Poesia & Conto

Do caderno secreto | Mariana Ianelli

Hoje sou um horizonte
De jasmim com mar
E assim nem mais importa
Que não esteja em teus planos
Ir até o mar
Ele te alcança
Mistura sal e néctar
Ao ar que te penetra
Ele te veste
Por baixo da roupa
Cinzela tua lembrança futura
Murmura coisas
Ditadas pela lua
Molha os teus sonhos.
Quem chamará de abuso
A um perfume de horizonte?
Quem reclamará contenção
A uma paisagem?
Não, ela não tem pudores.
Suas leis não são humanas.
Não suscita desconfiança.
Hoje te encontro na varanda.

 

*

 

Não me mates.
Usa-me
Numa de tuas alquimias.
Posso dar algum prazer
Ao teu poema
E ainda engastar-lhe
Um hieróglifo.
A errância do verbo
Existe.
A atrocidade da razão. 
O terror do juízo.
Podes usar-me
Em teus serviços.
Chamuscar-me
Nisto e naquilo
Mas não
Não me mates.
Deixa que haja depois
E ali o melhor
De nós dois
Inseparáveis
O rigor e a alegria.

 

*

 

Isto que penso
Tão delicado
É sem mesuras.
Fortuna de inteireza
Raiada no campo.
Simplicidade pura.
Como quando melhor falamos
Compondo
Com filandras
Palavras poucas
De contornos fulgurantes.
Somos um só perfume
De árvore
Entre os nossos sons.
Damo-nos flores claras
Soberanamente efêmeras
E exuberantes.
Das raízes
Às copas debruadas
Conversamos.
Flores de cerejeira
Por todos os nossos ramos.

 

*

 

Agora moro
Onde há muitas escadas
E noites assim
Em que sou só descida
Os pés molhados deslizam
A mão procura amparo
Enquanto o mais se entrega
Há, no entanto, instantes
Em que o mergulho
É para cima
Sim eles existem
E as três Marias
Nunca estão no mesmo lugar do céu
Por três noites seguidas
E o que medito com isso
É perícia do corpo
Com seus pés, suas mãos, seus olhos
Que as descidas se abrem 
Infinitamente com as noites
Aprofundando-as
E as subidas
As subidas são instantes.

 

*

 

Nunca houve ninguém
Talvez assim digas 
De mim.
Parece justo.
Ninguém.
Mundo tão vasto
E tão inóspito mundo.
Ninguém
Na maresia
Ninguém 
No silêncio da casa
Ninguém 
No cheiro de jasmim
Ou na lua desanuviada
Ninguém
No halo de luz
Ou na areia perolada
Ou no olho do animal
Ou na calma dessas águas
Ninguém 
Na chuva que brilha
Ninguém na madrugada.

 

*

 

Dança fragrante
Fala que inflama o erro necessário
Delícia parceirada com delícia
Exuberância que empecilha a visão clara
Que vai e volta 
Voluteia 
E abocanha a própria cauda
Tristeza inútil
Amor desperdiçado
Noite desbordando em noite
Préstito de seres imaginários
Jardim de ecos 
Como se vozes fossem
De reflexos 
Como corpo do meu corpo
Rastilho, fagulha
Deriva do deslumbre
Volúpia de bulir com a alma
Vos agradeço pelo espetáculo
Vos agradeço 
E me despeço
Vagamente emocionada.

 

Fotografia de Mariana Ianelli

Mariana Ianelli nasceu em São Paulo, Brasil, onde vive. É autora de catorze livros de poemas, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos de poesia e América – um poema de amor (2021 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2022). Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar). De 2018 a 2022, editou a página Poesia Brasileira no jornal Rascunho.

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