar Jerusalém do domínio islâmico, resgatar o Santo Graal e demais relíquias do cristianismo antes cristico do que institucional. As Cruzadas perpassaram os séculos XI a XIII e, atribuindo ao Alter (o Islâmico) a condição de infiel e de herético, representaram a reafirmação de um Ego (o Cristão), referenciado como portador da única verdade possível, configurando aquilo definido, na atualidade, não apenas como ausência de sentimento ecumênico, mas como efetivo racismo religioso. Quando do Renascimento, hiato entre o feudalismo declinante e o capitalismo ascendente, com a projeção oceânica da Europa, na aurora do mundo moderno, o protagonismo de Portugal, nascido da unificação centralista promovida por Dom João, o Mestre de Avis, à luz do saber árabe e do capital judaico, a fomentar investimentos em ciência e em tecnologia, foi definitivo.

 

Terras antigas e novas foram alcançadas pelo gênio navegante lusitano, a promover encontros desiguais de civilizações na África mais próxima e na Ásia bem distante. Quanto à América, de desembarque posterior, não foi diferente, terminou tornada portuguesa, em consonância com as conquistas do Brasil e da Colônia do Sacramento, segundo as contingências das experiencias pretéritas vivenciadas em África e na Ásia, de Angola até Moçambique, quanto à primeira; da Índia ao Ceilão, do Japão à China, no que é tocante à segunda, sem o olvido de Fernão de Magalhães, o qual, de maneira quase concomitante, desembarcou, em 1521, nas Ilhas Marianas, na Oceania. O ciclo definidor do Pacto Colonial, com a necessária conexão com o mercantilismo, permitiu definir a natureza e o espirito da empresa portuguesa d’além mar, em busca do colonialismo de saque, com a riqueza, se possível, instantânea, fosse extrativista, agrícola e pecuária, fosse mineradora, desde que, por meio do monopólio metropolitano, chegasse aos centros comerciais internacionais, em Veneza, Roma, Gênova e Florença, na Itália; em Amsterdam, na Holanda; em Antuérpia, na Bélgica; e, entre outros, em Hamburgo, na Alemanha.

 

Os indígenas estavam na América havia pelo menos sessenta mil anos e, na sua Pindorama, talvez quarenta mil anos, ou seja, respectivamente, mais de seiscentos e mais de quatrocentos séculos. Com a conquista portuguesa, urgente passou a ser para o colonizador, desalojá-los da titularidade da terra, de que os povos originários eram possuidores, reduzindo o indigenato à escravidão, para que, de coletadores, passassem logo a ser produtores. É a crônica de sangue da resistência e do genocídio indígenas, de que o Maranhão foi um dos principais teatros, posto que o cálculo do Padre Antônio Vieira, ali vivido oito anos, entre 1652 e 1661, registrado por Sérgio Buarque de Holanda, era o de que, na altura, já estavam assassinados mais de dois milhões de ameríndios.26 Perceba-se que a vida colonial não havia chegado senão à metade, extinta somente em 1822, quando da partida do Imperador da Língua Portuguesa. Oficialmente escravos desde o advento do Brasil, os indígenas do Maranhão e Grão Pará foram legalmente libertados em 1755, mas permaneceram à mercê dos conflitos de religiosos e de fazendeiros, expostos de há muito à violência inaudita das oficiais entradas e das privadas bandeiras, de índole escravagista e finalidade mercantil, vendendo ameríndios que sequer consideravam seres humanos. Foi a bula papal promulgada em Roma, no ano da graça de 1537 d.C., pelo Papa Paulo III, intitulada Sublimis Dei – sobre a alma dos índios, que os reconheceu como seres racionais, logo, humanos, passiveis, portanto, de serem, por meio da catequese, levados à renúncia da sua cosmovisão e transformados em cristãos.

 

César Augusto Marques destacou no Maranhão as nações Tupinambás, Tapuias, Tabajaras, Tamarambeses, entre outras, expostas a epidemias de sarampo e de bexiga, bem como a produzir tudo e trabalhar como bestas de cargas, quer nas fazendas, quer nos diretórios, colocando-os os religiosos jesuítas a laborar “constantemente na lavoura, na pesca, na caça, na navegação, enfim em todos os misteres da vida”27, passando a preferir morrer ou fugir, seja de moradores, seja de missionários. João Francisco Lisboa, por sua vez, não vacilou em declarar qual era a região nevrálgica da calorosa questão: “Os índios, como ninguém ignora, foram um elemento perpétuo de agitação e discórdia para as colônias”28, a dividir padres e moradores, em conflitos a significar, na essência, “uma questão de influência e primazia, em que a liberdade dos índios era um objeto muito secundário, que a vitória fez esquecer inteiramente.”29 O biógrafo do Padre Antônio Vieira foi peremptório, ao declarar o índio “raça infeliz e oprimida”30, reduzida ao derramamento de “suor e sangue”31, testemunhando, enquanto edificavam “esses monumentos”32 religiosos, “em que estado deplorável se achavam as aldeias na época da expulsão dos jesuítas”33, os quais, esquecidos dos deveres religiosos, se entregaram a “especulações mercantis”34 e a “grandes escândalos”35, formando “a causa principal da sua rápida degeneração e decadência”36. Foram-se os religiosos e permaneceram as ambiguidades legais do Estado Metropolitano e o ânimo desabrido dos fazendeiros, agora sem o contraponto, às vezes autêntico, dos religiosos franciscanos e jesuítas, quando fiéis aos princípios espirituais da Esfera do Sagrado.

 

Imagine-se que o Governador do Maranhão, Gomes Freire de Andrade, não demorou a vociferar: “Sem a permissão de escravos nunca poderá este Estado ser nada, tendo aliás tanto com que ser grande”37. Referia-se o governante aos índios, que não estavam mais sós, entretanto, em seu infortúnio, pois de há muito a transumância africana, com o tráfico negreiro, desaguara no Brasil, tornando negros não somente os algodoais – da expressão de Caio Prado Júnior-, mas também os arrozais maranhenses, datando o tráfico escravista atlântico de 1510 e autorizados os portugueses, por meio da Bula Papal de Nicolau V, dirigida ao Rei Afonso, em 1452, a “invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos”38. E assim foi feito, séculos sobre séculos, para proveito de sobas e de régulos tribais dominantes sobre as etnias vencidas e submetidas à escravidão, dos colonizadores europeus, dos mercadores muçulmanos e judeus e, quando menos, dos empresários negreiros ingleses e dos fazendeiros da América do Norte, do Mar do Caribe e da América do Sul.39 Não ecoara devidamente no tempo histórico o pronunciamento de São Paulo, em Gálatas 3:28, da unidade da condição humana em Jesus Cristo, sem que existam judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Tornado um expressivo destino da diáspora africana no Brasil, o Maranhão, seguindo a regra geral do país em formação e em desdobramentos coloniais e nacionais, foi construído, enquanto civilização material, pelo parto com dor do trabalho escravo de índios e de negros, bem como de bugres, caboclos, mestiços, mulatos e cafuzos desvalidados, juntamente com homens e com mulheres brancos, pobres e livres, comprimidos pela ainda reinante mentalidade escravocrata.

