Cultura

O livro mínimo de Luciana Tiscoski: corpos, corrosão e acrobacia | Manoel Ricardo de Lima

Foto de Darwin Vegher na Unsplash

Osman Lins, escritor nascido em Pernambuco, num pequeno ensaio publicado em 1969, discute a dimensão inoperosa de escrever. Antes e se escrever é ou não um ofício, numa dimensão intransitiva, ou se teria a ver com um certo desconhecimento do que é essa tarefa. A oscilação da ideia mora, basicamente, entre o que imagina como “ideal”, de um lado, e como negativo, na outra ponta do parafuso, a “glória”. Projeta que se o livro é uma mercadoria, e pode até ser, confirma, é também, ao mesmo tempo, “mais alguma coisa”. Daí que é assim e por isso que o livro exige, segundo Osman, uma tomada de posição um pouco mais grave que a de simples mercador. Escrever se vincula a aprender a ver e a não estar distraído, diz, e quanto à glória, “manda-se solenemente para a lata de lixo”. Mais recentemente, o escritor Cesar Aira, nascido no bairro de Flores, em Buenos Aires, se pergunta “por que escrevi”, numa espécie de pretérito perfeito insolente. A resposta, se há uma, está, primeiro, diz ele, que só escreve para que, no caso de um futuro hipotético em que a Argentina desaparecesse, alguns leitores se incumbissem do trabalho de reconstruí-la tal e qual era antes a partir dos livros que escrevera. Em seguida, diz que escreve não apenas porque lê, mas sim porque se pergunta o tempo todo porque lê o que lê montando e remontando uma rede singular de microscopias históricas.

 

Se quiséssemos resumir por onde se move, se é que se move, a literatura brasileira que se imagina escrever agora, nos dias em que estamos, essas projeções de Osman Lins e de Cesar Aira fazem mais do que nunca todo sentido para uma articulação singular em torno dela, porque quase sempre tende a cumprir à risca o que certo mercado editorial solicita e imprime entre dicção rasteira, falta de imaginação e endocolonização. Ao contrário, são os rumos de raras e pequenas editoras e escritoras e escritores mais radicais que se afastam, cada vez mais, desse percurso de uma teologia do dinheiro e que torna possível lembrar o quanto “escrever não é falar”, como já apostara Soren Kierkegaard por volta de 1850, e que literatura não é um alvoroço em que uma multidão atua, mas sim uma “música guerreira”. 

 

Nesse prisma, o livro de Luciana Tiscoski, Área de Broca [Editora Nave, 2021], pode ser um constitutivo de força aos impasses da forma irrecuperável que o capitalismo narcótico, porque indômito, impõe. Numa abertura do sentido, se antes a expressão que dá título ao livro permite tocar imediatamente no centro nervoso que possibilita a linguagem, reage-se a dentes ao imaginar, numa expansão, o quanto uma broca é também uma ferramenta de corte, de furo, de penetração. Dividido em 3 partes, o livro coleta imagens heterogêneas e deliberadas numa modulação do tempo para a construção de pequenas narrativas, contos, relatos, documentação etc. sem mesura ou segurança. Do uso intenso do palavrão ao sexo apressado, como no conto Vestido amarelo, até o amálgama entre chuvas, mulheres e gozo em Chuvas, por exemplo, pode-se ler o quanto o gesto de Luciana é diferido, intenso e insuportável. 

 

Em Kimbaku, outro exemplo, o uso do termo em japonês para o que chamamos “bondage”, sem apontar a tradução nem a etimologia inglesa que usamos em português com origem no anglo-latim bondagium, ou seja, condição de servo que, por sua vez, vem do escandinavo antigo, boandi, granjeiro, que se deriva em boa, que é também morar, habitar e, num desvio, preparar. O kimbaku é uma prática sexual secular com algemas, lenços, cordas, vendas, coleiras, fitas adesivas, mordaças, grilhões e outros elementos de amarração. Luciana desafia sua personagem, uma mulher que narra, a vagina disponível a um inseto enquanto alguém fala e convoca – “alguém falava morte, falava gozo, falava amarra, falava aperta, falava machuca, o inseto nada, ainda percorria minha saliva no presunto, no pão, no verde de algum vegetal que não sei” – à laceração do corpo entre ser fotografada e, ao mesmo tempo, desejo e fome, ser penetrada pela fotografia e por um inseto em voo. 

