Contos | Divina de Jesus Scarpim
BOM PRINCÍPIO
O filho da vizinha conta que existe uma palavra mágica – que na verdade são duas –, diz que é mágica de verdade mas só funciona no dia do Ano Novo; a palavra mágica é “Bom Princípio”. O filho da vizinha explica que se criança chega pra uma gente grande, batendo na porta da casa ou encontrando a pessoa na rua, e diz a palavra mágica, vai ganhar um dinheiro.
Consultado, o pai confirma que é verdade sim. Nina fica super animada; a novidade quase transforma o Ano Novo em outro Natal; o filho da vizinha avisa que quem sai de casa mais cedo recebe mais dinheiro, porque se demorar muito outras crianças pedem primeiro e acaba o dinheiro das pessoas. Nina acorda bem cedo e se apronta pra pedir “Bom Princípio!”.
Mas o pai não deixa que ela saia junto com seus irmãos, deixa que os dois saiam, espera um tempo que para Nina parece enorme e só depois permite que ela vá. O pai explica que não pode deixar que ela saia junto com os irmãos porque dá azar para a pessoa se a primeira criança que pede “Bom Princípio” é uma menina. Ao ouvir essa explicação, Nina se sente tão magoada, triste, injustiçada e furiosa que perde todo o entusiasmo.
– Agora você pode ir – o pai finalmente a libera.
Ela sai de casa mas não diz “Bom princípio” pra ninguém; vai pro seu esconderijo e fica um tempão pensando na injustiça que as pessoas grandes fazem quando dizem e pensam que uma criança pode dar azar só por ter nascido menina. Nem por um momento Nina acredita em absurdo tão grande, por mais que pense não consegue encontrar uma única razão para que isso seja verdade.
Ela SABE que não é pior do que menino nenhum, ela tem certeza de que quem inventou que menina dá azar foi um menino ou um homem muito mau, e sente raiva de quem consegue acreditar em uma mentira tão triste. Só não está furiosa com o pai porque ele diz que não acredita que ela dá azar, mas que as outras pessoas acreditam e vão pensar que o Ano Novo delas não será bom; e depois vão colocar a culpa de tudo de ruim que acontecer com elas em Nina porque pediu “Bom princípio” e nele porque deixou a filha sair de casa muito cedo.
Ela olha pra cara do pai como quem não acredita muito no que ele está falando, então o pai dá um dinheiro pra ela antes de alguma criança bater na porta pra pedir “Bom princípio” e mostra que o dinheiro que ele vai dar pros irmãos ainda está no bolso dele; isso faz com que Nina se sinta melhor, mas só um pouco e só com relação ao pai.
Porque o “Bom Princípio” perdeu toda graça para ela.
***
EU SOU CÂNCER!
Quando era criança, por tudo que ouvia das pessoas adultas, fiquei sabendo que “mulher solteira que não é mais virgem não presta” e que “moça que se casa de branco sem ser virgem está cometendo um pecado mortal”. Antes de saber o que significava, aprendi que a palavra “virgindade” designava algo que as mulheres tinham obrigação de ser sempre, e aquelas que não fossem iriam para o inferno. Mais tarde fiquei sabendo que existia uma coisa chamada “sexo”, algo que me pareceu nojento e que acontecia entre um homem e uma mulher, soube também que as mulheres só podiam fazer sexo depois do casamento e que servia para fazer neném. Não era a cegonha!
Teve uma mulher que foi muito importante na minha infância, ela me contou que no dia do casamento ficou com tanto medo do marido que correu para o quarto dos pais e se escondeu debaixo da cama chorando, sexo me parecia algo um tanto assustador.
Mas aos poucos fui aprendendo que não era bem assim. Aprendi que sexo era bom quando a mulher gostava do homem, que dava prazer e que o maior perigo de fazer sexo antes do casamento era engravidar e ser expulsa de casa. Depois aprendi mais e, sendo a brigona questionadora que sou, concluí que virgindade é um mal tremendo que aterrorizou e destruiu a vida de muitas mulheres ao longo da história e que os que mais levavam vantagem com toda essa tortura de que as mulheres foram vítimas desde sempre eram os homens, e principalmente os homens mais escrotos e nojentos.
Uma tia minha dizia para a criança quase mocinha que eu era: “O importante é guardar a porta da igrejinha!”. A “igrejinha” era minha vagina e a “porta” era meu hímen, depois ouvi falar de mulheres que “faziam outras coisas” mas tomavam cuidado para não “perder a virgindade”. Isso me pareceu tão hipócrita! Decidi que quando resolvesse fazer alguma coisa não faria pela metade. Eu nunca usaria de hipocrisia para guardar o que quer que fosse.