 

Não por acaso, quando Raimundo José de Sousa Gaioso publicou o Mapa da População da Ribeira do Itapecuru dos Anos de 1803 a 1805, no seu livro-fonte sobre a lavoura do Maranhão, a massa escrava, de forma majoritária, confere voltas sobre voltas sobre o corpo civil, o clero secular, os agricultores, os comerciantes, os artistas, os barqueiros, os jornaleiros, os mendigos, as esposas e os filhos dos habitantes, somando, ao final, seis mil e seiscentos cativos e cinco mil cento e setenta e cinco cativas. Para o ano de 1805, o corpo civil não passava de quatro, o clero secular de dez, os agricultores de trezentos e seis, os negociantes de vinte e seis, os artistas de vinte e três, os barqueiros de dez, os jornaleiros de cento e setenta e quatro, os mendigos de quarenta e quatro, as mulheres dos habitantes de duzentos e noventa e cinco e seus filhos de mil e cinco almas, em uma população total de treze mil, seiscentos e setenta e dois habitantes, dos quais, submetidos e coisificados, onze mil, setecentos e setenta e cinco escravizados. Neste ambiente, múltiplas trocas interétnicas passaram a ser fecundadas, inclusive, de negros fugidos para as selvas com índias receptivas, valendo o raciocínio, ao reverso, para negras e índios também, advindo cafuzos e cafuzas em profusão, de que Vicência Mendes Ferreira, mãe do poeta Antônio Gonçalves Dias, filho do pai português João Manuel Gonçalves Dias, muito provavelmente, era acabado exemplo.

 

Ora, o poeta de “Canção do Exílio”, se se resgata somente para argumentar, a observação de Claude Lévi-Strauss sobre o Conde Arthur de Gobineau, para quem o desaire magno estaria na miscigenação degenerescente, por suposto, seria dela expressão duplicada, consequência de um branco (Português) e de uma mestiça de negra da terra (Índia) com negro da Guiné (Preto), ou, também cabível, o seu reverso, sabendo-se pouco sobre Vicência Mendes Ferreira. Contudo, implodindo as teorias racialistas, Gonçalves Dias tornou-se o erudito articulador de sustentáculos etno- gráficos para a tessitura do indianismo43, ao advogar a causa, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda – “Com exagero louvável, porque sincero” -, dos povos originários, ao declarar: “Eles foram o instrumento de quanto aqui se praticou de útil e grandioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os que deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido, e será coroado das nossas prosperidades o dia de sua inteira reabilitação.”44 Não pode ser olvidado o contexto histórico do agir concreto do poeta de “I-Juca Pirama”, da necessidade de afirmação da Independência do Brasil, ameaçada pelo ânimo recolonizador português, aliás, desde a Revolução Liberal do Porto, de 1820, antes mesmo da autonomia brasileira, de 1822, bem como da cristalizada pseudociência a dominar as mentalidades, estratificando, ao caracterizá-las, as reivindicadas quatro raças constituti- vas do Homo Sapiens de Carl Von Linné, a saber:

 

EUROPEU:     branco, sanguíneo, musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis, vesti do com roupas apertadas;

 

ASIÁTICO:      amarelo, melancólico, governado pela opinião e pelos preconceitos, vestido com roupas largas;

 

AFRICANO: negro, fleumático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus chefes (despotismo), com o corpo untado com óleo ou gordura, com mulher com vulva pendente, que fica com os seios flácidos e alongados ao amamentar;

 

e o AMERICANO: moreno, colérico, cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito, com corpo pintado.45

 

O discurso atributivo de Carl Von Linné, de natureza etnocêntrica, identifica em si, europeu que era nascido na Suécia, em 1707 e nela falecido, em 1778, todas as virtudes e em outrem, isto é, asiáticos, africanos e americanos, todos os vícios e todos os defeitos, inclusive, o do preconceito…, que emprestou ao asiático, preconceituosamente. Conhecedor em profundidade da matéria, por ser etnólogo, como bem demonstra o extraordinário livro Brasil e Oceania46, Gon- çalves Dias foi definido por Josué Montello como “uma personalidade goethiana,”47 síntese de artista, de cientista e de humanista, com a compreensão cultural de que, em tempos do Estado Nacional, o Estado – que no Brasil a antecedeu –, não marcharia sem o concurso de uma alma, um espírito, uma consciência, uma representação, afinal, um símbolo originário da brasilidade dela, a Nação a ser construída. De onde o índio ter ancorado em si o papel de eleição, chamado à colação para alicerçar e significar a imagem, a mítica, a evocação, a ideação, a enteléquia, o paradigma, em síntese, o Ser primeiro, ressonante e permanente de a Nação, gizando os possíveis caminhos do Estado, a seu serviço colocado, nesta histórica reivindicação.

 

Um dos intelectuais mais cultos do Brasil em todos os tempos, Antônio Gonçalves Dias conjugava, no seu universo de conhecimento, a antiga sabedoria e a ciência nova, navegando nas águas profundas da história, da arqueologia, da geografia, da cosmografia, da astronomia, da cartografia, da mineralogia, da demografia, da literatura, da etnologia, da sociologia, da política, da antropologia, do conhecimento da fauna e da flora, da filosofia, enfim, do humanismo, em suas ciências, artes e letras. O mínimo inventário das fontes gonçalvinas, sem pretensão de exaustão, perante o poliedro de diálogos estampados, por exemplo, em Brasil e Oceania, desvelará a sua intimidade, quanto à antiga sabedoria, com Homero, Sócrates, Platão, Aristóteles, Plutarco, Tácito, Tito Lívio, Licurgo, Heródoto, Hipócrates, Horácio, Teofrasto, Plínio, Pompeu, Tasso, Príamo, Pausânias, Panaxágoras, Justino e, entre muitos outros, Diodoro Sículo, sem o peca- do do olvido de Virgílio. Não será diferente quanto à ciência nova e à filosofia moderna, nas quais as fontes gonçalvinas, em semelhante, mas discreta exuberância, revelarão o seu convívio com Nicolau Maquiavel, Giovanni Boccaccio, Francis Bacon, Baruch Espinosa, Galileu Galilei, Isaac Newton, Michel de Montaigne, Jean-Jacques Rousseau, Johann Wolfgang von Goethe, Conde de Buffon, Celio Calcagnini, Visconde de Chateaubriand, Jacques-Bénigne Bossuet, Barão de Montesquieu, Ferdinand Denis, Moliére, Alexander von Humboldt, Hans Staden, Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, George Wilhelm Friedrich Hegel, Immanuel Kant, Voltaire e Giambattista Vico.