 

O mais bonito e interessante dos textos de Luciana Tiscoski nesse Área de broca se apresenta no jogo impensado do relato, quando as imagens desafiam a si mesmas diante de Eros. É que a literatura brasileira de agora padece de Eros, não tem dilação com o êxtase, tal como, repare-se, propusera o cineasta russo Sergei Eisenstein para o seu cinema, “uma imagem de êxtase”. Quase toda ela é um pacto cretino com o capital, não é desejosa nem desejante, tanto que, invariavelmente, o que se lê como “livro censurado” é porque, também, está incluído no mesmo pacto com o capital, é só este que permite a censura daquele: e isto é uma combinação irreversível.  Às avessas, entre a microscopia das coisas e a história, são os livros mais impertinentes, construídos com imaginação desvairada e que não cabem nesse ideal moribundo de glória à luz de spots cínicos, que são os mais próximos a uma política do espanto.  Área de broca é desses livros, uma literatura devoradora, linha a linha, uma erótica com cordas, tentacular, corpo, corrosão e acrobacia. Basta abrir o livro no primeiro conto, Kakadu, deparar-se com o começo quando alguém narra uma acrobata: “Uma mulher retorce o corpo no balcão onde me sento. Retorce-se loucamente. Afasto o caneco de chope e os cotovelos antes que meus anteparos atrapalhem seu contorcionismo. Meu olhar é tenso, preso ao seu radar, como se ela pudesse senti-lo  nos músculos muito bem preparados para tudo, para a guerra, para o amor.”

 

Ora, o que se tem aí, nesse fragmento, é aquilo que Franz Kafka, leitor secreto e visceral de Nietzsche, constituiu como o desarranjo de uma sobrevivência acrobata. Foi Walter Benjamin, por sua vez, leitor de Kafka, quem rearticulou todo o pensamento numa acrobacia que se desvia do artista até à criança para uma experiência de sobrevida. E aponta que na palavra errante de Kafka “tudo indica que quem busca seres humanos encontrará ascetas e que quem observa aos ascetas descobrirá neles os acrobatas”. Os e as acrobatas não compõem um povo de deus, nem de deuses, nem de santos, nem de conformados, nem muito menos de pagadores de cotas de seguros nessa sociedade que nos cobre de garantias, mas sim seres que vivem em perigo. As personagens e narradores/as acrobatas de Luciana Tiscoski são também um pouco mais do que animais sem deixar de sê-los, artistas da fome, funâmbulos/as, ineptos/as à vida, quando a perfeição é insuficiente. 

fotografia de Luciana Tiscoski.

Luciana Tiscoski Brasileira, jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC, estado de Santa Catarina, com estágio em Doutorado na Université de Naterre, Paris X, França. Tem pós-doutorado em Artes Visuais na linha História, Teoria e Crítica – UDESC. Publicou ensaios, artigos, poemas e contos em livros, revistas e periódicos literários e acadêmicos. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca, publicou os livros Abrasabarca, lançado em 2018 pela Editora Medusa, e Revoluta, de 2019, pela Caiaponte Edições. Lançou, em 2021, o conto Uma menina gorda, pela Editora Butecanis, e Área de broca, pela Editora Nave, seu primeiro livro individual de contos, semifinalista do Prêmio Oceanos 2022. É colaboradora assídua do Jornal Rascunho, jornal literário de Curitiba, PR.

fotografia de Manoel Ricardo de Lima. Créditos da Foto: Michael Langer.

Brasileiro, professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social, PPGMS, e da Escola de Letras, UNIRIO, Rio de Janeiro, Brasil. Pesquisador CNPq, PQ-2. 

Publicou, entre outros, A guerra da água [7Letras], O método da exaustão [Garupa Edições, 2020], Pasolini: retratações [7Letras, 2019, com Davi Pessoa], Avião de alumínio [Quelônio, 2018, com Júlia Studart] Maria quer o mundo [Edições SM, 2015, para crianças], A forma-formante: ensaios com Joaquim Cardozo [EdUFSC, 2014], Geografia Aérea [7Letras, 2014], Jogo de Varetas [7Letras, 2012], As mãos [7Letras, 2003/2012], Fazer, lugar: a poesia de Ruy Belo [Lumme, 2011], Entre percurso e vanguarda – a poesia de Paulo Leminski [Annablume, 2002] e Falas inacabadas [Tomo, 2000, um livro-transparência, com Elida Tessler].  

Coordena a coleção “móbile”, de mini-ensaios, desde 2006 [Lumme Editor] e coordenou a edição da poesia completa de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés : http://www.revistarevestres.com.br

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