Política

Desigualdade na América Latina, realidade e desafio | Jales Marinho

Foto de Guille Álvarez

Quando sugeri tratar desse tema aos editores de INCOMUNIDADE, nem fazia ideia de que a situação da desigualdade na América Latina e Caribe era tão desoladora e preocupante. Com uma população da ordem de 660 milhões nos 30 países da região, posição de 2022, cerca de 32,1%, ou seja, 201 milhões de pessoas, vivem em situação de pobreza, segundo o relatório Panorama Social, elaborado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL, tomando por base o ano de 2022.

Desse total, 13,1%, cerca de 82 milhões, vivem em situação de pobreza extrema. O estudo atribui esse quadro de desigualdade à “crise silenciosa da educação”, embora não seja a causa única para esse quadro desolador. Embora todos os países carreguem a herança do passado colonial, as demais causas da desigualdade variam de país para país.   

           Não se pode falar de desigualdade social – e até mesmo regional -, tanto na América Latina quanto nas demais regiões do Terceiro Mundo, sem enfatizar o processo de colonização, cujo legado foi o passado escravagista, e toda sorte de exploração e saque das riquezas minerais, vegetais, além do extermínio dos povos originários.

             Mesmo com o fim do processo colonizador, a cultura da exploração persiste até hoje, em especial na região amazônica da América do Sul, com o avanço do agronegócio com a cultura de soja e a formação de pastagens, além da garimpagem ilegal em terras indígenas e a exploração de madeira contrabandeada, especialmente no Brasil, segundo informações do Instituto Chico Mendes e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente – IBAMA. Tudo isso contribuindo para uma maior degradação ambiental e precariedade de vida e empobrecimento das populações ribeirinhas e comunidades indígenas.

             Embora as causas da desigualdade sejam comuns em todos os países, no Peru, por exemplo, os pesquisadores e cientistas sociais apontam a diferença de renda e o sistema político como as principais causas. A diferença de salários entre a classe A e a classe E chega a 20 vezes e as parcelas mais pobres não se sentem representadas no sistema político, fato agravado com o conflito socioeconômico com as comunidades indígenas da Amazônia peruana que se queixam da falta de instrumentos de interlocução com o Estado, resultando em mais exclusão social, política e cultural.

             Na Colômbia, o maior problema é a má qualidade do trabalho e da renda, segundo registro do Departamento Administrativo Nacional de Estatística – DANE, que aponta o ingresso de 6,5 milhões de colombianos na linha da pobreza entre 2019  e 2020, além de 2,8 milhões que ingressaram na pobreza extrema.

                Situação mais precária enfrenta a Venezuela, onde cerca de 94,5% da população vivem em situação de pobreza, dos quais 76,6 % na pobreza extrema, segundo a Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi), realizada em 2021 por uma equipe formada por acadêmicos da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) e da Universidade Central da Venezuela (UCV).  

              As informações sobre a desigualdade social no país são contraditórias, já que há outros estudos que indicam 51%, o percentual de venezuelanos vivendo em situação de pobreza, agravada pela deficiência no acesso a alimentos e medicamentos, embora as autoridades venezuelanas atribuam ao embargo internacional o agravamento dos problemas sociais do país. 

                 Estive no Chile dias atrás e pude observar que o quadro de desigualdade é agravado pelo legado das políticas neoliberais dos últimos governos, que resultaram na inexistência de previdência social pública, nem de políticas de amparo ao idoso em situação de exclusão social, assim como de uma legislação que assegure um mínimo de direito aos trabalhadores, o que torna ainda mais vulnerável as relações trabalhistas. Isso sem falar na inexistência de universidades públicas.

                 Evidente que quem acompanha à distância o desempenho da economia do Chile, um dos países da região que mais cresceu na última década, ou se você chega hoje em Santiago pode idealizar uma pujança econômica que não corresponde à realidade. Como adverte um casal de amigos brasileiros que lá residem há dois anos: “Isso é só fachada!”.                   

                   O estudo da CEPAL mostra que as taxas de pobreza e extrema pobreza no continente, em 2022, se apresenta em níveis que antecedem a pandemia de Covid 19, o que demonstra que o combate a essas desigualdades não esteve entre as prioridades dos governos da maioria dos países. Sem falar no grave retrocesso verificado no Brasil com a ascensão de governos neoliberais e populistas a partir de 2016 e até o ano passado.