 

O manuseio, a voo de pássaro, das fontes referenciadas por Gonçalves Dias no erudito estudo Amazonas, apresentado em programa sugerido por Dom Pedro II, no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, basta para testemunhar a profundidade dos diálogos intelectuais por si estabelecidos com uma multiplicidade de saberes. Sem preocupação de ser exaustivo, no ensaio em questão desfilam antigos e modernos, do que são exemplos, vinculados a uma multiplicidade de saberes: Estrabão, Trogno Pompeu, Heródoto, Ctesias, Sílvio Enéias, Tasso, Teopompo, Apolônio, Virgílio, Canse- co, Atanásio Hircher, Homero, Horácio, Xenofonte, Quinto Cúrsio, Humboltd, Hipócrates, Jerônimo Mercuriali, Tertuliano, Palefatos, Aunio, Dionísio, Petit, Aenes Silvius, Alberto Krautz, Omalius, Buffon, D’Arcel, Seyfried, Brongneart, Raleigh, La Condamine, Plínio, Teofrasto, Bernardo de Sahugun, Pizarro, Orellana, Pay, Hakluyt, Gonzalves Oviedo, Padre Cristovão da Cunha, Nuno de Gusmán, Anville, Colombo, Geraldini, Pedro Martyr, Anghierri, Sampaio, Montesquieu, W. Irving, Robertson, Garcilaso de la Vega, Padre Manuel Rodrigues, Herrera, Zárate, Frei Gaspar de Carvajal, Léry, Southey, Ternaux, Ulrich Schimidt, Fray Pedro Simon, Cipriano Baraze, Brito Freire, Virey, Padre Gili Rienzi, Carli, Diodoro Sículo, Paus, Gomara, Padre Ives de Evreux, Ferdinand Denis, Maximiliano Newied e Azara. É o suficiente para demonstrar a amplitude de perspectiva gonçalvina, precursora do pensamento complexo, proposto como multidimensionalidade por Edgar Morin, ao final do século XX.

 

Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, George Wilhelm Friedrich Hegel e Immanuel Kant48, portanto, foram filósofos familiares a Antônio Gon- çalves Dias, que antecedeu, em seu germanismo, à Escola do Recife, liderada por Tobias Barreto. A ideia, o eterno, o ideal, o absoluto, a vontade, a moral, o realismo, a empiria, o direito natural, o direito positivo, o Estado, a Nação e o cosmopolitismo ali conversam entre si, por confluentes e por diferentes caminhos, e, bebendo a água corrente da fonte filosófica, pode o poeta nascido em Aldeias Altas, para quem o índio não era um personagem da razão pura, mas parte física e emocional de si, estando também à sua volta, discutir com propriedade o problema do caráter nacional. Eis o motivo por que, nas “Reflexões sobre os Anais Históricos do Maranhão por Bernardo Pereira de Berredo”, demarcando a territorialidade do seu pensamento, o escritor maranhense e brasileiro censurou o apologista do colonialismo português em termos reveladores, ao contrário, do projeto cultural de que era portador e protagonista:

 

  1. “Berredo era português, e só escrevia para portugueses: não escrevia a história do Maranhão, escrevia uma página das conquistas de Portugal: daí seu principal defeito”;49

 

  1. “Não é um verdadeiro historiador, é um simples cronista; não explica, expõe os fatos, enumera-os, classifica-os pelas datas, e julga que nada mais lhe resta a fazer. Justiça lhe seja feita: a exposição é quase sempre verdadeira, as numerações são exatas, as classificações são justas; mas falta-lhe a cor, o movimento, a vida”;50

 

  1. “Não é filosofia, é um simples literato: como literato estudou Tito Lívio e Tácito, estes grandes historiadores da Antiguidade, cujo estilo procurou com baldados esforços imitar… Quem quer que seja bom historiador deve ter uma destas duas coisas: ser político ou poeta… O historiador político resume todos os indivíduos em um só indivíduo coletivo… e tem por fim – a nação… O historiador poeta resume todas as nações em uma só nação… tem por fim – a humanidade… Berredo não era nem político, nem poeta”;51

 

  1. “O que é português é grande e nobre; o que é de índios é selvático e irracional; o que é de estrangeiros é infame. Assim nos índios só vê bárbaros, nos franceses piratas, os holandeses heréticos e sacrílegos: é tudo um misto de patriotismo exclusivo e de cego fanatismo, porque Berredo é o órgão dos colonos portugueses com todas as suas crenças, com todos os seus preconceitos, porque ele não enxerga senão o presente, não escuta senão o que diz o povo. Mas de tudo isto que é o que devemos pensar? Qual é a opinião do historiador? Eis o que não sabemos”;52 e

 

  1. “O primeiro de que havemos de tratar na história do Brasil é dos índios. Eles pertencem a esta terra como os seus rios, como os seus montes, e como as suas árvores; e porventura não foi sem motivo que Deus os constituiu tão distintos em índole e feições de todos os outros povos, como é distinto este clima de todo e qualquer outro clima do universo… Vede o que fizeram, e dizei se não há grandeza e magnanimidade nessa luta que sustentam há mais de três séculos, opondo a flecha à bala, e o tacape sem gume à espada de aço refinada”.53

 

Se Bernardo Pereira de Berredo e Castro era português, Antônio Gonçalves Dias queria não apenas ser, mas, em magistério fundacional, ensinar a ser brasileiro, escrevendo páginas de afirmação nacional. Pretendia o poeta maranhense ser um historiador verdadeiro, e não um simples cronista, fugindo das facilidades do literato, para sustentar os seus juízos nos alicerces e nas paragens da filosofia. E, como pensador, o escritor brasileiro pretendia ser um historiador político, a ter por fim a nação e um historiador poeta, a ter por fim a humanidade, livrando a própria interpretação histórica – tanto quanto possível -, de crenças e de preconceitos, opinando sobre cenários e não apenas inventariando fatos e datas, em uma rotina cartorária. Como potencial historiador e efetivo etnólogo, o intelectual brasileiro dignificou a condição do índio, por meio da sua trissecular resistência ao etnocídio de que foi vítima, lutando com flecha, tacape e insubmissa vontade de sobreviver, sem paridade de armas, a seu incessante genocídio. As incompreensões quanto ao sentido do labor criativo gonçalvino logo emergiram e, cristalizadas, se tornaram aparentes verdades, necessitadas de crítica e de ressignificação.

