Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar o fenômeno das novas democracias no mundo, surgidas após o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim. Numa perspetiva crítica, o artigo questiona a qualidade e a legitimidade destas democracias, frequentemente marcadas por graves problemas como a corrupção, as violações dos direitos humanos, a exclusão social, a manipulação dos meios de comunicação social e a interferência externa. O artigo argumenta que essas democracias são, na verdade, uma farsa, uma forma de mascarar e legitimar o domínio das elites econômicas e políticas sobre as massas populares. O artigo propõe uma reflexão sobre os desafios e alternativas para a construção de uma democracia real e participativa, que respeite a soberania dos povos e promova o desenvolvimento humano.
Introdução
A democracia é um conceito complexo e polissêmico, que pode ser definido de diferentes maneiras e abordado a partir de diferentes perspetivas. De acordo com a etimologia da palavra, democracia significa o governo do povo, pelo povo e para o povo. No entanto, esta definição nem sempre corresponde à realidade histórica e contemporânea das sociedades que se dizem democráticas.
Segundo Bobbio (1986), a democracia pode ser entendida como um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com que procedimentos. Estas regras podem variar de acordo com o contexto histórico, cultural e político de cada sociedade. No entanto, existem alguns princípios básicos considerados essenciais para a existência de uma democracia, como a soberania popular, o sufrágio universal, o pluralismo político, a separação de poderes, o Estado de direito, os direitos humanos e as liberdades cívicas.
A partir do final do século XX, após o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, houve um processo de expansão e consolidação da democracia no mundo. Segundo Huntington (1991), este processo pode ser considerado como a terceira vaga de democratização da história moderna, que teria começado em 1974 com a Revolução dos Cravos em Portugal e prolongou-se até 1990 com a reunificação da Alemanha. Nesse período, cerca de 60 países passaram por transições políticas que resultaram na substituição de regimes autoritários por regimes democráticos.
Estas novas democracias foram celebradas como um triunfo dos valores universais de liberdade, igualdade e justiça. Foram vistas como uma oportunidade para superar os conflitos ideológicos do passado e construir um futuro de paz e prosperidade. Foram apoiados por organismos internacionais como a ONU, a OEA, a UE e o FMI, que ofereceram assistência técnica, financeira e diplomática para assegurar a estabilidade e o desenvolvimento destes países.
No entanto, passadas mais de três décadas deste processo, é possível questionar a qualidade e legitimidade destas novas democracias. Muitas delas apresentam graves problemas que põem em causa os princípios básicos da democracia. Entre esses problemas, podemos citar:
- Corrupção: é um fenômeno que afeta tanto os governantes quanto os governados, que envolve o uso indevido do poder público para obter vantagens privadas. A corrupção compromete a eficiência e a transparência da gestão pública, desvia recursos que deveriam ser destinados à prestação de serviços essenciais à população, favorece a impunidade e a injustiça, mina a confiança nas instituições democráticas e gera desigualdade social.
- A violação dos direitos humanos: é uma prática que atenta contra a dignidade e a integridade das pessoas, que impede o pleno exercício da cidadania e da participação política. A violação dos direitos humanos pode assumir muitas formas, como tortura, desaparecimento forçado, assassinato político, genocídio, racismo, sexismo, homofobia, xenofobia, entre outras.
- Exclusão social: é um processo que marginaliza e discrimina grupos ou indivíduos que não se enquadram nos padrões dominantes da sociedade. A exclusão social impede o acesso aos bens materiais e simbólicos necessários a uma vida digna e plena. A exclusão social pode ser causada por fatores económicos (pobreza), políticos (opressão), culturais (preconceito) ou ambientais (degradação).
- Manipulação da mídia: é uma estratégia que usa os meios de comunicação de massa para influenciar as opiniões e emoções das pessoas. A manipulação mediática distorce ou oculta informação relevante para a formação de uma consciência crítica e cidadã. A manipulação dos meios de comunicação social pode servir os interesses de grupos económicos ou políticos que controlam ou financiam os meios de comunicação social.
- Interferência externa: é uma intervenção que visa alterar ou influenciar o curso político de um país soberano. A ingerência externa pode ser realizada através de pressões diplomáticas ou económicas (sanções), ou através de operações militares ou clandestinas (golpes). A interferência externa pode ter motivações ideológicas ou estratégicas.
Perante estes problemas, podemos afirmar que estas novas democracias são, na verdade, uma farsa, uma forma de mascarar e legitimar o domínio das elites económicas e políticas sobre as massas populares. Estas elites aproveitam-se das fragilidades institucionais destes países para manter os seus privilégios e interesses em detrimento do bem comum.
