Cultura

Fantasma | Demétrio Panarotto

Os escritores são tão distraídos que eu, por exemplo, morri segunda-feira da semana passada, 33 de dezembro de 2046, e sigo aqui achando, sem simplicidade alguma que me absolva, que minha morte não passava de ficção. 

 

Deixei o silêncio cair na eternidade.

 

[Se eu fosse uma divindade – eu ia usar a palavra na exuberância do sentido grego, mas podem manuseá-la como bem entenderem–, é bem provável que vocês não aceitariam a minha presença] 

 

a palavra cai 

do papel terra

do coração brotam azaleia 

lavanda e alfazema

 

Ergo a cabeça.

 

O fantasma (que vinha em minha direção) se parecia muito com o meu pai ou com o fantasma do meu pai. Nunca tive medo de fantasmas ou acreditava que o medo, ou a suposição do medo, não me pertencia. Pungente, e em estágio constante de contradição, carregava a tiracolo todos os medos que a sociedade havia pendurado em mim desde o nascimento ou a concepção, desde o momento em que me senti ou sentiram que eu fazia parte deste local de passagem do insignificante para o nada.

 

Os medos foram sendo distribuídos.

 

Eram dos outros, mas eram meus também. Tendo claro que é assim que se molda um anão meio sóbrio, meio borracho que passa facilmente a compactuar com a mesmice de sempre.

 

Diante da situação, como se fosse um signo entre o texto e o interesse pelo que restava de indiferença, percebo que me indispus comigo ou com aquilo que escrevia.

 

Sem que fosse uma necessidade e me percebendo como uma fantasmagoria, perpasso outra vez os dizeres recém-escritos para vislumbrar se o sentido dado ao sinuoso amálgama das palavras está o mais próximo possível daquilo que eu imaginava antes de as dúvidas me consumirem e deixo o texto correr pelas páginas.

 

A história que conto ganhou outro desdobramento precisamente no instante em que o fantasma – que vinha em minha direção e que se parecia com o meu pai ou, grafo outra vez, com o fantasma do meu pai – ergueu o braço. 

 

No começo não percebi se era um cumprimento, um aceno ou se tinha o intuito de pedir que eu permanecesse parado.

 

Restaram, na junção dos escombros, aquela mão parada no ar chamando minha atenção e eu, hipnotizado, tentando processar a dúvida. 

 

O fantasma não parou e, quando ergui o braço na direção dele, antevendo o choque, eis que meu pai, causando um curto-circuito enfadonho, atravessou os restos da minha sanidade.

 

Era como se uma parte do corpo tivesse retornado e brigado consigo para se encaixar.

 

Foi com a sinestesia do choque que, além de perder no invisível a imagem translúcida que há muito tempo não via com aquela suposta nitidez, escutei o primeiro estouro e logo em seguida outros tantos, um atrás do outro.

 

No começo não entendi do que se tratava até me certificar de que Chapecó, na simplicidade metódica que a constituiu e que a mantém em estado sovina, estava sendo bombardeada. 

 

Como assim bombardeada?

 

(Chapecó bombardeada parece uma piada, e era, acho eu.)

 

Transitivamente, a quantidade de estouros foi aumentando e eles pareciam cada vez mais altos e próximos, assim à medida dos ouvidos.

 

Foi quando, tomado por certa distração, resolvi me certificar do que se tratava espiando pela fresta da janela, uma veneziana que apodrecia no esmero do restante da casa.

 

Eram porcos, frangos e perus que caíam do céu.

 

Eram despejados, no meu sofrível grau de inspiração, por boeings B52 que, além da sensação de descompasso, faziam soar na cidade uma canção da banda
The B-52. Um filme de terror ou uma comédia ou… enfim, a avaliação estética da cena a posteriori se daria no modo como o desenho de som se delineasse para os ouvidos mais ou menos apurados.

 

Os frangos e os perus, com suas asas e plumagem, minimamente conseguiam amenizar a queda – eram bombas pequenas e não provocavam o mesmo surto. 

 

Os porcos, não.

 

Estatelavam-se de uma maneira impressionantemente grotesca e ruidosa, como se não fosse sobrar nada depois do choque do corpo com a surdez do asfalto, e logo em seguida já estavam em pé e prontos para o combate.

 

(o assovio que os cachaços faziam no ar, na fricção da carcaça com o vento, era delicioso, parecia fogos de artifício em festas de quermesse naquela época em que os fogos eram aceitos com outros olhos)

 

Pow.

 

E mais e mais e mais…

 

Era um contrassenso entre a comédia romântica dos porquinhos vermelhos, de Miyazaki, e os diálogos dos porcos com Homero, de Plutarco; isso tudo acontecendo em um local de pessoas que se mantinham o mais longe possível dos livros e que logo adotaram os porcos para o seu deleite. 

 

(a morte sempre esteve sobre a cabeça dos moradores)

 

Enfim, no fastio da cidade cabia qualquer coisa.

 

A única sinceridade que restava era a de que os estrupícios caíam do “cruz credo” sem dó nem piedade.

 

Na prodigiosa opulência dos moradores daquela página sonolenta de acontecimentos se ouviam rezas, gritos, alaridos, alarmes, sirenes… 

 

… gente como gente é quando se sente pressionada no botão do medo que cada um carrega.

 

A TV e a rádio, numa opulência resignada, transmitiam tudo em segunda mão, eram os próprios moradores que enviavam seus áudios, vídeos, depoimentos.

 

Na maioria deles, as pessoas juravam que nunca tinham comido salame na vida, como se por essa premissa passasse a culpa silenciosa da revolta que ali se instalava.

 

A hashtag #eununcacomisalame era a mais compartilhada.

