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Galaico-português e a infrutífera discussão entre galegos e portugueses | Wesley Sá Teles Guerra

cantigas em Galaico Português fazem parte da literatura de ambas as regiões.

Sem dúvidas, você já estudou, viu alguma notícia ou participou de alguma discussão sobre a relação histórica entre Galiza (região autónoma da Espanha) e Portugal, além do papel do idioma galego dentro da lusofonia.

 

Uma discussão com vários lados que, sem dúvidas, é fortemente marcada por paixões identitárias e construções historiográficas e ideológicas, de dois dos Estados Modernos mais antigos da humanidade.

 

Porém, é muito comum ver análises rasas ou posicionadas, fruto de interpretações modernas que pouco têm a ver com a realidade, já que a história da região é conturbada e não linear, embora tanto a Espanha como Portugal, em sua construção de Estados Nacionais, busquem desesperadamente estabelecer uma ordem partindo da configuração territorial do Império Romano e sua queda aos tempos modernos, negligenciando as populações e culturas que existiam previamente e a inexistência de fronteiras, assim como a não participação da população em geral nos processos decisórios, sendo que muitas das decisões eram tomadas por grupos familiares e suas desavenças. 

 

Pois a História da Península Ibérica é repleta de eventos que moldaram as culturas, línguas e fronteiras da região ao longo dos séculos. Uma das questões mais controversas e persistentes tem sido a relação entre os galegos e os portugueses, dois grupos étnicos que compartilham uma herança cultural e linguística significativa e que geneticamente, segundo estudos recentes, partilham praticamente a mesma origem. Esta discussão abrange a história do Reino de Gallaecia, a formação territorial e linguística da região de Galiza e do norte de Portugal, a fundação do Reino de Portugal, a fronteira entre Galiza e Portugal (uma das mais antigas do mundo), os movimentos reintegracionistas, o nacionalismo galego e português, o impacto das ditaduras na historiografia de ambos os países (Espanha e Portugal) e as tentativas de reintegrar a região com projetos como as Eurocidades, a Euro Região Galiza-Norte de Portugal e a Lei Valentim Paz Andrade de 2014.

 

A História do Reino de Gallaecia

 

O ponto inicial dessa discussão surge em meio ao caos que representou no Ocidente a queda do Império Romano, a qual não foi um evento marcado e isolado, mas a consecução de uma série de fatores, entre eles  a invasão dos povos bárbaros que constituíram as primeiras monarquias na região Ibérica. Um desses reinos foi a Gallaecia, um dos primeiros territórios reconhecidos dentro da complexa divisão territorial romana e que existiu na região noroeste da Península Ibérica durante a Idade Média.

 

Divisão da Península Ibérica pelo Imperador Diocleciano. Século III DC

A Gallaecia englobava áreas que hoje correspondem à Galiza, norte de Portugal e partes do norte da Espanha. A língua falada na região, conhecida como Galaico-Português, desempenhou um papel fundamental na formação das línguas galega e portuguesa modernas. Embora esse ponto inicial possa ser amplamente discutido, já que as populações locais, prévias ao domínio romano, partilhavam de elementos comuns e salvo os lusitanos do centro-sul do atual Portugal, foram vistos de forma unitária pelos cronistas romanos. Assim mesmo a designação de Galaico-Português pode ser igualmente discutida, sendo talvez uma construção muito mais recente e com o mero intuito de gerar um divisor que irá se aprofundar entre ambos os idiomas (Galego e Português), que em essência eram o mesmo, ao final o Português tem origem no termo Portus Cale (cidade do Porto), uma parte integral do reino de Gallaecia e que consequentemente não deveria adicionar uma divisão sendo o Galaico o termo mais puro e talvez o mais correto.

 

Mirus Rex Galliciensis “Mirus Rex Galliciensis” (Gregório de Tours [539 – 594 d.C.] Liber historiae Francorum. Livro V. Cap. 41 [575 – 584 d.C.]) e como “Mironis Galliciensis Regis” (Gregório de Tours [539 – 594 d.C.] Liber historiae Francorum. Livro VI. Cap. 43 [575 – 584 d.C.])

A historiografia fará com que esse povo Gaellico seja visto de forma dual, no intuito de justificar tanto a versão espanhola como a portuguesa da História, retirando qualquer indício de homogeneidade, sendo o mesmo observado sempre desde uma ótica banhada por elementos identitários modernos e por uma visão linear e ordenada dos acontecimentos, algo totalmente improvável, mas que reforça o ditado “A história é escrita pelos vencedores” e assim como ambos países (Espanha e Portugal) falam de uma suposta “reconquista” em relação aos 8 séculos de presença muçulmana na Península Ibérica, tratam de tecer artificialmente uma trama que explique a sua própria evolução territorial e cultural. 

