Política

Bolsa Família, 20 anos de inclusão social e combate à fome | Havana de Moraes Marinho, Jales Marinho

A despeito de ter sempre existido fome, a perspectiva é de que se trata de um fenômeno social, criação do próprio homem, portanto responsabilidade dos próprios homens e não da natureza”,

Josué de Castro, médico, geógrafo e cientista social. 

 

                        A experiência com programas de transferência de renda teve início em 1995 pelo governo Cristovam Buarque (PT), no Distrito Federal, com o nome de Bolsa Escola, e na prefeitura de Campinas (SP), pelo então prefeito José Roberto Magalhães (PSDB), com o nome de Programa Renda Mínima, idealizado pela professora da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Ana Medeiros da Fonseca. A iniciativa foi inspirada nas ações de combate à fome, implementadas na década de 80 pelo sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho. 

 

Antes é importante destacar o pioneirismo do mestre Josué de Castro no debate sobre a questão da fome no país. Ainda em 1940, Castro idealizou e elaborou o que veio a ser o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), viabilizado pelo Decreto-Lei nº. 2.478, que tornou realidade os primeiros restaurantes populares. O objetivo era permitir alimentação adequada aos trabalhadores, com a obrigatoriedade das empresas de instalar os primeiros refeitórios no ambiente de trabalho. 

 

                  Em complementação à Renda Mínima foram lançados em seguida o Vale-Gás, Vale-Luz, entre outros. As experiências foram retomadas por Ana Fonseca, a partir do ano 2000, como Coordenadora do Programa de Renda Mínima da Prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy (PT). Ainda na prefeitura paulistana Ana iniciou os estudos para unificar todas essas ações em um único programa, dando origem ao Bolsa Família.  

 

               No início de 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso lançou o Bolsa Escola federal, a partir das experiências dos governos do Distrito Federal e de Campinas, chegando a atender cerca de 5,5 milhões de beneficiários, incluindo todos esses programas sociais, com um orçamento anual de cerca de R$ 2 bilhões em 2002, segundo o Orçamento da União. 

 

                  Com sua posse em 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva colocou o combate à fome e à pobreza entre as prioridades do governo. Em razão da experiência na Prefeitura de São Paulo, Ana Fonseca foi chamada para coordenar o Programa Bolsa Família, criado pela Medida Provisória 132, de 20 de outubro, e transformada em Lei 10.836/2004. Vinculada à Presidência da República e com um orçamento inicial de R$ 5,3 bilhões, coube a essa Secretaria Executiva concluir a unificação dos benefícios sociais, destinados às famílias em situação de exclusão social em forma de transferência de renda, via cartão digital.

 

                 Ao mesmo tempo o governo lançou, também em 2003, o programa Fome Zero, idealizado por pesquisadores da UNICAMP, sob coordenação do economista e professor José Graziano da Silva. Como ministro, Graziano foi encarregado da execução dessas políticas públicas de combate à fome e à miséria a partir da criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional – MESA, em parceria com outros 16 Ministérios. 

 

                 As demais políticas sociais seguiram no então Ministério de Assistência Social – MAS, até janeiro de 2004, quando o governo criou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, reunindo o MESA, o MAS e a Secretaria do Bolsa Família. Para o novo Ministério foi indicado o então deputado federal Patrus Ananias (PT), de Minas Gerais, que permaneceu na pasta até 2010, no final do segundo mandato do presidente Lula.

 

                   O MDS firmou parceria com gestores estaduais e municipais, entre outros órgãos públicos de fiscalização, visando reforçar o controle e os critérios técnicos de elegibilidade do programa. De 2003 a 2013, o Ministério investiu R$ 2,7 bilhões na ampliação da rede física de proteção social, que resultou na elevação de 400 para 10 mil Centros de Referência de Assistência Social – CRAS e Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS, responsáveis pela gestão do Castro Único das famílias beneficiadas e coordenação da busca ativa domiciliar. 