Ouvi muitas histórias de abandono, sofrimento e humilhação de mulheres, a maioria delas com nome e endereço. Essas histórias me tornaram uma jovem revoltada contra os machões que rezavam o credo “Só caso com mulher virgem”, contra os moleques que humilhavam mulheres porque “essa não é mais virgem”, contra os homens que exigiam virgindade das mulheres ao mesmo tempo que se tornavam especialistas em se fazer de apaixonados com o objetivo de “tirar a virgindade” do maior número possível delas.
Hoje se diria que me tornei feminista, é como me defino agora, mas naquela época eu não conhecia esse nome, então não me definia como nada, o que aconteceu foi que, ao contrário da maioria das minhas colegas que tinham orgulho de propagar sua virgindade como se fosse um título de nobreza, eu passei a sentir muita vergonha e quando alguém, principalmente um homem, perguntava se eu era virgem, a resposta estava pronta:
– Não, eu sou câncer!
Essa minha condição de “ser câncer” me causou vários embaraços e até mesmo perigos reais, afinal – e isso foi algo que nunca consegui entender – todo homem achava que, pelo fato de “ser câncer”, eu tinha que “dar” pra ele.
Homens casados, maridos de colegas minhas ou da minha mãe, aproveitavam qualquer oportunidade para vir com intimidações do tipo “Você dá pra todo mundo então tem que dar pra mim também!”. E a coitadinha aqui sequer “dava” e, coisa inacreditável para qualquer pessoa acostumada com meu jeito risonho e desembaraçado: Eu não contava isso a ninguém porque sentia muita vergonha! Era uma vergonha ao contrário da que pareceria lógica na cabeça das pessoas, mas era uma vergonha real e muito grande para mim.
Faz a fama, deita na cama é como diz o “velho deitado”! E eu, sem ter essa intenção, fiz uma fama danada. O resultado disso é que “todo mundo ficou sabendo” que eu não era mais virgem. Evitava frequentar a casa das mulheres casadas que conhecia e quando alguma delas vinha à minha casa com o marido eu não me deixava pegar sozinha com ele nunca. Mesmo agindo assim não fiquei totalmente livre de embaraços, uma vez o marido de uma vizinha me agarrou no quintal e a própria esposa teve que ajudar a me livrar das garras dele, que estava bêbado na ocasião e depois veio pedir desculpas, mas só porque estava na frente da esposa e ela exigiu.
Outra vez foi o irmão de um amigo. Esse meu amigo era a parte masculina de um casal de quem eu gostava muito, depois de um tempo de namoro alugaram uma casa e foram morar juntos, fui ajudar na mudança e o irmão dele estava ajudando também. Depois de arrumarmos tudo o irmão me propôs que a gente fosse até um posto abastecer o carro aproveitando para deixar o casal sozinho na casa nova por um tempo. Achei uma ótima ideia e fomos; no posto o cara disse que saindo dali a gente podia ir a um drive-in, eu disse “Não” e a resposta dele foi “Mas você não disse que não é mais virgem?”. Quase respondi “Eu só disse que sou câncer, você que concluiu o resto”, mas a vergonha de assumir ser virgem e a raiva de ele querer transar comigo só porque achava que eu não era virgem me impediram, respondi que o fato de não ser virgem não me obrigava a sair com qualquer um e que eu não queria fazer sexo com ele. Senti medo porque a cara de raiva que ele fez foi realmente assustadora, pensei que fosse me expulsar do carro aos gritos, me ofendendo com palavras de baixo calão e chamando a atenção de todo mundo que passava, felizmente isso não aconteceu. Voltamos para a casa do casal sem trocar nem uma palavra, ele se despediu só do irmão e da namorada sem olhar para mim e foi embora. Depois disso a gente esteve ao mesmo tempo no mesmo lugar mais de uma vez e ele nunca mais falou comigo. Nunca contei o que aconteceu, nem para o casal nem para qualquer outra pessoa.
Mas o mais apavorante foi o que aconteceu com um amigo muito querido da época. Esse amigo comprou seu primeiro carro e me convidou para dar uma volta. Sabe quando você gosta de alguém e confia na pessoa? Pois é! Era assim e nem pensei duas vezes, feliz por ele entrei no carro e saímos conversando e rindo. Anoiteceu e a coisa ficou tensa quando ele parou o carro em um lugar tão escuro que eu enxergava com os olhos abertos ou fechados do mesmo jeito (fiz o teste!). Ele desligou o motor e fez o mesmo tipo de discurso: “Como eu não era virgem, bem que podia transar com ele”.