 

Formação Territorial e Linguística da Região de Galiza e Norte de Portugal

 

A formação das atuais regiões da Galiza e do norte de Portugal é de fato um processo complexo que envolveu a influência de diferentes povos e culturas ao longo dos séculos. Os galaicos, um grupo pré-romano, que habitavam a região da Galiza e que foram romanizados durante o domínio romano, talvez explique a evolução vista desde um ponto de vista linear, mas se distancia das evidências arqueológicas. Posteriormente, a região foi invadida por visigodos e mouros, contribuindo para a diversidade cultural e linguística que, por sua vez, iriam retratar os eventos de modo a justificar sua própria dominação.

 

presença da Galicia no mapa mundi

 

É por esse motivo pelo qual considero que a discussão entre Galegos e Portugueses tem muito mais a perder que a ganhar, justamente pelo fato de que se busca justificar e retratar os eventos de modo a explicar a atualidade, partindo das divergências em lugar das convergências. 

 

“Dois irmão siameses, separados por contendas familiares” Wesley S.T Guerra

 

Essa é uma frase que uso muito em minhas palestras e participações de eventos da galeguia e lusofonía, pois não são as águas do Miño ou Minho fortes o bastante como para separar dois povos que de fato foram os mesmos, mas sim as construções sociais, muitas vezes, egoístas daqueles que exercem a sua dominação, no caso os governos nacionais de Portugal e Espanha como veremos mais à frente.

 

cantigas em Galaico Português fazem parte da literatura de ambas as regiões.

 

A Língua Galaico-Portuguesa, que se desenvolveu durante essa época, influenciou significativamente a formação das línguas galega e portuguesa modernas. Ambas as línguas compartilham muitos traços linguísticos comuns, mas ao longo do tempo, desenvolveram características distintas, ou ao menos essa é a versão oficial, quando é conhecido o fato de que o galego foi perseguido ao longo dos séculos, principalmente durante o reinado dos Reis Católicos e posteriormente durante as ditaduras de Primo de Rivera e de Francisco Franco (galego por sinal), que forçaram a sua aproximação ao castelhano diante de uma iminente desaparição.  Ou seja, não foi um processo natural fruto da diferença entre estes povos, mas sim uma imposição fruto do domínio do Espanhol e das desavenças entre as forças dominantes. 

 

A Fundação do Reino de Portugal

 

O Reino de Portugal foi fundado no século XII, quando Dom Afonso I, conhecido como Afonso Henriques, declarou a independência do Condado Portucalense do Reino de Leão. Essa independência marcou o início de uma nação que viria a se tornar Portugal, com sua própria língua, cultura e identidade. Porém o que existe de certo em tal afirmação?

 

Dá a entender que Portugal surge do nada, e ainda menciona o Reino de Leão que, em essência era o reino da Gallaecia e cujas lápides dos monarcas estavam talhadas com o  título de “Rei de Gallaecia”. Porém, esse fato é totalmente negligenciado já que não cabe na construção nacional do Reino da Espanha como uma derivação da junção entre Castela e Leão e, posteriormente, Aragão. 

 

A Fronteira Entre Galiza e Portugal

 

A fronteira entre a Galiza e Portugal é uma das mais antigas do mundo e tem raízes profundas na história da Península Ibérica. Ela foi definida em tratados e acordos ao longo dos séculos, como o Tratado de Windsor de 1386, que estabeleceu a fronteira atual entre os dois países. Apesar das discussões sobre a delimitação exata, essa fronteira tem se mantido estável ao longo dos anos. Porém, será que a mesma conseguiu de forma natural dividir duas partes que já estavam em essência separadas tal e como o termo galaico-português nos dá a entender, ou de fato serviu justamente para separar a unidade que antes existia?

 

Movimentos Reintegracionistas e Nacionalismo Galego

 

Essas incongruências históricas, fruto de uma construção artificial dos Estados Nações e do próprio Estado Moderno foram sempre questionadas pelo ator mais esquecido ao longo da historiografia… o povo. 

 

Os movimentos reintegracionistas na Galiza buscam estabelecer uma maior proximidade entre o galego e o português, argumentando que ambas as línguas têm raízes comuns e que devem ser tratadas como variantes de uma mesma língua. Esses movimentos têm enfrentado resistência e críticas, principalmente por parte dos nacionalistas galegos e portugueses, que defendem a preservação da língua e cultura galegas como únicas e distintas, ampliando uma divisão magistralmente orquestrada. 

