Política

Carlota Joaquina tinha razão | Hermínio Prates

A imagem está desgastada, mas, vá lá: um marciano que despenque em terras brasileiras será capaz de entender o país apenas com a leitura dos jornais, revistas e páginas na internet? E com o que se diz e se exibe na televisão? Não, definitivamente não. 

 

No início dos anos dois mil, analistas que se arvoravam versados em economia e política, falavam de uma nação estuprada pelos corruptos e arrasada pelos oportunistas. Isso ocorreu após 2003 – ano inicial do primeiro governo Lula -, evidentemente. E citavam fontes confidenciais inexistentes. Era a crise generalizada, em todos os níveis, diziam. Mas o que se via e vivia era diferente, embora os alarmistas profissionais negassem o óbvio. E agora, nos primeiros dias do terceiro governo do petista, a verborreia se repete.

 

Quem se lembra da antiga piada do boateiro? Em cada esquina, mesa de bar, até na hora da missa ele garantia que o país estava falido, devendo até as cuecas para o mundo e que não havia dinheiro em caixa para importar petróleo, trigo, maquinário, nem mesmo um purgante. Cansado de ouvir tantas asneiras, o militar mais graduado da cidade mandou prender o falastrão e deu ordens que ele fosse fuzilado como inimigo da pátria. De costas para um muro, mãos amarradas e olhos vendados, ele ouviu as ordens de comando:

         

 – Atenção! Preparar, apontar (tambores marcaram o ritmo da dramaticidade) e fogo!

 

 O sujeito ouviu a fuzilaria, mas não sentiu o impacto das balas, nem dores. Ainda estava vivo, apenas morto de medo. Com as calças borradas, ouviu a explicação do oficial por ele ter sido poupado:

 

  – Pare de espalhar mentiras! Desta vez usamos balas de festim, mas da próxima vamos usar balas de verdade.

 

 Após o banho sob risos e vaias da soldadesca, o boateiro tratou de sumir do quartel. Na primeira esquina viu dois conhecidos e não teve dúvidas ao contar a novidade: 

 

 – “Eu num falei? A crise é tão braba que os militares não têm dinheiro nem pra comprar munição. Estão usando balas de mentira!”

 

  Voltando ao mote: quem será capaz de obter uma real análise do que ocorre com a leitura atenta do noticiário e até mesmo dos editoriais? Não há opinião que não seja de encomenda, o embate de ideias não escapa à influência do balcão de anúncios e de inconfessáveis interesses. Óbvio, ninguém quer uma empresa capenga que edite um jornal apenas para externar opções políticas, seja de esquerda ou de direita. O empreendimento precisa ser viável para subsistir, mas não pode ser venal. Num momento em que se fala tanto em ética, como se essa tenra planta tivesse surgido apenas agora e não na sempre cultuada Grécia, não há como captar isenção sem um mínimo de paixão política.

 

 Não era para ser assim, mas sempre foi. Desde o pioneiro Correio Braziliense (com a letra Z) escrito e publicado em Londres (1808) por Hipólito José da Costa, municiado por libras esterlinas, os principais jornais brasileiros nasceram por obra e graça de grupos políticos desejosos de ter apenas mais uma arma para fazer aliados e massacrar rivais do que servir à sociedade. 

 

Correio Braziliense pioneiro? Há dúvidas. Há quem considere que o primeiro jornal do Brasil foi a Gazeta do Rio de Janeiro, porque aqui impresso, e não o outro, que além de fugir às características de jornal, era editado na Inglaterra.

 

 Polêmica mais aguda é defendida por Djalma Alves de Azevedo, no livro “A Imprensa do Brasil Nasceu em Minas Gerais”. O exemplar que tenho foi publicado em 2000, pela editora Armazém de Idéias Ltda. Segundo o autor, “registra a História que a Imprensa do Brasil nasceu foi em Minas Gerais, em 1807, quando a Ordem Régia de 6 de julho de 1747, “síntese da política opressora e obscurantista do tempo”, foi desafiada pelo próprio Governador da Capitania, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, Visconde de Condeixa, e pelo Padre-Jornalista José Joaquim Vargas de Menezes.” Transfiro a pendenga para o sempre bem informado jornalista, escritor, historiador, dicionarista e enciclopedista Fernando Jorge, pai de saberes antigos e a outros pesquisadores do nosso passado jornalístico. 

 

E no quintal mineiro, quem duvidar que confira como surgiram os jornais entre as nossas montanhas. O Diário de Minas (nasceu oposicionista, mas foi vendido ao PRM, um dos pilares da política café com leite, que vigorava na República Velha) e, em todas as fases, se manteve atrelado aos cofres do governo, como se fosse apenas um apêndice do veículo oficial Minas Gerais. E, bem depois, serviu até para acalentar os sonhos presidenciais do então governador Magalhães Pinto, que dele se desfez logo depois do golpe de 1964, após perceber que os militares não pretendiam descer do poleiro. 

 

Triste sina do DM, sempre usado por alguns aventureiros como gazua para ter acesso aos cofres públicos, até ser melancolicamente fechado em 1994, após denunciar o tucano Eduardo Azeredo pelo desvio de verbas do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. E disso dou testemunho porque foi lá, no início da década de 1970, que comecei a reportar os acontecidos.

 

 História parecida com o Jornal de Minas, que se banqueteou com as migalhas do palácio, renasceu como O Diário (período de engajamento religioso) e, após retomar o nome de origem, o JM penou nas mãos de uns e de outros espertalhões até publicar a última edição quando já não era lido e muito menos respeitado por ninguém. Também trabalhei no jornal durante sete anos. Sete? È número de mentirosos, mas provo que foi verdade. 