                Como as políticas assertivas foram a marca dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) desde 2003, logo que tomou posse em janeiro último, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tratou de definir como um governo de reconstrução nacional. E o primeiro passo foi restaurar os Ministérios voltados para as áreas sociais e o restabelecimento das políticas de distribuição de renda e de valorização do salário mínimo, como vem fazendo os governos da Bolívia, um dos países mais pobres da região e que registrou avanços significativos no combate à pobreza via valorização dos salários.

                 Com nove meses de governo, o Brasil já conseguiu resultados positivos, ao retirar cerca de 3 milhões de brasileiros da pobreza, segundo estudo realizado conjuntamente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o próprio Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), além do Banco Mundial.

                 O relatório da CEPAL mostra que a combinação do baixo crescimento econômico no continente, da dinâmica do mercado de trabalho e inflação resultará na elevação em cerca de 15 milhões o número de pessoas em situação de pobreza na maioria dos países, além de mais 12 milhões abaixo da linha de pobreza. Embora as causas da pobreza sejam comuns na América Latina, especialmente com relação à baixa qualidade da educação, cada país apresenta situações distintas de desigualdade em relação ao nível de emprego, de renda, de representação política e de acesso aos diversos níveis de educação.

               Evidente que os efeitos da pandemia também contribuíram para o agravamento das desigualdades sociais em todo o continente. Na América Central, por exemplo, de uma população de 75,3 milhões, cerca de 2,8 milhões de pessoas ingressaram na linha de pobreza a partir de 2021 nos 23 países da região, representando um aumento de 6% em relação ao ano anterior, segundo estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. Em razão disso, o próprio relatório da instituição recomendou aos governos da região a adoção de políticas públicas distributivas de renda para reverter esse quadro de vulnerabilidade social. 

                Esse quadro de desigualdade apresenta algumas contradições, como o caso do Chile que, mesmo não dispondo de ensino superior gratuito e nem previdência social pública, exibe um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do continente, com 0,855, segundo o último relatório 2021/2022 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD). 

             Outro exemplo é a própria América Central e o Caribe, onde metade dos países apresentam IDH superior à da maioria dos países da América do Sul, como as Bermudas, as Bahamas, a Costa Rica, o Panamá e a República Dominicana, com uma média superior a 0,800. O Brasil perdeu três posições em relação a 2020, ficando em 5º. lugar na América do Sul, com 0,754, atrás até do Peru, que ficou com 0,762.

             Ao falarmos em desigualdade social não basta focarmos apenas na pobreza e na fome, decorrentes do abismo na questão da renda entre as classes sociais. É importante destacar igualmente as desigualdades de gênero, de raça e de região, o que demonstra que esse problema é bem mais amplo e complexo, o que torna seu enfrentamento uma tarefa quase irrealizável.

 

             Mas ao mesmo tempo mostra ser um desafio de todos os países, dos governos e de toda a sociedade do continente. Assim, não basta ampliar e universalizar as políticas públicas inclusivas e de distribuição de renda. É fundamental uma mobilização nacional para universalizar também o acesso ao ensino com qualidade e focado na formação técnico-profissional. 

              Aliado a essas ações, é importante a adoção de políticas de valorização do salário mínimo e de medidas de enfrentamento do racismo estrutural, do preconceito de gênero e regional, além da ampliação da oferta de trabalho formal e que valorize a dignidade humana no trabalho. Isso inclui reformas trabalhistas que combatam o trabalho aviltado ou até mesmo escravagista, como ainda ocorre em países como o Brasil, conforme frequentes operações fiscais do Ministério Público do Trabalho.

               Por fim, buscar um sistema tributário mais equilibrado, de forma a reduzir o ônus fiscal sobre o consumo, em especial das classes mais vulneráveis, e ampliando a tributação sobre o patrimônio e sobre as rendas mais elevadas com vistas a promover justiça social e tributária. 

            Com esse conjunto de ações e medidas será possível universalizar o acesso às oportunidades para a maioria da população do continente, estimulando a mobilidade social, o que permitirá aos latino-americanos renovar a esperança de uma vida melhor e uma sociedade justa e inclusiva.

 

Fotografia de Jales Marinho

 

Jales Marinho, Jornalista e Advogado.

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