Cultura

Crianças: pequenas máquinas de guerra IV | Clécio Branco

Para Deleuze, o erro começa pela escolha errada do plano. O plano submete a teoria: desde o começo, não é a teoria que determina o plano. Um plano de organização já teórico em seus fundamentos. “Pois o fracasso faz parte do próprio plano: é preciso, com efeito, sempre retomar pelo meio, para dar aos elementos novas relações de velocidade e de lentidão que o fazem mudar de agenciamento, saltar de um agenciamento para outro”.1

 

Quando se está diante de Quantidades intensivas, não é mais de um plano de organização que se vai tratar, há variações de posição que dependem das conexões e dos agenciamentos com a univocidade do ser e desejo.

 

O que está em jogo são as multiplicidades e os agenciamentos maquínicos que constroem o plano, que se encontra determinado por graus de potência: velocidade, repouso e lentidão.

 

Daí em diante, não existem apenas dois sexos que submetem toda interpretação (do olhar teórico) e preocupação da moral familiar; existem vários sexos que se conformam e dependem do número de agenciamentos em que o indivíduo se vê envolvido. Cada um de nós é uma multidão agenciada e agenciando-se; estamos em agenciamentos constantes que nos lançam em n sexos.

 

Se a preocupação passa por essa questão, de sermos ou não sermos, isso ou àquilo, então já não faz mais sentido algum. Quando a criança se descobre isso ou aquilo, homem ou mulher, também depara com sua impotência e sua ansiedade de ter ou não ter certeza sobre o que é.

 

Perde-se o sentido maquínico em detrimento de uma definição transcendente e puramente instrumental. Longe de seu corpo sem órgãos, a criança se vê diante do verdadeiro eu depressivo, quando roubam seus inumeráveis sexos. A verdadeira castração está no roubo dos n sexos que a criança-máquina tinha por essência. 

 

Esquecem que as definições de homem e de mulher deveriam levar em conta, antes de tudo, sua natureza ligada aos fluxos: “Todos os devires que há no fazer amor, todos os sexos, os n sexos em um único ou dois, e que nada tem a ver com a castração. Sobre a linha de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação-vida.”2

 

A psicanálise define a sexualidade pelo órgão e sua finalidade (forma de pensamento teleológico). Ela não pôde esquivar-se da cultura falocrata e manteve a definição de homem centrada no pênis, o que a levou a pensar em um único sexo masculino, definido pelo órgão-pênis. 

 

O clitóris, por analogia grosseira, é um pênis que não se desenvolveu: um pênis pequeno e malfeito que jamais pudesse crescer.

 

Desse modo, passamos de uma analogia científica para a fundação de uma homologia fundada sobre o significante fálico, e não mais sobre o órgão-pênis.

 

 A instauração do binômio sexual fica atrelada à masculinidade, ou seja, o feminino deriva da masculinidade, que não pode entrar em devir, por ser o ponto de partida do significante do fálico.

 

A fé da estrutura reside nesse ponto que faz tudo girar em torno de uma definição fixa: os dois sexos, mesmo que se reduzam os n sexos a dois, passam a residir no interior de todos nós. Tudo ficaria reduzido a uma questão psíquica, carrega-se uma dualidade sexual psíquica (bissexualidade psíquica) que implica a homologia entre o desejo pela vagina no homem e a inveja do pênis na mulher.

 

Tudo isso para confirmar a tese da castração; solda-se o desejo na castração para interpretá-lo como imaginário ou simbólico. Está pronto o plano de organização para a infindável interpretação.

 

 O jogo rico da diferença se reduz a apenas duas: homem ou mulher; o que escapa é excluído como terceiro estranho, mas que será reintroduzido pela intrusão de uma máquina desejante e tudo será subvertido.

 

A diferença interpretada orgânica ou estruturalmente (pênis-órgão, significante fálico) lança um erro fatal: reduzir a riqueza do desejo e da libido às condições da sexualidade. Para Deleuze/Guattari, o que interessa às crianças é a univocidade do material com as conexões e as posições variáveis com que esse material se encontra no mapa de linhas que elas traçam. É a mesma questão de posicionamento de uma máquina de guerra que funciona sem um pivô, um general, por exemplo.

 

                                               

A solução sem general aparece para uma multiplicidade acentrada que comporta um número finito de estados e de sinais de velocidade correspondente, do ponto de vista de um rizoma de guerra ou de uma lógica da guerrilha, sem decalque, sem cópia de uma ordem central. Demonstra-se mesmo que uma tal multiplicidade, agenciamento ou sociedade maquínicos, rejeita como ‘intruso a-social’ todo autômato centralizador, unificador.3

 

A univocidade com que as crianças lidam diz respeito não apenas ao pensamento do múltiplo que se remete a n agenciamentos, mas também ao dado material n sexos. Quando se introduz a máquina na sexualidade, já não será mais possível falar-se de diferença entre dois sexos.

 

Como uma medida política arbitrária, essa posição só serve para manter a ignorância em relação às potências criadoras da sexualidade. Por isso dissemos: quando a criança se vê reduzida à dualidade (homologia masculino-feminino), perde de imediato toda a sua potência.

 

A menina é a primeira que se vê roubada em sua potência sexual, quando se lhe subtrai o corpo-máquina para lhe introduzir um corpo-órgão. O corpo-máquina lhe conferiria todos os sexos (n sexos); no corpo-órgão, conferem-lhe todas as funções de mulher predeterminadas na cultura. Percebe-se que a fobia do pequeno Hans só vai aparecer quando os adultos estabelecem, à força, o significante fálico.

 

A angústia da castração só existe quando a diferença em si mesma é substituída pela diferença dual que introduz a angústia da castração de um fálus. Ou seja, não existe angústia nas crianças por serem diferentes; elas são indiferentes ao fato de possuir um órgão, mas a angústia vai aparecer quando tudo leva ao esforço da redução a um centro organizador.

 

No começo da vida, toda criança se vê possuidora de n sexos, que correspondem a todos os agenciamentos possíveis nos quais entram em correspondência; os materiais são comuns às meninas e aos meninos. O que está em jogo é muito mais as intensidades experimentadas do que as formas percebidas. Não tem “nada a ver com Édipo ou o tema familialista, mas com a transformação do corpo, de máquina em instrumento. Nada tem a ver com a castração ligada ao sexo que se tem, mas com o roubo de todos os sexos que se tinha”.4

 

A sexualidade fica, assim, reduzida à família, à castração e à diferença binária entre os sexos; volta-se ao modelo de pensamento da moral teológica, tendo como consequência desse modelo a homofobia da atualidade; as crises existenciais dos indivíduos, com todos os transtornos de ansiedade inerentes. Nesses casos, fala-se em desvios, doenças, curas e medicalização.

 

Notas

 

1 DELEUZE, G. e PARNET, C., Dialogues, p. 114.

 

2 Idem, pp. 60-61.

 

3 DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux,  pp. 26-27.

 

4 DELEUZE, G., Deux regimes de fous – textes et entretiens, 1975-1995, p. 86.

 

Fotografia de Clécio Branco

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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