 

Ora, não havendo Gonçalves Dias inventado o indianismo literário, antecedido que foi, entre muitos outros, por Basílio da Gama e por Santa Rita Durão54, foi, reconhecidamente, o fundador da literatura americana, mudando, de maneira qualitativa, o seu estatuto estético. Os embargos de declaração opostos à poesia gonçalvina, de extremo a extremo, podem e devem ser recuperados. A começar pela manifestação de José de Alencar, reiterando – vaidade das vaidades, tudo é vaidade -, Bernardo Guimarães: “Gonçalves Dias é o poeta nacional por excelência… Entretanto, os selvagens do seu poema falam uma linguagem clássica, o que lhe foi censurado por outro poeta de grande estro, o Dr. Bernardo Guimarães: eles exprimem ideias próprias do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem no estado de natureza”55. E a continuar, de passagem, com o pronunciamento de Maria Celeste Ferreira: “Gonçalves Dias… O romantismo lá estava na predominância do sentimento, na abundância do subjetivismo, e, sob aspecto social, no erro – feliz culpa: – de tomar o índio pelo nosso antepassado e voltar-se para ele como os românticos europeus voltavam para a idade média”56. E a terminar com o pronunciamento do sábio Sérgio Buarque de Holanda: “Gonçalves Dias, com a publicação dos Primeiros Cantos, em 1846, inicia, no Brasil, a segunda fase do americanismo com o romantismo indianista… Gonçalves Dias é, na opinião de García Calderón, ‘o iniciador de uma literatura americana’… (José de Alencar e Gonçalves Dias): Intentaram poetizar uma raça cuja vida não tem poesia, exagerando sobremodo suas qualidades e atenuando seus defeitos”.57 O mais foi repetição.

 

A objeção de Bernardo Guimarães, reiterada por José de Alencar, com efeito, está sustentada em uma ignorância bestial das raízes da cultura maranhense e das circunstâncias pessoais de Gonçalves Dias. A cultura timbirense possui raízes clássicas, as quais restaram reveladas na fundação do humanismo nacional brasileiro, com Odorico Mendes, José Cândido de Moraes e Silva, Sotero dos Reis, João Lisboa, Cândido Mendes, Gomes de Souza, Antônio Henri- ques Leal, Cesar Augusto Marques, Luís Antônio Vieira da Silva, enfim, com o Grupo Maranhense. Quanto a Gonçalves Dias, por sua vez, era mestiço de índio e de negro com português, nascidos em uma província com aguda presença lusitana, a falar, de maneira castiça, a língua de Luís Camões e de Antônio Vieira, concluindo a sua educação em Portugal e dispondo de substantiva formação cultural clássica. É razoável ou estúpido pretender que, segundo as circunstâncias expostas, para fazer poesia indianista, o poeta Antônio Gonçalves Dias cantasse em língua de índio, louvável, mas restrita, e não a sua, muito embora a conhecesse, impedindo a sua comunicação nacional e internacional? A censura é desinteligente e equivale a censurar o cristianismo difundido por São Paulo em língua grega, nas Cartas Apostólicas, quando Jesus Cristo falava aramaico… De resto, buscando nos povos originários o fundamento étnico, cultural, ético e humano de uma nascente civilização brasileira, não era a melhor estratégia poética cantar os valores do indígena no estado de natureza, para aqueles construtores do estado social no Brasil, como inspiração includente e como compromisso comum de agir autonomista para a ética verticalidade? Parece que sim…

 

De mais a mais, não resiste à análise a desaprovação segundo a qual Gonçalves Dias buscara no índio um substitutivo artificial do homem medieval celebrado pelos românticos da Europa, tomando, absurdamente, o indígena como antepassado do brasileiro. Oh, céus!, quem é o antepassado do brasileiro senão o índio? E a sua celebração como raiz do Brasil não tem nenhuma, absolutamente, nenhuma conexão necessária com a atitude dos românticos europeus, de resgate do homem da idade média. Quanto à ponderação, não de Maria Celeste Ferreira, mas de Sérgio Buarque de Holanda, ainda que de um sábio, não merece prosperar, posto que endossa a colocação de José Veríssimo, censor da inspiração gonçalvina, ressalvada pela vontade de que os brasileiros adotassem o indígena como expressão de sua ancianidade, de seus antepassados, cercada então de glória e de heroicidade. Gonçalves Dias – ao contrário do que consignou o notável Darcy Ribeiro -,   é que está para o Brasil, assim como Sartre está para a França, Shakespeare para a Inglaterra, Cervantes para a Espanha, Dante para a Itália, Goethe para a Alemanha, Camões para Portugal, Tolstói e Dostoiesvski para a Rússia, Confúcio para a China, o hindu Buda para o Japão e Gandhi e Tagore para a Índia. Como o poeta de Os Timbiras poderia ser o fundador da alma nacional brasileira a partir de um índio sem vértebras, calhorda, melífluo, leniente, caviloso e deletério? A criação espiritual de uma nação é diferente da articulação de uma associação criminosa, que realiza o câmbio dos sinais dos vícios e dos valores, instituída por uma antimoralidade ou por uma contraexemplaridade…

 

Em Gonçalves Dias, enquanto artista do sentimento e da palavra, existiram em profusão a vida, a cor e o movimento faltosos em Bernardo Pereira de Berredo e Castro. E a todos o poeta de “Ainda uma Vez Adeus” emprestou a sua determinação de defender e de festejar o índio da insubmissa liberdade, posto a trabalhar como besta de carga, redimindo-o como fundamento da nacionalidade brasileira a ser construída. Não é minimamente cabível a cobrança de verdade empírica a um poeta, senhor da onírica fabulação do canto, a escrever versos, e não sociologia, com dever de testagem de hipóteses. Ponto. Como pode a crítica literária inteligente sucumbir à poesia cientifica de José Isidoro Martins Júnior, figura vibrátil, porém, na espécie, equivocada, da Escola do Recife? Antônio Gonçalves Dias, esse poeta total, lírico, épico e social, entregou à beleza e ao serviço a totalidade do seu canto.

 

De onde a presença gonçalvina na poesia lírica indígena, com a sensualidade esplendente de “Leito de Folhas Verdes”, em que emprestou o poeta a voz do desejo à mulher, cujo coração florido exala aromas doces do bogari, com a flor entreaberta do tamarindo que não quer jazer de espera por Jatir:

 

“Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja.

 

Eu, sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zelosa

Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores.

 

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Já solta o bogari mais doce aroma!

Como prece de amor, como estas preces, No silêncio da noite o bosque exala.

 

Brilha a lua no céu, brilham estrelas, Correm perfumes no correr da brisa, A cujo influxo mágico respira-se

Um quebranto de amor, melhor que a vida!

 

A flor que desabrocha ao romper d`alva Um só giro do sol, não mais, vegeta:

Eu sou aquela flor que espero ainda Doce raio do sol que me dê vida.

 

Sejam vales ou montes, lago ou terra, Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, Vai seguindo após ti meu pensamento; Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

 

Meus olhos outros olhos nunca viram, Não sentiram meus lábios outros lábios, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas A arazóia na cinta me apertaram

 

Do tamarindo a flor jaz entreaberta, Já solta o bogari mais doce aroma;

Também meu coração, como estas flores, Melhor perfume ao pé da noite exala!

 

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes

À voz do meu amor, que em vão te chama! Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil

A brisa da manhã sacuda as folhas!”58

 

Riqueza de criação gonçalvina configurada na poesia épica com dimensão dramática de “I-Juca Pirama”, que significa Aquele que Deve Morrer, constituindo a expressão rítmica magna da poesia brasileira, no momento em que adquire uma altitude de fusão dialética entre a forma e o conteúdo, permitindo colocar o canto americano junto às obras primas da poesia universal, quando da passagem relativa à maldição do guerreiro:

 

“Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és!