 

Os Diários Associados? Ora, todos sabem que desde o início os jornais de Assis Chateaubriand só empinaram duas bandeiras: a do lucro e em defesa das estripulias do patrão. Engajamento político? Pois sim! Apenas as que lhe aumentavam o poder e os lucros. 

 

Quem se lembra da campanha “ ouro para o bem do Brasil”, surgida na esteira do golpe civil-militar? Até minha santa mãezinha, iludida pelo sacana, doou anéis e a aliança, mas os cofres da nação não receberam nem um grama das centenas de quilos de ouro recolhidas e que seriam usadas para “pagar a dívida externa e salvar o Brasil do comunismo.”

 

Não, não estou pretendendo reescrever a história do jornalismo mineiro, apenas ouso afirmar que no início houve mais discussão literária do que política. Aos donos dos jornais interessava a pregação (e a subserviência) política; aos que faziam o jornal, o bom era discutir e publicar textos eruditos e versos bem medidos. E a efervescência – literária, apenas literária – ainda aumentou após a fase modernista com o rompimento da camisa de força da métrica. Faltou o debate político com a paixão idêntica à dos literatos, conforme se lê na tese de mestrado O Conservadorismo Católico na Imprensa de Belo Horizonte, de Ramiro Barbosa de Oliveira.

 

 Ousadia? Não, apenas constatação. Basta conferir a participação de Carlos Drummond de Andrade, Alphonsus de Guimaraens, Pedro Nava, Cyro dos Anjos, Emílio Moura, Eduardo Frieiro. Idem a geração seguinte, que enriqueceu as letras, mas politicamente se limitou quase ao folclore: Autran Dourado, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos…

 

Nos anos 20 do século passado, a palavra impressa em jornais mineiros ganhou importância até nos arraias católicos. O potencial da imprensa foi reconhecido pelas lideranças eclesiais e leigas como instrumento de intervenção social, sempre refletindo a visão do papa Pio XI, que defendia o conceito de uma “boa imprensa” com a tarefa de combater os inimigos do catolicismo e divulgar os ensinamentos cristãos. 

 

Dom Cabral, primeiro arcebispo de Belo Horizonte, foi o grande incentivador da iniciativa, que se tornou mais real e efetiva em 1935, com a primeira edição de O Diário. “Popularmente conhecido como Diário Católico, a publicação tornou-se o mais importante periódico católico da América do Sul”, conforme avaliação da pesquisadora Maria Ceres Pimenta Spínola Castro. Entre os principais redatores estavam Edgard de Godói da Mata Machado, João Franzen de Lima, Henrique José Hargreaves, Guilhermino César e João Etienne Filho (quatro décadas depois, meu professor de teatro no curso de Jornalismo).

 

 Nem a apaixonada argumentação dos defensores da fé conseguiam tornar o jornal viável economicamente e o vermelho era uma constante nas contas de cada mês. A pureza editorial barrava a presença de alguns anunciantes nas páginas do jornal, o que contribuía para os furos no caixa. 

 

Em outros jornais, pretensamente libertos da dicotomia do bem (catolicismo) contra o mal (ideias esquerdizantes), infelizmente, também em Minas, o poder da redação sempre se curvou ao poder da caneta, da caneta governamental. Sim, há a opinião pública, mas essa já foi desprezada até por José da Silva Lisboa, visconde de Cairu. 

 

 – “Opinião pública? Não conheço essa senhora.” 

 

Carlota Joaquina, a guria espanhola que se transformou na devassa esposa de Dom João VI, foi grande em duas coisas: no ódio ao Brasil e na ânsia de ser coroada rainha da América (área sob influência espanhola). E mesmo ela garganteou que “a vontade da multidão pode ser habilmente dirigida, pois o povo não tem outras convicções do que a do seu soberano”. 

 

E o que acontece hoje com a “opinião pública” imposta pela mídia? Não respondo para não acirrar a intolerância.  Será que foi apenas com esse objetivo que surgiram a Tribuna de Minas (do Adhemar de Barros), Correio do Dia (arma da UDN para impedir a chegada de JK ao Catete) e o Correio de Minas (do PSD, para viabilizar o retorno dele à presidência)? 

 

Pouca coisa sei, mas uma delas é que dá uma preguiça danada ler os jornais. Hoje não temos a sustentação cultural do início e nem a fogosa militância dos anos 60. A reportagem é um bem comportado exercício de comodismo e mesmice; não há aprofundamento nem coragem. Pior ainda. Provado está que o jornalismo de hoje comete outro pecado: quem o faz nem sabe escrever, tropeça nas concordâncias e as frases trombam com a coerência. 

 

Há futuro? Difícil de acreditar diante do tatibitate e do self service da internet.

Fotografia de Hermínio Prates

 

Hermínio Prates é jornalista, escritor, ex-professor universitário de Jornalismo, Rádio e Teoria da Comunicação na UFMG, UNI-BH, PUC e Newton de Paiva. Foi repórter e redator do Diário de Minas, Jornal de Minas, Minas Gerais, Rádio Itatiaia, diretor de Jornalismo da Rádio Inconfidência, chefe das Assessorias de Comunicação das Câmaras Municipais de Sabará e de Belo Horizonte e da UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Publica regularmente contos, crônicas e artigos em vários jornais mineiros. Autor dos livros Família Miranda – Vidas e Histórias ( ensaio historiográfico) e A Amante de Drummond (contos).




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