Não sei como explicar o quão intenso foi o medo que senti, me vi estuprada, assassinada e jogada em um matagal, eu não reconhecia mais o amigo de quem tanto gostava; o pavor venceu a vergonha e, para salvar minha vida que eu realmente sentia em perigo, confessei que era virgem e expliquei, ou tentei explicar, a vergonha que eu tinha de dizer isso. Quando parei de falar, ele debruçou a cabeça sobre o volante e ficou quieto um bom tempo; mesmo com os olhos já acostumados com a escuridão eu ainda não enxergava quase nada, só sentia os movimentos e vislumbrava o vulto dele. Fiquei quieta, continuava apavorada, paralisada e sem saber o que fazer. Não sei quanto tempo durou aquele silêncio aterrador, mas de repente ele levantou a cabeça, se virou para o meu lado e perguntou: “Quer casar comigo?”
Senti um alívio indescritível, pareceu que algo dentro de mim gritou que eu não ia morrer. Então disse a ele que não podia aceitar assim de repente porque nunca tinha pensado nele a não ser como amigo, disse tudo que podia dizer para recusar sem ofender e para que a gente saísse logo dali. Até que finalmente ele ligou o carro e voltamos para nosso bairro, nossa vizinhança, minha casa. Algum tempo depois ele se casou com uma conhecida minha e a gente continuou amigo, mas não do mesmo jeito, claro. Nunca mais ficamos sozinhos ou falamos sobre o que aconteceu naquele dia, às vezes ainda me pergunto se ele teve alguma noção do medo que me fez passar.
***
NO BANHO
Preciso trocar as cortinas do box, estão um tanto sujas embaixo, talvez fosse bom comprar cortinas novas, bah! não importa, não quero pensar nisso, será melhor ir para o apartamento do litoral e viver lá, não vai dar certo, os meninos gostam de passar fins de semana e feriados com os amigos no apartamento, eu seria uma intrusa, além disso ele também vai de vez em quando, acabaria me aborrecendo, melhor ir para onde não fique sozinha ou então para onde ele não possa ir, onde não seja propriedade dele, a pior coisa que fiz foi parar de trabalhar fora, preciso passar uma vassoura nessas teias de aranha da janela, não se tem nada quando não se trabalha, depois que a gente para de trabalhar fica difícil voltar, já preparei tantos currículos e não deu em nada, depois dos quarenta anos sem chance, quem vai querer uma mulher que esteve “pilotando fogão” durante tanto tempo? tanta mocinha de vinte procurando emprego, preciso avisar a Dona Vera que os produtos dela chegaram, não esquecer de dizer que tem novo catálogo com mais ofertas, como é deprimente se olhar depois dos quarenta! o sabão deve fazer espuma na pele, lavá-la e ser tirado sem que a gente veja, horríveis estes peitos caídos, não seja tão injusta, para uma mulher de quarenta anos você está ótima! isso é que irrita, “para uma mulher de quarenta”, só que o mundo tem vinte! enxuga logo esse cabelo e para de frescura, quero que aquele cretino saia da minha vida, mas como? se os meninos fossem pequenos levava comigo, ia pra qualquer lugar, largava tudo com ele, mentira! não faria nada como não fez, não fiz porque tinha medo, com duas crianças, como viver? como cuidar deles e trabalhar? com quem deixar? mas além de tudo tinha a esperança, ele podia melhorar, naquele tempo a esperança existia, depois foi acabando, talvez eu o amasse ainda, agora não mais, por isso a esperança morreu, estou morta por dentro, seca como a desilusão teimada dia-a-dia, ano a ano, tem os meninos, como seria sem eles? aquelas vozes, aqueles sorrisos é que dão razão à minha vida, estão homens, logo vão embora, fico sozinha com ele, não, não fico! vou embora com o último filho que sair, para qualquer lugar, sem os meninos não tenho com que me preocupar, os papéis de pedido têm de ir amanhã, quanta correria, se ao menos fosse melhor vendedora, não sei cobrar, não sei oferecer e insistir naquele jeito de quem não está insistindo, só mostro a revistinha e pronto, será que é ele? se for veio cedo, vou sair daqui e ler no quarto, não vou passar na sala, não quero ver a cara dele, coisa aborrecida morar com a pessoa na mesma casa e não ter esperança, será que ele não se incomoda, não