Possas tu, descendente maldito

De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés.

 

“Possas tu, isolado na terra,

Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz,

Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz!

 

“Não encontres doçura no dia,

Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar:

Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos,

Onde possas a fronte pousar.

 

“Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre,

Mais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tornem, Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas como asco e terror!

 

Sempre o céu, como um teto incendido, Creste e punja teus membros malditos

            E o oceano de pó denegrido

Seja a terra ao ignavo tupi!

Miserável, faminto, sedento,

Manitôs lhe não falem nos sonhos,

 E do horror os espectros medonhos

 Traga sempre o cobarde após si.

 

“Um amigo não tenhas piedoso

Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso

Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste,

Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és.59

 

A síntese hegeliana, como superação de tese e de antítese, depois do dramático movimento, tensionado pela evasiva do guerreiro, a suplicar clemência, preocupado com o velho pai e da atitude contrária do genitor, que prefere a morte do filho, à desonra de todos, investe o jovem combatente na determinação de resgatar o brilho perdido, para gáudio do seu ascendente:

 

Um velho Timbira, coberto de glória, Guardou a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi!

E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava,

Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!

 

“Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro

Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo; Parece que o vejo,

Que o tenho nest’hora diante de mi.

 

“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! Pois não, era um bravo;

Valente e brioso, como ele, não vi!

E à fé que vos digo: parece-me encanto Que quem chorou tanto,

Tivesse a coragem que tinha o Tupi!”

 

Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória

Do moço guerreiro, do velho Tupi.

E à noite nas tabas, se alguém duvidava

 Do que ele contava,

Tornava prudente: “Meninos, eu vi!”60

 

Gênio criador gonçalvino, exercitado com fino lavor literário, ao qual não faltou a percepção critica das circunstâncias, tanto mediatas, quanto imediatas, revestindo a poesia social de Os Timbiras, como já o fizera na Meditação, de 1846, da mais completa condenação do colonialismo nas Américas:

 

“Chame-lhe progresso

Quem do extermínio secular se ufana:

 Eu modesto cantor do povo extinto

Chorarei nos vastíssimos sepulcros,

Que vão do mar ao Andes, e do Prata

Ao largo e doce mar das Amazonas.

Ali me sentarei meditabundo

Em sítio, onde não oiçam meus ouvidos

Os sons frequentes d’europeus machados

 Por mãos de escravos Afros manejados: Nem veja as matas arrasar, e os troncos, Donde chorando a preciosa goma,

Resina virtuosa e grato incenso

A nossa incúria grande eterno asselam:

Em sítio onde os meus olhos não descubram Triste arremedo de longínquas terras.”61

 

Registre-se, no ensejo, que buscava Gonçalves Dias, com acuidade, aquilo chamado por Max Weber de exemplaridade e definido por Émile Durkheim como moralidade, para si, dois instrumentos pedagógicos de construção nacional. Todavia, como expressão de um espírito emancipacionista na sua globalidade, o artista e pensador maranhense ultrapassou a notável figura do teólogo e jurista de Salamanca e da Segunda Escolástica, Bartolomé de Las Casas, fundador dos direitos humanos modernos, que advogou, como quase ninguém, a defesa da causa indígena e consentiu, como quase todos, a escravidão africana, no que foi seguido pelo corifeu do barroco, Padre Antônio Vieira, o qual, no “Décimo Quarto Sermão do Rosário”, como se consolasse os irmãos pretos, comparou o seu padecimento laboral nos engenhos, ao sofrimento de Cristo na cruz, de que seriam louváveis imitadores. Gonçalves Dias a ambos defendeu; ao índio e ao negro, colocando-se em um patamar de consciência moral seguramente superior, a serviço da causa de todo homem e do homem todo, como autêntico emancipacionista, sem defender esse para discriminar aquele.

 

Neste sentido, a cultura maranhense foi incontrastável, nas vozes de Maria Firmina dos Reis, Trajano Galvão, Sousândrade, Joaquim Serra, Celso de Magalhães, Raimundo Côrrea, Catulo da Paixão Cearense… e Gonçalves Dias, a censurar o ríspido e desumano senhor de irada voz, o qual, no poema “ A Escrava”, quase tudo podia, menos impedi-la de morrer sonhando com a liberdade pretérita e eterna, a ser por todos conquistada:

 

“Oh! doce país de Congo, Doces terras d’além-mar! Oh! dias de sol formoso! Oh! noites d’almo luar!

 

Desertos de branca areia

De vasta, imensa extensão, Onde livre corre a mente, Livre bate o coração!

 

Onde a Ieda caravana

Rasga o caminho passando, Onde bem longe se escuta

As vozes que vão cantando! Onde longe inda se avista

 O turbante muçulmano,

O Iatagã recurvado,

Preso à cinta do Africano!

 

Onde o sol na areia ardente

Se espelha, como no mar;

Oh! doces terras de Congo, Doces terras d’além-mar!

 

Quando a noite sobre a terra Desenrolava o seu véu,

Quando sequer uma estrela

 Não se pintava no céu;

 

Quando só se ouvia o sopro De mansa brisa fagueira,

 Eu o aguardava — sentada Debaixo da bananeira.

 

Um rochedo ao pé se erguia, Dele à base uma corrente Despenhada sobre pedras, Murmurava docemente.

 

E ele às vezes me dizia:

  • “Minha Alsgá, não tenhas medo: Vem comigo, vem sentar-te

Sobre o cimo do rochedo.”

 

E eu respondia animosa:

  • “Irei contigo, onde fores!”

 E tremendo e palpitando

Me cingia aos meus amores.

 

Ele depois me tornava

Sobre o rochedo — sorrindo:

  • “As águas desta corrente Não vês como vão fugindo?

 

“Tão depressa corre a vida, Minha Alsgá; depois morrer

Só nos resta!… — Pois a vida Seja instantes de prazer.

 

“Os olhos em torno volves Espantados — Ah! também Arfa o teu peito ansiado!… Acaso temes alguém?

 

“Não receies de ser vista, Tudo agora jaz dormente; Minha voz mesmo se perde No fragor desta corrente.

 

“Minha Alsgá, por que estremeces? Por que me foges assim?

Não te partas, não me fujas, Que a vida me foge a mim!

 

“Outro beijo acaso temes, Expressão de amor ardente?

Quem o ouviu? — o som perdeu-se

 No fragor desta corrente.”

 

Assim praticando amigos

A aurora nos vinha achar! Oh! doces terras de Congo, Doces terras d’além-mar!

 

*********

 

Do ríspido Senhor a voz irada

 Rábida  soa,

Sem o pranto enxugar a triste escrava

 Pávida voa.

 

Mas era em mora por cismar na terra,

 Onde nascera,

Onde vivera tão ditosa, e onde

 Morrer devera!