Desenvolvimento
Nesta secção, analisaremos mais de perto cada um dos problemas mencionados na introdução, apresentando exemplos concretos de países que sofrem desses problemas.
Corrupção
A corrupção é um problema global que afeta tanto as democracias como as ditaduras. De acordo com o Índice de Perceção da Corrupção elaborado pela Transparência Internacional, nenhum país do mundo está livre de corrupção. No entanto, alguns países têm níveis mais elevados do que outros.
De acordo com esse índice, que varia de 0 (muito corrupto) a 100 (muito transparente), a média mundial em 2020 foi de 43 pontos, indicando um baixo nível de transparência. Entre os países considerados novas democracias, a média foi ainda menor: 37 pontos. Entre os países mais corruptos do mundo, vários são novas democracias, como Somália (12 pontos), Sudão do Sul (12 pontos), Síria (14 pontos), Iraque (21 pontos), Afeganistão (19 pontos), Venezuela (15 pontos), Nicarágua (22 pontos) e Haiti (18 pontos).
A corrupção nestas novas democracias manifesta-se de várias formas, tais como:
- Nepotismo: é o favorecimento de parentes ou amigos na ocupação de cargos públicos ou na concessão de benefícios. Um exemplo disso é o caso do presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, que nomeou sua esposa como vice-presidente em 2017.
- Clientelismo: é a troca de favores entre políticos e eleitores, que envolve a distribuição de bens ou serviços em troca de apoio político. Exemplo disso é o caso do ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acusado de comprar votos de parlamentares para aprovar seus projetos no Congresso Nacional.
- Patrimonialismo: é a confusão entre bens públicos e bens privados, que leva ao uso indevido da propriedade pública para fins pessoais. Exemplo disso é o caso do antigo Presidente do Zimbabué, Robert Mugabe, que acumulou uma fortuna estimada em milhares de milhões de dólares enquanto a população sofria com a pobreza e a fome.
- Tráfico de influência: é o uso do poder ou da posição para obter vantagens ou benefícios indevidos. Exemplo disso é o caso do ex-Presidente francês Nicolas Sarkozy, condenado por tentar subornar um juiz para obter informações confidenciais sobre uma investigação contra ele.
- O desvio de recursos: é o deslocamento ou desvio de recursos públicos destinados a uma finalidade específica. Exemplo disso é o caso do ex-presidente da África do Sul, Jacob Zuma, acusado de gastar milhões de dólares em obras de renovação da sua residência privada.
A corrupção tem consequências negativas para a democracia porque:
- Corrói a confiança dos cidadãos nas instituições e nos representantes políticos, gerando apatia, alienação e desobediência civil.
- Reduz a eficácia e a qualidade das políticas públicas, comprometendo o atendimento das necessidades e demandas da população.
- Acentua as desigualdades sociais, económicas e políticas, favorecendo os grupos mais ricos e poderosos em detrimento dos mais pobres e vulneráveis.
- Enfraquece o Estado de direito, favorecendo a impunidade, a arbitrariedade e a violência.
- Afeta a soberania nacional ao facilitar a ingerência de interesses externos nos assuntos internos do país.
Violação dos direitos humanos
Os direitos humanos são os direitos fundamentais que todo ser humano possui pelo simples fato de ser humano. São universais, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes. São reconhecidos e protegidos por instrumentos jurídicos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966).
Os direitos humanos podem ser classificados em três gerações:
- Direitos civis e políticos: são os direitos relacionados com a liberdade e a participação política dos indivíduos. Incluem o direito à vida, à integridade física e moral, à igualdade perante a lei, à liberdade de expressão, associação, reunião, religião, circulação, entre outros.
- Direitos económicos, sociais e culturais: são os direitos relacionados com as condições materiais e culturais necessárias a uma vida digna dos indivíduos. Incluem o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à alimentação, à habitação, à segurança social, à cultura, entre outros.
- Os direitos de solidariedade ou coletivos: são os direitos relacionados com os interesses comuns da humanidade e dos povos. Incluem o direito à paz, ao desenvolvimento, a um ambiente saudável, à autodeterminação dos povos, entre outros.
Apesar da existência destes direitos humanos, muitas novas democracias violam-nos sistematicamente e impunemente. Entre as formas de violação dos direitos humanos, podemos citar:
- Tortura: é um ato de violência física ou psicológica cometido contra uma pessoa para obter informações, confissões, castigos ou intimidação. Exemplo disso é o caso da prisão de Guantánamo, onde os Estados Unidos mantêm detidos suspeitos de terrorismo sem julgamento e em condições degradantes e cruéis.