se manca ou é só para aborrecer? talvez fosse melhor no tempo em que eu chorava, estava triste, doía tudo, um caroço enorme me crescia no peito, tinha autoestima ferida mas me valorizava e me paparicava de pena, e ia ser consolada, nunca era, mas sempre ia ser, sempre ia ser, a espera cansou, o caroço derreteu, a tristeza molhada acabou e ficou a seca, a tristeza seca não dói como o caroço, no peito, dói na vida, fora do corpo, dói todo o quarto, toda a casa, dói o quarteirão inteiro, dói o mundo e doer o mundo não é dor que sirva para molhar os olhos, inchá-los e dormir de cansaço, dor seca dói mais longe, espalha tanto que nem no sono deixa de estar, nos olhos do universo a dor coloca uma camada, como uma cortina de areia fina, enxugar o pé com essa unha machucada é ruim, se fosse à pedicura talvez ela não tirasse bife, eu não sei, da mão tudo bem, tiro cutícula e não tiro bife, mas do pé! de que adianta fazer mão e pé nessa idade? de que serve ter unhas pintadas se a mão é velha, enrugada e calejada pela roupa e pela louça, toneladas em tantos anos, que se lavou? logo serei velha demais, e já não sou? ser velha é uma tortura sem remédio, pior do que estar doente, doença pode ter cura, velhice não tem, saber que o tempo vai reduzindo a cada dia, saber que não dá mais para fazer planos a longo prazo, saber que tem apenas a certeza da morte, da fraqueza e das doenças que a velhice fatalmente vai trazer, como pode alguém ter a coragem de dizer que a velhice está na alma? nunca se criou uma frase mais mentirosa e absurda do que essa! fico espantada, sinceramente espantada de ver pessoas se comportando como se acreditassem mesmo nessa história, não consigo acreditar que estão sendo sinceras, sei que algumas pessoas são capazes de acreditar em coisas absurdas, como duendes, extraterrestres bonzinhos e coisas do gênero, mas acho que ninguém é capaz realmente de acreditar nesse disparate de velhice não existir a não ser na alma, é mais fácil acreditar em papai Noel e em bicho papão, tem gente que parece não ter a mínima noção de ridículo, e algumas velhas têm a coragem de dizer esse tipo de disparate, como se pudessem convencer alguém: “tenho cinquenta anos mas não me trocaria por uma dessas menininhas de vinte”, me engana que eu gosto! não se trocaria é? dizem isso porque sabem que é impossível, se pudessem realmente se trocariam por qualquer menina de vinte anos, mesmo uma feinha e sem graça, mesmo uma gordinha, burrinha e desengonçada, qualquer uma, como sabem que não podem vêm com essa conversa de raposa! Fim do banho.
Divina de Jesus Scarpim – Sou oficialmente uma idosa e, portanto, pertenço ao grupo de risco dessa pandemia da covid-19 que estamos atravessando desde 2020. Mas ser grupo de risco não é algo estranho para pessoas como eu. Nasci no grupo de risco da pobreza sem saída a que pertenciam os agricultores que trabalhavam “de ameia” nas fazendas do interior do Brasil. Nasci no grupo de risco da “pedagogia do espancamento” a que pertenciam as crianças cujos pais também foram criados assim e aprenderam a duras penas a “verdade” de que “criança se educa no reio”.
Nasci no grupo de risco da falta de educação formal porque ainda se difundia a máxima de que “Mulher não precisa estudar pra casar e ter filhos!”. Nasci no grupo de risco do assédio e do estupro porque nasci mulher e todas as mulheres pertencem a esse grupo de risco desde sempre.
Mas pertencer a um grupo de risco não significa obrigatoriamente adquirir a doença.
Por isso consegui escapar de alguns dos destinos que me estavam reservados.
Mas não de todos!
Consegui estudar mais do que a média das mulheres do meio em que nasci e me tornei uma professora, uma defensora da importância da educação, uma feminista convicta e uma escritora.
Entre outras coisas, escrevo contos e alguns dos meus contos falam de mulheres e, portanto, falam de mim mesma.
Publio Terêncio Afro teria dito “Sou homem: nada do que é humano me é estranho” (Homo sum: nihil humani a me alienum puto). Parafraseando Terêncio eu digo:
Sou mulher: nada do que é feminino me é estranho.
Pelo menos assim me parece.