 

Sofreu tormentos, porque tinha um peito, Qu’inda sentia;

Mísera escrava! no sofrer cruento, “Congo!” dizia.”62

 

Sublinhe-se, neste particular, que Gonçalves Dias foi antecedido na poesia indianista, a qual ressignificou, elevando-a à condição de fundamento espiritual da nacionalidade, enquanto foi antecedente a todos na musa abolicionista, com a virtude de ter tocado flauta doce, para proclamar cortantes verdades emancipacionistas, a serviço da liberdade, da beleza, da justiça e da solidariedade. Soube o poeta maranhense, brasileiro e americano, conjugar a subjetividade pessoal com a subjetividade pública, tornando-se um artista em dialogia ontológica com a necessidade nacional de tessitura de uma consciência coletiva e construtora de um espirito referencial para a nação em construção, de que foi o inigualável e inafastável fundador, à margem de toda e de qualquer conexão com o advento de um semióforo matricial produtor de uma sociedade autoritária, como pretendeu sugerir Marilena Chaui.63

 

Nada mais distante, em consequência, da literatura gonçalvina, do que conduzir a água para o moinho em que pudesse cimentar, unificando-a, a fratura da realidade fática brasileira, como (in)compreendeu o imbróglio Marilena Chaui: “Em suma, como dar à divisão econômica, social e política a forma de unidade indivisa? Pouco a pouco, a ideia de nação surgirá como solução dos problemas”.64 Neste particular, a contribuição gonçalvina ultrapassa também a (in)compreensão de Dante Moreira Leite, com as seguintes afi mativas:

 

  1. “Além disso, também em outro sentido o indianismo tinha conteúdo ideológico: o índio foi, no romantismo, uma imagem do passado e, portanto, não representava qualquer ameaça à ordem vigente, sobretudo à escrava tura”.65 E mais:

 

  1. “Os escritores, políticos e leitores identificavam-se com esse índio do passado, ao qual atribuíam virtudes e grandezas; o índio contemporâneo que, no século XIX como agora, se arrastava na miséria e na semiescravidão, não constituía um tema literário”.66 E ainda:

 

  1. “Finalmente, a ideia de que o índio não se adaptara à escravidão servia também para justificar a escravidão do negro, como se este vivesse feliz como escravo. Esta última suposição estava destinada a uma longa vida nas ideologias sobre o passado brasileiro e iria ser desenvolvida, já em pleno século XX, por Gilberto Freyre”.67 Só?

 

Como se não bastasse, Dante Moreira Leite, ao qualificar Gonçalves Dias como “o maior dos poetas indianistas”68, espargiu no ar a fumaça de que, na sua poesia, “são constantes e contínuas as imagens que sugerem a coragem, a liberdade, a união indissolúvel com a terra”69. O saudoso professor de Psicologia Social coloca Jonas na boca da baleia, colando ao raciocínio, sucessivamente, fragmentos de “O Canto do Guerreiro” (I) e de “Canção do Tamoio” (II). Ei-los:

 

I: “Aqui na floresta

 Dos ventos batida, Façanha de bravos

Não geram escravos, Que estimem a vida Sem guerras e lidas”.70

 

II.“As armas ensaia, Penetra na vida: Pesada ou querida

Viver é lutar.

                                      Se o duro combate 

                                                                 Os fracos abate,

Aos fortes, aos bravos, Só pode exaltar”.71

 

A obra de Gonçalves Dias é, por excelência, contramajoritária, sobretudo quanto ao índio e ao negro, a cujos etno cídios ofereceu profundas e sensíveis resistências. O indianismo gonçalvino, em termos hegelianos, foi infinitamente mais devenir do que devenido, em nada legitimando a escravidão negra e absolvendo a ordem estabelecida, no trabalho cativo sustentada. Muito menos é pertinente, quanto ao poeta de Os Timbiras, vislumbrá-lo como inventor de um índio idílico, retratado nas sombras do passado, quando, no já referido prefácio aos Anais Históricos do Maranhão, de Bernardo Pereira de Berredo, ao futuro dirigiu o desafio de reabilitação do indigenato, recorde-se: “Eles são o instrumento passivo de quanto aqui se praticou de útil ou de glorioso; são o princípio de todas as nossas coisas; são os que deram a base para o nosso caráter nacional, ainda mal desenvolvido e será a coroa da nossa prosperidade o dia de sua inteira reabilitação”72. O crítico do colonialismo escravista, que escreveu Meditação com menos de um quarto de século, aos vinte e três anos, jamais condenou a escravidão indígena para advogar a causa, aplaudindo-a em nome da felicidade, da escravidão africana, conforme atribuído, na parte final, a Gilberto Freyre. Quanto à ligação com a terra, como olvidar a sinonímia entre índio e terra? Aquele não existe sem essa. A coragem e a liberdade, presentes no indianismo gonçalvino, a bem da verdade, foram valores inscritos na paideia do homem nacional brasileiro em nascimento. Para interpretar Gonçalves Dias é preciso conhecê-lo.

 

Não parece razoável inventariar o poeta de “Canção do Exílio”, como cristão empurrado para a cova dos leões, na galeria dos alienados e dos ideológicos intelectuais orgânicos da ordem injusta, autoritária e escravagista, que contestou segundo a beleza, em verso e em prosa. A cruenta história social do Brasil encontrou no autor de “Ainda uma vez, Adeus”, esse pequeno gigante intimorato, um crítico quase sem paralelo, posto a serviço dos condenados da Terra, humilhados e ofendidos, excluídos e deserdados. As seguintes carmens de sangue, bem a propósito, não podem deixar de ser chamadas à colação:

 

  1. “Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao Inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis e vades ao Céu ?”;73

 

  1. “Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina: Factum est grande meracutum, ut Core pereunt filii ilius non perirent. Os filhos de Datã e Abirão pereceram com seus pais, porque seguiram com eles a mesma rebelião e cegueira; e outro tanto vos poderá suceder a vós. Pelo contrário os filhos de Coré, perecendo ele, salvaram-se, porque reconheceram, veneraram, e obedeceram a Deus: e esta é a singular felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso”;74

 

  1. “Deus e sua Mãe a anteviram com a aceitação e agrado que dela recebem, vos preferiram e antepuseram aos demais das vossas nações, e vos tiveram por dignos de benção que hoje gozais, tanto maior e melhor que a de Jacob, quanto vai da Terra ao Céu. Para que todos conheçais o motivo principal da vossa felicidade, e a obrigação em que ela vos tem posto de não faltar a Deus, e a sua Santíssima Mãe com este quotidiano tributo da vossa devoção”;75

 

  1. “Estou vendo porém que o vosso contínuo trabalho e exercício pode parecer ou servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que estais trabalhando de dia e de noite em um engenho, e que as tarefas multiplicadas umas sobre outras (que talvez entram e se penetram com os dias santos) vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário. Mas aqui entra o novo nascimento de Cristo segunda vez nascido no Calvário, para com seu divino exemplo e imitação refutar a fraqueza desta vossa desculpa, e vos ensinar como no meio do maior trabalho vos não haveis de esquecer da devoção de sua Mãe, pois o é também vossa, oferecendo-lhe ao menos alguma parte, quando comodamente não possa ser toda”;76 e