 

                  Como ação complementar, em 2011, o governo Dilma Roussef lançou o Programa Brasil Sem Miséria, ampliando as ações afirmativas de combate à fome e à pobreza. Em parceria com outros Ministérios, como o MDA, de Desenvolvimento Agrário, visando o fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, e da agricultura familiar. 

 

                   Graças à universalização da cobertura do Bolsa Família, com a massificação do número de beneficiários, além da focalização nas populações mais vulneráveis socialmente, o Programa contribuiu para a redução da pobreza extrema em 15% e da pobreza, em 25%, durante essas duas décadas, apesar do retrocesso dos últimos seis anos, em especial com a manipulação política dos critérios de elegibilidade, desvio de finalidade da destinação do benefício e o total descontrole da execução do programa. 

 

                     Para se ter ideia do descaso com o programa, o último governo reduziu o orçamento do programa de R$ 32,5 bilhões, em 2019, para R$ 29 bilhões em 2020. Mesmo assim, foram pagos apenas R$ 19 bilhões em forma de transferência de recursos aos beneficiários, segundo a Subsecretaria de Planejamento do então Ministério da Economia.                                         

 

                       Com a falta de compromisso com as políticas de transferência de renda nos últimos seis anos, durante os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, o número de beneficiários caiu para 11 milhões. Fato agravado pelo uso político-eleitoral do programa, como a inclusão, sem critério técnico e ignorando as condicionalidades, de milhares de beneficiários. Inicialmente, usando como desculpa o emprego em razão da pandemia de Covid 19, a partir de 2020, e em 2022, com o abusivo uso político e econômico do programa, por se tratar de ano eleitoral, como foi denunciado posteriormente pelo Tribunal de Contas da União – TCU.  

 

                     Em conjunto com as demais ações contempladas no programa Fome Zero, em especial as ações de combate à fome e de segurança alimentar e nutricional, o Bolsa Família foi responsável pela maior redução dos índices de pobreza e fome da história do país. Especialmente a partir da criação do MDS, em 2004, quando foi possível retirar cerca de 36 milhões de brasileiros da pobreza extrema, segundo o livro Fome Zero – Uma História Brasileira, publicado no site do próprio MDS em 2010.

 

                   A focalização explica por que, mesmo representando 3% do Produto Interno Bruto – PIB, com cerca de R$ 70 bilhões no orçamento de 2023, e da sua limitada participação na renda das famílias, segundo a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio – PNAD, o programa contribuiu para tirar 36 milhões de brasileiros da miséria até 2016. E pela primeira vez na história o Brasil foi excluído do mapa da fome, segundo a Fundação das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO. Além do reconhecimento desse órgão da ONU, a experiência do Bolsa Família foi exportada para mais de 100 países até 2015. 

 

                     Outro aspecto positivo foi a ampliação da mobilidade social, o que explica o fato de que apenas 20% dos beneficiários permanecem no programa após 15 anos da sua inclusão no Cadastro Único, segundo o estudo Os Efeitos do Programa Bolsa Família sobre a Pobreza e a Desigualdade: Um Balanço dos 15 anos, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, publicado em 2019.

 

                       O sucesso do programa decorreu também das exigências de contrapartidas para obtenção do benefício, como a frequência escolar, a vacinação de crianças menores e o acompanhamento médico das gestantes cadastradas no programa, o que contribuiu para a redução da mortalidade infantil da ordem de 28%, entre 2001 e 2019, segundo estudo do Instituto de Saúde Global de Barcelona, realizado em 2021 com a participação de pesquisadores brasileiros.

 

Um outro aspecto relevante da implementação do Bolsa Família refere-se ao recorte de gênero. O programa, ao priorizar o pagamento para as mulheres responsáveis pelas famílias, acabou promovendo autonomia e equidade para essas mulheres, geralmente reféns do machismo, da violência patrimonial, psicológica e por vezes, até física. 

 

  A chefia da família e a gestão financeira dos recursos viabilizou que as mulheres pudessem resguardar a todos, gerenciar os valores de forma responsável, assegurando uma verdadeira melhoria de vida das famílias, tanto no acesso à alimentação quanto na saúde e educação. 