 

Nacionalismo Português

 

Em Portugal, o nacionalismo é marcado pela ênfase na preservação da língua e cultura portuguesas. Durante o período do Estado Novo, sob a liderança de Salazar, houve uma promoção ativa do nacionalismo português, com a imposição do uso do português padrão e a supressão de línguas e culturas regionais. O que, sem dúvida, resultou na total separação do Galego e do Português, agregando a construção histórica doses do patriotismo fascista tão amplamente utilizado durante as ditaduras, assim como Franco fez ao usar uma e outra vez o termo “espanhol” para a língua castelhana. 

 

Impacto da Ditadura na Historiografia

 

Tanto em Portugal quanto na Espanha, as ditaduras tiveram um impacto significativo na historiografia. A censura e a reescrita da história foram comuns durante esses períodos autoritários, o que dificultou uma análise objetiva e imparcial da história da região e das relações entre galegos e portugueses. Algo que perdurou em ambos os países, já que os elementos identitários de ambas as regiões foram amplamente consolidados e hoje ecoam nos mais conservadores, pois não somente coloca em dúvida as bases históricas nas quais se consolidam ambas as nações como geram a possibilidade de novos sentimentos e filiações que não interessam nem ao governo de Madri nem ao de Lisboa, já que o mesmo representa um fator importante na unidade nacional e na própria percepção que cada país construiu para seu povo.

 

Jornal de A Coruña sob o uso do Espanhol como língua durante o franquismo.

 

Tentativas de Reintegração e Cooperação

 

Sem embargo, como dividir um povo cujo passado comum ecoa e que é perceptível? Como separar e individualizar algo que surge de  uma base em comum?

 

Nos tempos mais recentes, têm surgido tentativas de cooperação e reintegração entre a Galiza e Portugal. Projetos como as Eurocidades, que promovem a colaboração transfronteiriça, a Euro Região Galiza Norte de Portugal estabelecida pela União Europeia que visualiza a sinergia da região, assim como a Lei Valentim Paz Andrade de 2014, que busca facilitar a cooperação entre as duas regiões em diversas áreas, demonstram um esforço para superar diferenças históricas e fortalecer os laços culturais e econômicos entre galegos e portugueses.

 

Euro-Região Galiza E Norte de Portugal.

 

O Minho ficou pequeno para dividir aqueles que historicamente foram separados propositalmente e divididos por narrativas históricas…

 

Conclusão

 

A discussão sobre a relação entre galegos e portugueses é uma questão complexa que abrange uma longa história de eventos, fronteiras e culturas compartilhadas. Embora os movimentos reintegracionistas busquem estreitar os laços linguísticos e culturais entre esses grupos, o nacionalismo galego e português, bem como o impacto da ditadura na historiografia, continuam a moldar essa discussão. A cooperação e as iniciativas de reintegração recentes oferecem a esperança de que a história comum dessas regiões possa ser um ponto de partida para uma colaboração mais ampla e frutífera no futuro, pois a Galiza é tão lusófona como Portugal é parte da Galeguia.

 

Fotografia de Wesley Sá Teles Guerra

 

Wesley Sá Teles Guerra, formado em Negociações Internacionais pelo Centre de Promoció Econômica del Prat de Llobregat (Barcelona), Bacharel em Administração pela Universidade Católica de Brasília, Pós-graduado em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, MBA em Marketing Internacional pelo Massachussetts Institute of Business, MBA em Parcerias Globais pelo ILADEC, Mestrado em Políticas Sociais com especialização em Migrações pela Universidade de A Coruña (Espanha), Mestrado em Gestão e Planejamento de Cidades Inteligentes (Smartcities) pela Universitat Carlemany (Andorra) e doutorando em Sociologia e Mudanças da Sociedade Contemporânea Internacional. 

Atuou como paradiplomata e especialista em cooperação internacional e smartcities para a Agência de Competitividade da Catalunha (ACCIÖ – Generalitat de Catalunya), atualmente é colaborador sócio do Instituto Galego de Análise e Documentação internacional (IGADI) e do Observatório Galego da Lusofonia (OGALUS), Também participa como coordenador da área de Economia, Ciência e Tecnologia do CEDEPEM – UFF.

Idealizador e diretor do CERES – Centro de Estudos das Relações Internacionais, membro do Smart City Council, do IAPSS International Association for Political Sciences Studentes, do Consório Europeu para a Pesquisa Política, REDESS, Centro de Estratégia e Inteligência das Relações Internacionais e colaborador da ANAPRI.

Autor dos livros ”Cadernos de Paradiplomacia” (2021) e “Paradiplomacy Reviews” (2021) além de participar do livro “Experiências de Vanguarda, no ensino nos países lusófonos” publicado em 2021 pelo CLAEC e organizado pela Dra. Cristiane Pimentel. 

Professor, articulista e especialista: wesleysateles@hotmail.com




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