 

  1. “Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi, porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dous madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o ceptro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio”.77

 

As veias abertas em epígrafe não escorreram da pena de Gonçalves Dias, mas do também genial Padre Antônio Vieira, o Jesuíta do Rei e do Reino. Para o poeta de “Seus Olhos”, homem de finíssima sensibilidade, em cuja psique reinavam o sentimento de abandono e o inconsciente desejo de morte, o abraço vital com o destino do Brasil e dos brasileiros, com certeza, não permitiria vislumbrar qualquer felicidade nesse vale de lágrimas, edulcorado pelo Padre Antônio Vieira e por Gilberto Freyre. Homem de distinta fé, o poeta de Sextilhas de Frei Antão, sem dúvida, convergiria com o cristianismo crístico, místico, moral e ético do Santo Hélder Câmara, talvez a considerar blasfêmia a legitimação da escravidão preta, por meio da sua comparação com a Paixão de Cristo, quase uma armadilha nada ética, nada moral, nada mística e nada crística.

 

É da enumeração do ilustre escritor Joaquim Itapary, a evidência do pioneirismo de Gonçalves Dias – noticiado pelo cineasta Joaquim Haickel, que consigo conversara -, no combate à escravidão preta na literatura brasileira, em atitude de vanguarda, antecedente a Castro Alves em dezessete anos, antecipado o nascimento do poeta maranhense em trinta anos, quanto ao de José do Patrocínio e anteposta a publicação da Meditação gonçalvina, em trinta e sete anos, à edição de O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco. A catalogação é eloquente em si mesma, posto que, contra fatos, não há argumentos. Registre-se, por oportuno, que o poeta de “A Escrava” foi precursor da terceira geração romântica da literatura brasileira e do seu condoreirismo, primando o estro gonçalvino pela sonata penetrante e fugindo da gritaria aos ventos, em um domínio verbal e em uma artesania do verso sem concessões ao poema tribunício, ao canto grandiloquente e à retórica de comício, não com justiça denominada hugoanismo, para desmerecimento de Victor Hugo. Esse o Gonçalves Dias em processo de ressignificação, para superior e autêntico conhecimento,78 que existirá mesmo se, amanhã, não existir mais Brasil, por si fundado como nacionalidade a ser libertada de toda e de qualquer escravidão.

 

A hipotética superioridade sobre o índio e o negro foi justificada segundo o racialismo, que o senso comum denomina de ciência do século XIX, sem compreender tratar-se de pseudociência, fundada na ideologia, com certeza, de todos os tempos. Basta a recordação da recente emergência da sociobiologia de Edward O. Wilson, nos Estados Unidos79. No Brasil, mesmo Nina Rodrigues, pioneiro da medicina legal e realizador de pesquisas antropológicas empíricas, dela foi tributário, bem como Euclides da Cunha, Afonso Celso, Manoel Bonfim, Paulo Prado, Monteiro Lobato, Gustavo Barroso, Oliveira Viana, este, na plenitude do século XX e, por caminhos sinuosos, combatendo-a, porém, reinventando-a, em consonância com a sugerida doçura no relacionamento dos senhores com os escravos na sociedade açucareira, mítica gênese da morenidade, havida como expressão de uma metarraça, do país construtor da democracia racial, por si decantada, quando o sociólogo de Apipucos80 passou a existência versando sobre o mulato – o que pode ser estendido para todo o mestiço –, como um inadaptado. De todas as mistificações em epígrafe, Gonçalves Dias, decerto, constitui o mais eloquente desmentido, reitere-se, por ser, singularmente, aquele humanista brasileiro, que existirá mesmo se, amanhã, não existir mais Brasil, por si fundado como nacionalidade a ser libertada de toda e de qualquer escravidão.

REFERÊNCIAS

 

  1. MUNANGA, Kabengele Prof. Dr. “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”. In: www.geledes.org.br., p.1. Acesso em 22.05.2023.

 

  1. FAIRCHILD, Henry Pratt (Editor). Diccionario de sociologia. Fondo de Cultura Económica, Mexico- Buenos Aires, 1960, p.245.

 

  1. Id.Ibid., p. 245.

 

  1. Id.Ibid., p. 245.

 

  1. Id.Ibid., p.12.

 

  1. MUNANGA, Kabengele Prof. Dr. “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”. In:www.geledes.org.br., p.5. Acesso em 22.05.2023.

 

  1. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Editorial Presença, Lisboa, 2000, p.1.

 

  1. Id.Ibid., p.1.

 

  1. Id.Ibid., p.1.

 

  1. Id.Ibid., p.1.

 

  1. Id.Ibid., p.1.

 

  1. MUNANGA, Kabengele Prof. Dr. “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”. In: www.geledes.org.br, p.1. Acesso em 23.05.2023.

 

  1. Id.Ibid., p.1.

 

  1. Id.Ibid., p.1.

 

  1. Id.Ibid., p.1.


  1. CORRÊA, Rossini. Crítica da razão legal. Têmis contra Sofia. Brasília, OAB Conselho Federal, 2015, p.24 e ss.

 

  1. Id.Ibid., p.21 e ss.

 

  1. TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1982, p.20.

 

  1. Id.Ibid., p.21.

 

  1. Id.Ibid., p.21.

 

  1. Id.Ibid., p.21.

 

  1. Consultar a respeito. JHERING, Rudolf Von. O espírito do direito romano: nas diversas fases do seu desenvolvimento. Rio de Janeiro, Alba Editora, 1943, 4 v.,990p.

 

  1. Consultar a respeito YANGUAS, Narciso Santos. Textos para la história antigua de Roma. Madrid, Ediciones Cátedra, 1986, 190p.

 

  1. CORRÊA, Rossini. Saber direito: tratado de filosofia jurídica. Belo Horizonte, Editora Dialética, 2020. v.1, ps. 353 a 414.

 

  1. CORRÊA, Rossini. Crítica da razão legal: Têmis contra Sofia. Brasília, OAB Conselho Federal, 2014, p.21 e ss.

 

  1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Escritos coligidos: livro I – 1920- 1049. Marcos Costa (Organizador). São Paulo: Editora Unesp: Fundação Perseu Abramo, 2011, p.105.

 

  1. MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão. Rio de Janeiro, Cia. Editora Fon-Fon e Seleta, 1970, p.395.


  1. LISBOA, João Francisco. Crônica do Brasil colonial: apontamentos para a história do Maranhão. Petrópolis, Editora Vozes: Brasília, INL, 1976, p.383.

 

  1. Id.Ibid., p.383.

 

  1. Id.Ibid., p.383.

 

  1. Id.Ibid., p.384.

 

  1. Id.Ibid., p.384.

 

  1. Id.Ibid., p.384.

 

  1. Id.Ibid., p.384.

 

  1. Id.Ibid., p.384.

 

  1. Id.Ibid., p.384.

 

  1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Escritos coligidos: livro I – 1920 – 1949. Marcos Costa (Organizador). São Paulo: Editora Unesp: Fundação Perseu Abramo, 2011, p.115.