 

Num dos vídeos um moço, gaguejando em virtude da situação e suando em demasia por indução, dizia que só tinha comido presunto uma vez e que o havia feito de modo obrigado. Dava para sentir pelo áudio a bosta do cidadão trancafiada na prisão intestinal.

 

A igreja, entre o silêncio pomposo e a calvície decrépita de seus seguidores, fazia o favor de alarmar ainda mais o povo de deus.

 

O padre, em tom telúrico de cidade manteiga rançosa e agarrado no coroinha, balançava o sino da igreja num desespero sacerdotal.

 

Os animais que até o momento comandavam a cidade marcaram uma reunião para decidir que providências deveriam tomar. A situação era insustentável e o prefeito, com cara de butibuti (isso sempre foi determinante na escolha dos alcaides que comandavam a cidade), não conseguia fazer contato nem com o governador, nem com o presidente. Era amigo do governador. Era amigo do presidente. Mas, em momentos como esses, as amizades são sombras.

 

Alongava-se a fila de moradores (nas vias de acesso) que tinham abandonado os seus lares e buscavam se esconder em outras cercanias. Todavia, os fujões não contavam com o fato de que, na direção das quatro melodramáticas entradas e saídas da cidade – trevo, Nonoai, Seara e Águas de Chapecó–, havia pessoas fugindo no sentido contrário. 

 

(As ratazanas quando se encontram na encruzilhada são ainda mais prodigiosas.)

 

O aeroporto, como todos podem imaginar, já estava sob o domínio da porcaiada.

 

Regurgitando pormenores, estávamos em meio a uma guerra e só fui entender isso na abundância dos fatos.

 

Não foram os porcos que a declararam e, mesmo com a imprudência retórica, imagino que todos entenderam o que quis dizer.

 

Há, e jamais duvidem disso, uma dívida em vida que precisa ser paga em algum momento e em espécie. Não há (nestas horas) nem céu, nem inferno. Aqui se paga por tudo aquilo que se consome. Ainda mais quando a dívida alimenta uma quantidade absurda de mortes diárias que, sonoramente, arremessam valores aos cofres dos endinheirados.

 

Quem é que consegue dormir depois de acionar a descarga elétrica que mata milhares de animais por dia?

 

Vocês já ouviram o ruído desesperador dos porcos sendo abatidos?

 

Em pouco tempo, centavos de hora que não consigo precisar, os porcos assumiram o comando da cidade. 

 

Eles queriam levar os demais animais que habitavam o município para os chiqueirões, dar-lhes uma espécie de mesmo tratamento. Ração água luz vacina hormônios e condições para se reproduzirem fartamente.

 

Os porcos passaram a deter o controle das churrasqueiras.

 

Torresmo ou bacon?

 

A cidade estava sitiada. Mesmo com toda a tecnologia, não havia quem pudesse dar conforto aos moradores, “o negócio era aguardar por dias melhores”, foi o que disse o prefeito em sua última mensagem à frente do cargo depois de constantes insucessos em dar uma solução prática aos acontecimentos.

 

A transição foi sem dor.

 

Mas, somente quando os novos comandantes começaram a fatiar os cargos, as regalias e as demais benesses do município, ficou evidente que os porcos sempre estiveram no comando e as galinhas e os perus a reboque.

 

Acho que, na lenda local, esse é o momento em que se torna impossível reconhecer a diferença dos animais que iam para o abate diário daqueles que eram explorados pelos que se beneficiavam e prosperavam à custa dos animais abatidos e do poder público.

 

Porco é porco, mas pode virar toucinho.

 

O conflito talvez tenha sempre sido o mesmo.

 

A luta era pelo poder e os porcos de ontem apenas lutavam contra a perda do controle que, no andar da carruagem, havia migrado para os porcos de hoje.

 

A cara de porco dos moradores agora se justificava.

 

Ao fundo, os cheiros de estrume e carne sendo abatida permaneciam, talvez fossem os cheiros da cidade, dos moradores e dos porcos.

 

Na luz das esterqueiras o silêncio monótono, pálido, de quem havia perdido um parente, mas cuja conta bancária se mantinha intacta.

 

Não demorou e os moradores que pegaram a estrada, com uma revolta com consistência que desandou no percurso, retornaram para os seus lares com a mesma disposição que os tirou de casa.

 

Retornaram para os princípios repletos de meios que se justificavam à condolência dos fatos.

 

O resultado amargo, no fardo melancólico, não passou de um improviso que permaneceu suspenso como tantos outros.

 

O padre e o coroinha fizeram as pazes.

 

Os meios de comunicação voltaram a falar doce para não perder a extravagância dos valores públicos que caem mensalmente nos cofres para a manutenção do que se esforçam para chamar de jornais e de jornalistas.

 

Na manhã seguinte, um senhor, sentado em frente ao prédio onde antigamente se localizava um dos cinemas, percebeu que havia uma mudança nos porcos que eram levados aos abatedouros pelos caminhões que cruzavam a cidade, parece que eram de outra raça.

 

O dinheiro, ferrolho, continuaria a cair na conta dos mesmos, agora com alguns agregados.

 

Os porcos

e os porcos

e os porcos

e os porcos

e os porcos

no caso, os porcos,

os de sempre

seguiam à frente do noticiário.

Demétrio Panarotto (1969 – ) nasceu em Chapecó SC. É um músico, compositor, pesquisador, professor e literato brasileiro. Paralelamente a uma carreira musical com a Banda Repolho e projetos alternativos, louvados pela sua originalidade e irreverência, desenvolve atividades como acadêmico, palestrante e escritor. Publicou vários livros de poesia e prosa que lhe valeram o reconhecimento como um dos nomes de destaque da nova literatura do estado de Santa Catarina.

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