 

Em 2004, ao anunciar que 5 milhões de famílias estariam cadastradas no Bolsa Família, o então Presidente Lula disse: “Esse cartão é importante porque nós entregamos à mulher. É a mulher que é a beneficiária deste cartão”.1 Ou seja, a mulher, que historicamente dentro da estrutura patriarcal tem como atribuições o cuidado e a família, teria autonomia e equidade ao ser também a responsável financeira da casa. 

 

           Importante ressaltar que, por vezes, homens gastam os recursos da família em jogos de azar, bebida, cigarro entre outros vícios. E é expressivo o número dos que abandonam suas companheiras gestantes e a própria família. Em 2012, cerca de 9,6 milhões de mulheres cuidavam sozinhas de seus filhos. Já em 2022 esse número teve um aumento de 17%, representando 11 milhões de mulheres consideradas “mães solo”.2

 

O recorte de gênero aplicado nesta política pública assegurou a gestão eficiente dos recursos do Bolsa Família, resultando em uma maior assertividade dos objetivos alcançados pelo Governo Federal, entre eles a possibilidade de ascensão social. Há múltiplos exemplos desses casos de mobilidade social de famílias e de jovens egressos do Bolsa Família. Seja através do acesso ao ensino superior e cursos de extensão, como mestrado e doutorado no Brasil e no exterior, seja no empreendedorismo. 

 

             A imposição de condicionalidades, o critério rigoroso de seleção – segundo a renda per capita, a limitação do número de beneficiários e a ascensão social – eliminaram o viés assistencialista que marcou inicialmente o Bolsa Família. Mesmo assim, foi possível elevar de 5 milhões em 2002, ainda como Bolsa Escola (e outros programas), para 11 milhões de beneficiários em 2006, alcançando 14,1 milhões em 2016, conforme informações retiradas do site do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS.

 

                       Além de estimular a mobilidade social, o maior efeito do programa foi no fortalecimento da economia, com a ampliação da capacidade de consumo das famílias, especialmente a partir da crise econômica global de 2008, que levou o governo a reforçar o orçamento do programa e ampliar o número de beneficiários. Sabe-se que quanto maior o consumo interno, maior o crescimento do comércio e da indústria, além da área de serviços, com amplos reflexos na geração de emprego e renda e na retomada do crescimento econômico.

 

                        Os maiores saltos do Produto Interno Bruto do Brasil se deram no período entre 2007 e 2010, com um crescimento de 6,07% em 2007, 5,09%, em 2008, 3,97%, em 2009 e 7,53% em 2010, segundo a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, o que contribuiu para que o país enfrentasse com menos sobressalto, a crise que assolava a economia global. Estudo realizado pelo IPEA em 2013, sob a coordenação do pesquisador Marcelo Neri, ex-presidente do Instituto, cada real investido no Bolsa Família representa uma injeção de R$ 1,78 no PIB, o que reforça a importância dos programas de transferência de renda no fortalecimento da economia.

 

Com o orçamento da ordem de R$ 70 bilhões este ano e uma previsão de R$ 169 bilhões em 2024, segundo a Lei Orçamentária Anual – LOA, será possível elevar o valor individual do benefício e a inclusão de novas famílias no programa. A transferência desses recursos, reforçada pela ampliação das demais ações de inclusão produtiva, terão reflexos positivos na renda das famílias, levando a um círculo virtuoso na economia brasileira nos próximos anos. Tudo isso permitirá ao país experimentar uma nova fase de desenvolvimento econômico e de redução das desigualdades sociais e regionais.

 

Notas

 

1 https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2004-09-16/lula-destaca-importancia-das-mulheres-para-bolsa-familia <Acessado em 22/09/2023>

 

2 https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-05/cresce-quantidade-de-maes-que-criam-os-filhos-totalmente-sozinhas#:~:text=Publicado%20em%2014%2F05%2F2023,de%2011%20milh%C3%B5es%20em%202022. <Acessado em 22/09/2023>.

 

Fotografia de Havana de Moraes Marinho

 

Havana de Moraes Marinho, Jornalista, Cientista Política e Advogada.

 

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Jales Marinho, Jornalista e Advogado.

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