 

  1. AKPAN, Paula et alli. O livro da história negra. Rio de Janeiro, Globo Livros, 2021, p.118.

 

  1. Id.Ibid., p.121.

 

  1. GAIOSO, Raimundo José de Sousa. Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão. Rio de Janeiro, Editora Livros do Mundo Intei ro, 1980, p.164.

 

  1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Escritos coligidos: livro I – 1920- 1049. Marcos Costa (Organizador). São Paulo: Editora Unesp: Fundação Perseu Abramo, 2011, p.123.

 

  1. Id.Ibid., p.372.

 

  1. Id.Ibid., p.126.

 

  1. Id.Ibid., p.172.

 

  1. MUNANGA, Kabengele Prof. Dr. “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”. In: www.geledes.org.br., p 9. Acesso em 25.05.2023.

 

  1. Concultar a respeito. GONÇALVES DIAS. Brasil e Oceania. Fortaleza, Armazém da Cultura, 2013, 396p.

 

  1. MONTELLO, Josué. “Introdução”. In: Diário da viagem ao Rio Negro. Rio de Janeiro, Academia Brasilei- ra de Letras, 1997, p 9.

 

  1. HUISMAN, Denis. Dicionário de filósofos. São Paulo, Martins Fontes, 2001, os. 375 e ss., 552 e ss., e 885 e ss.

 

  1. GONÇALVES DIAS, A. Viagem pelo Rio Amazonas: cartas do mundus alter. Brasília, Senado Federal, 2011, p.24.

 

  1. Id.Ibid., p.25.

 

  1. Id.Ibid., p.25.

 

  1. Id.Ibid., p.26.

 

  1. Id.Ibid., p.29.

 

  1. Consultar a respeito HOLANDA, Sérgio Buarque de. Antologia dos poetas brasileiros da fase colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, 513 p.

 

  1. FERREIRA, Maria Celeste. O indianismo na literatura romântica brasileira. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1949, p. 337.

 

  1. Id.Ibid., p.345.

 

  1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra: estudos de crítica literária. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, v I, os. 39 e 40.


  1. Consultar a respeito GONÇALVES DIAS. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1998, p. 378.

 

  1. Id. Ibid., p.390.

 

  1. Id. Ibid., p.392.

 

  1. Id. Ibid., p.529.

 

  1. BUENO, Alexei (Organizador). A escravidão na poesia brasileira do século XVII ao XXI. Rio de Janeiro- São Paulo, Editora Record, 2022, p.100.

 

  1. CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2000, p.9 e ss.

 

  1. Id. Ibid., p.17.

 

  1. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1983, p.183.

 

  1. Id. Ibid., p.183.

 

  1. Id. Ibid., p.183.

 

  1. Id. Ibid., p.183.

 

  1. Id. Ibid., p.183.

 

  1. Id. Ibid., p.183.

 

  1. Id. Ibid., p.184.

 

  1. GONÇALVES DIAS, Viagem pelo Rio Amazonas: cartas do mundus alter. Brasília, Senado Federal, 2011, p.29.

 

  1. VIEIRA, Padre A. Sermões. Porto, Lello & Irmão – Editores, 1959, vs. X – XI – XII, p.301.

 

  1. Id. Ibid., p.301.

 

  1. Id. Ibid., p.303.

 

  1. Id. Ibid., p.304.

 

  1. Id. Ibid., p.306.

 

  1. Consultar a respeito CORRÊA, José Rossini Campos do Couto. Formação social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luís, Engenho, 2017, 620 p.:il.; CORRÊA, Rossini. Atenas brasileira: a cultura maranhense na civilização brasileira. Brasília – DF, Thesaurus Editora: Corrêa & Corrêa Editores, 2002, 380p.:il.; CORRÊA, Rossini. Romeu & Julieta no Brasil. Brasília – DF, Tagore Editora, 2018, 120 p:, CORRÊA, Rossini. Gonçalves Dias e Ferreira Gullar: destinos da poesia brasileira. Brasília – DF, Thesaurus Editora, 2019, 107 p.:il; CORRÊA, Rossini. Os maranhenses: contribuição para a teoria geral do Maranhão. São Luís, IMESC, 2008, 48 p.:il; et CORRÊA, Rossini. Duas vezes Gonçalves Dias: sempre. Brasília – DF, OAB Nacional Editora, 2021, 145 p.

 

  1. Consultar a respeito WILSON, Edward O. Da natureza humana. São Paulo, T. A. Queiroz Editor: Editora da Universidade de São Paulo, 1981, 366 p.

  • “Ao muleque companheiro de brinquedo do menino branco e seu leva-pancadas, já nos referimos em capítulo anterior. Suas funções foram as de prestadio mané-gostoso, manejado à vontade por nhonhô; apertado, maltratado e judiado como si fosse todo de pó de serra por dentro; de pó de serra e de panno como os judas de sábado de alleluia, e não de carne como os meninos brancos” e “ Isto no século XIX. Imagine- se nos outros: no XVI, no XVII, no XVIII. No XVIII esteve no Brasil uma inglesa que achou horrorosa a situação das mulheres. Ignorantes. Beatas. Nem ao menos sabiam vestir-se. Porque a julgar por Mrs. Kindersley, que não era nenhuma parisiense, nossas avós do século XVIII trajavam-se que nem macacas: saia de chita, camisa de flores bordadas, corpete de veludo, faixa. Por cima desse horror de indumentaria, muito ouro, muitos collares, braceletes, pentes”, são pérolas – das funções às macacas -, estampadas em FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família sob o regimen de economia patriarcal. Rio de Janeiro, Maia & Shimidt Ltda, 1933, ps. 378 e 390.

fotografia de Rossini Corrêa

Rossini Corrêa: Advogado, Escritor e Filósofo do Direito, com mais de40 livros publicados, entreos quais se destacam: Saber Direito-Tratado de Filosofia Jurídica; Jusfilosofia de Deus; Crítica da Razão Legal; Bacharel, Bacharéis: Graça Aranha, discípulo de Tobias e companheiro de Nabuco; Teoria da Justiça no Antigo Testamento; José Américo, o Jurista; Política Externa Independente: contribuição crítica à história da diplomacia nacional; O Liberalismo no Brasil: José Américo em perspectiva; Brasil Essencial: para conhecer o país em cinco minutos; O Bloco Bolivariano e a Globalização da Solidariedade: bases para um contrato social universalista; e Romeu e Julieta no Brasil. É membro titular do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal – IHGDF. Pertence à Academia Brasiliense de Letras – ABrL e à Academia Maranhense de Letras – AML. É Patrono da Cátedra Gonçalves Dias, da SVT Faculdade de Ensino Superior e foi Coordenador da Cátedra Daisaku Ikeda, do Centro Universitário de Goiás-Uni-Anhanguera.

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