EDITORIAL: COVID 19, liberdade e vacina | Henrique Dória
O mundo é, por estes dias, varrido por uma nova variante do covid-19, a OMICROM e, perante o sofrimento e a morte causadas pelas variantes anteriores, em particular a Delta, os cidadãos e os governos das nações entram em pânico e tomam medidas drásticas de defesa da saúde pública.
No entanto, continua a haver negacionismo, ou simples recusa da vacina por invocação da liberdade de tomar ou não tomar a vacina, com os argumentos mais variados, sobretudo o argumento de que não estão suficientemente testados os seus efeitos, em particular os negativos, já que a vacina foi concebida e produzida num tão curto tempo que não permite a verificação de todos os seus efeitos.
Trata-se de uma mistura de cinismo, obscurantismo nuns casos, falsa invocação da liberdade noutros, falta de informação ou confusão de informação noutros ainda.
Os negacionistas mais notórios são os partidários duma seita fundada nos EUA, mas espalhada agora por todo o mundo denominada QAnon. Essa seita, criada pela extrema direita americana com o objetivo de apoiar projetos como o de Trump, é do mais cínico que há no mundo.
Eles invocam a liberdade quando quem está por detrás da seita são grupos de cariz nazi-fascista. Invocam a necessidade de luta contra o Estado, em particular o chamado Estado Profundo, resultado da união complexo financeiro com o complexo militar industrial americano quando, na realidade, eles são o produto oculto do Estado Profundo que pretende dominar em absoluto a sociedade sem a oposição dos governos democraticamente eleitos e minimamente defensores dos cidadãos contra o abuso do grande poder económico.
O obscurantismo é evidente numa frase de uma das mais importantes figuras mundiais do QAnon. Escreveu ele: “Os quatro pilares sobre os quais esse sistema é sustentado, criado por algumas famílias, estão caindo. Esses pilares são a ciência, a economia, a política e a religião. Daí vêm as quatro maiores crenças limitantes: a ciência é o não posso, a religião traz o não acredito, a política traz o não devo e a economia diz o não tenho”.
Está aqui resumido todo o programa do mais obscuro cinismo. Combate à ciência que proporcionou ao homem um aumento da esperança de vida que a humanidade nunca conhecera antes do século XIX. Durante milénios a esperança de vida do homem manteve-se, com pequenas flutuações, por volta dos 30 anos, sendo, agora, a média mundial de 72 anos, quando, há 100 anos, era de 40 anos. Na Austrália, a esperança média de vida é já de 92 anos. E este aumento extraordinário que se estima possa atingir, nalguns países, os 100 anos ainda antes de 2050, é devido, e só devido, à ciência.
A religião que eles propugnam é a religião do obscurantismo e da escravidão, muito semelhantes ao fanatismo muçulmano, como se pode ver nas seitas americanas que formam o QAnon. É também, e sobretudo, um eficaz instrumento de domínio de alguns homens sobre outros, pois o poder da hierarquia religiosa é inquestionável, por mais criminoso que seja, já que é dado por Deus aos hierarcas, como afirma o repugnante Bolsonaro.
O não devo e o não tenho dessa gente de extrema direita é, na verdade, o desejo de um poder ilimitado dos detentores do poder económico que, pela manipulação das mentes e pelo poder das armas pretende anular os direitos elementares do homem, o direito à liberdade e à justiça em particular, fragilmente garantidos pelo poder dos Estados Democráticos, e pretende ainda manter os cidadãos num nível de subsistência elementar que permite o seu fácil domínio pela minoria de menos de 0,1% da população mundial que concentra em si o poder económico.
Curiosamente, dizendo-se combater o comunismo, o QAnon não se inspira só no exemplo do aparente sucesso da Alemanha de Hitler, como também se inspira no sucesso económico da China, dita comunista: esta demonstrou que um Estado ditatorial com uma economia mista de capitalismo de Estado e liberalismo económico pode, na aparência, ser mais eficiente do que o Estado Democrático.
Para os que estão na sombra do QAnon e da extrema direita em geral, que parece crescer em todo o mundo, o liberal capitalismo para ser tão eficiente como o capitalismo chinês, apenas precisa dum estado ditatorial como o Estado Chinês, que permita aos menos de 0,1 por cento detentores da riqueza mundial assumirem um novo poder absoluto fazendo as nações regredir ao século XVII.
Contra isso, cada vez mais se torna imperiosa a denúncia dos ocultos fins da extrema direita, representados em Portugal pelo Chega e no Brasil por Bolsonaro, e a defesa intransigente dos sagrados princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade que só a sabedoria que nos é dada pela ciência e pela cultura podem proporcionar.
Henrique Dória é advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e dois de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.