- Desaparecimento forçado: é um ato de privação de liberdade de uma pessoa por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos que agem com a sua autorização, apoio ou consentimento, sem reconhecer a sua detenção ou informar o seu paradeiro. Exemplo disso é o caso das ditaduras militares ocorridas na América Latina nas décadas de 1970 e 1980, que sequestraram, torturaram e mataram milhares de pessoas contrárias aos regimes.
- Assassinato político: é um ato de eliminação física de uma pessoa por motivos políticos, ideológicos, religiosos ou étnicos. Exemplo disso é o caso do líder indígena brasileiro Paulo Paulino Guajajara, morto em 2019 por madeireiros ilegais que invadiram suas terras.
- O genocídio é um ato de extermínio intencional e sistemático de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Exemplo disso é o caso do genocídio arménio, ocorrido entre 1915 e 1923, quando o Império Otomano massacrou cerca de 1,5 milhões de arménios.
- O racismo é uma ideologia ou prática que discrimina ou humilha as pessoas com base na sua origem racial ou étnica. Um exemplo disso é o caso do apartheid na África do Sul, que ocorreu entre 1948 e 1994, quando o governo segregava e oprimia a maioria negra da população.
- Sexismo: é uma ideologia ou prática que discrimina ou humilha as pessoas com base no seu sexo ou género. Exemplo disso é o caso da violência contra as mulheres em todo o mundo, que se manifesta em formas como feminicídio, estupro, mutilação genital feminina, assédio sexual, entre outras.
- Homofobia: é uma ideologia ou prática que discrimina ou humilha as pessoas com base na sua orientação sexual ou identidade de género. Exemplo disso é o caso da perseguição aos homossexuais na Chechénia, que se arrasta desde 2017, quando as autoridades locais iniciaram uma campanha de detenção.
Conclusão
Neste artigo, analisamos o fenômeno das novas democracias no mundo, surgidas após o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim. Questionamos a qualidade e a legitimidade destas democracias, muitas vezes marcadas por graves problemas como a corrupção, as violações dos direitos humanos, a exclusão social, a manipulação dos meios de comunicação social e a interferência externa. Argumentamos que essas democracias são, na verdade, uma farsa, uma forma de mascarar e legitimar o domínio das elites econômicas e políticas sobre as massas populares.
Perante esta situação, propomos uma reflexão sobre os desafios e alternativas para a construção de uma democracia real e participativa, que respeite a soberania dos povos e promova o desenvolvimento humano. Para isso, sugerimos algumas ações possíveis, como:
- Combater a corrupção através de mecanismos de controle social, transparência pública, responsabilização dos agentes públicos e educação para a cidadania.
- Defender os direitos humanos através de mecanismos de proteção jurídica, denúncia internacional, mobilização social e educação para os valores humanos.
- Combater a exclusão social através de políticas públicas de distribuição de renda, garantia de direitos sociais, promoção da diversidade e inclusão.
- Combater a manipulação mediática através de mecanismos de regulação democrática da comunicação, fomentando a pluralidade e diversidade de vozes, incentivando a produção independente e a educação para os media.
- Combater a ingerência externa através de mecanismos de defesa da soberania nacional, de reforço da integração regional, de promoção da cooperação internacional e da solidariedade entre os povos.
Por fim, esperamos que este artigo possa contribuir para o debate e para a ação em prol de uma democracia mais justa, solidária e feliz para todos. Acreditamos que esta é uma tarefa coletiva e permanente, que exige o envolvimento e empenho de todos os cidadãos que sonham com um mundo melhor. Afinal, como dizia o escritot Eduardo Galeano: “A utopia está no horizonte. Eu ando dois passos, ela anda dois passos. Eu ando dez passos e o horizonte corre dez degraus. Não importa o quão longe eu ande, eu nunca vou conseguir. Para que serve a utopia? É para isso que serve: para que eu não pare de andar.”
Bibliografia
- BOBBIO, N. O futuro da democracia. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986.
- HUNTINGTON, S. A terceira onda: democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1991.
- TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de Perceção da Corrupção 2020. Disponível em: https://www.transparency.org/en/cpi/2020/index/bra. Acesso em: 20 jan. 2021.
- ONU. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Disponível em: https://www.un.org/pt/universal-declaration-human-rights/. Acesso em: 20 jan. 2021.
- ONU. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/ccpr.aspx. Acesso em: 20 jan. 2021.
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- CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de janeiro: Zahar, 2013.
Vítor Burity da Silva, natural do Huambo, Angola, a 28 de Dezembro de 1961. Professor Honorário; Doutor Honorário em Literatura; Ph.D em Filosofia das Ciências.