Política

60º aniversário do golpe cívico-militar x bolsonarismo | Loreley Haddad de Andrade

recorte da Foto de Marília Castelli na Unsplash
O Brasil tem, em sua frágil democracia, um histórico de golpes sucessivos, que começaram no império, com o Marechal Deodoro, seguido pelo  florianismo, tenentismo, estado-novismo, anticomunismo, antitrabalhismo, bolsonarismo e, se não houver ação enérgica na punição dos golpistas mais recentes, corremos o risco permanente de que algum outro antidemocrático resolva se aventurar. E, a depender do movimento crescente da ultradireita mundial, com toda a sua sede de retomar poder, todo cuidado é pouco e se evidencia  a urgência de posicionamento preventivo e defensivo. E, com a provável eleição de Trump, haverá mais dinheiro pra empreitadas golpistas. Se na recente tentativa de golpe de Estado não houve ajuda dos Estados Unidos de Biden, tal não se deu no golpe de 64, onde foi posta em prática a “Operação Brother Sam”, a “Operação Condor”, que envolveu inclusive a igreja, e sua ala conservadora. Mas, os cenários mundiais e seus atores  mudam o tempo todo. Talvez, se houver uma próxima vez, podem haver também outros interesses e não tenhamos tanta sorte.
Nesse cenário de constantes transformações, houve uma mudança de paradigma: a igreja agora é neopentecostal. Saímos da teologia da libertação, para a da prosperidade e chegamos à teologia da dominação, com a ajuda de militares, forças policiais corrompidas, milicianos e narcotraficantes. Onde faltou o Estado, eles ocuparam espaço. e uniram-se  para a derrubada da democracia e construção de uma teocracia narcoevangélica, fortemente armada. Com a ajuda desses atores, o bolsonarismo virou uma seita, sendo ele o seu expoente máximo. Seus seguidores, crentes de que estão a defender a pátria, são incentivados e financiados para cercos, acampamentos, atos de terrorismo e o que mais lhes for pedido. Tudo o que for necessário para desestabilizar o tecido social, causar desordem e ser necessário pedir uma GLO ( Garantia da Lei e da Ordem), com intervenção militar. É o que almejam  Malafaia e Edir Macedo, que, inclusive preparam cultos especiais para militares a fim de doutriná-los para alcançar, com seu apoio e garantias, o seu sonho de poder.
                    O golpe recente só não deu certo porque Bolsonaro e seu grupo não tinham um projeto de país, não conseguiram a adesão por completo das Forças Armadas e não tiveram apoio estrangeiro. Ao contrário disso, representantes da CIA e do Pentágono (como o Conselheiro Jake Sullivan), visitaram o Brasil por inúmeras vezes e declararam o seu posicionamento de não apoio, por não ser oportuno globalmente, por contenção de danos.  Até porque o Bolsonaro era aliado declarado do Trump e percebia reciprocidade de interesses golpistas e neoliberais.

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                     No golpe de 64, os subversivos eram todos os que se opunham ao golpe: intelectuais, artistas, estudantes, professores, profissionais liberais, mulheres (inclusive grávidas), crianças (assistiam as torturas de seus pais e muitas foram torturadas), camponeses, até mesmo militares legalistas. Qualquer um que não compactuasse com o governo ditatorial era pressuposto ser subversivo. Os horrores foram tantos e de tal vulto que até os apoiadores de primeira hora se arrependeram: a igreja, empresários, a mídia em geral, a classe média, o STF, os liberais, apesar de pouco antes terem dado voto majoritário ao  governo presidencialista e nacionalista de Jango. Tudo por medo do comunismo e de o Brasil se tornar uma nova Cuba. Tudo em nome de se combater a “corrupção”, o “mar de lama” que , segundo eles, tomava conta do Brasil. Ninguém foi poupado.
                      A ditadura que o Brasil viveu, teve apoio e conivência de grupos empresariais e industriais importantes, como , por exemplo a FIESP, a Folha de São Paulo (carros foram usados pelos militares para espionar e sequestrar pessoas), Volkswagen ( pessoas foram torturadas em suas instalações), médicos ( atestavam o quanto a pessoa ainda poderia suportar na tortura, camuflavam causa-mortis). Injustamente, parece que só nos referimos aos militares, esquecendo-nos dos outros partícipes, coadjuvantes e beneficiários do golpe. Ao término do regime, foram esquecidos e não punidos, sob promessa de distensão, redemocratização, eleições.  Houve anistia para os torturadores e também para os da resistência, mesmo não havendo simetria entre o Estado opressor, com toda a sua força e fúria, e os insurgentes, que estavam munidos apenas de ideologia, embora apenas uma minoria tenha se armado.
                      Portugal também passou por um período de transição, mas por colapso, pela gloriosa Revolução dos Cravos, há precisos 50 anos. Grécia e Argentina também viveram processos semelhantes, onde a retomada da democracia pressupunha punir os que torturavam, oprimiram o povo. Nossa transição foi pactuada, como a da Espanha e Chile. Nossa chance de “recomeço democrático” foi com a Constituição de 1988.  Quando a nova Constituição Cidadã, foi promulgada, somente 12% dos constituintes eram progressistas. Havia em torno de 150 coronéis como assessores. Ainda foi imposto o Artigo 142, ambíguo, que, mesmo tendo sofrido emendas, faz com que os militares se vejam como quarto poder, o moderador e tutores do Estado, garantidores da lei e da ordem, ao seu sentir.
                    Não podemos ter as Forças Armadas como “bengala da República”, como sombra. Além disso, ainda há figuras remanescentes do antigo regime e seus familiares e simpatizantes: Gen. Heleno, Gen. Etchegoyen, golpista de longa linhagem, entre outros, que fazem parte do bolsonarismo. Todos os generais que tinham posto no governo Bolsonaro tem que pagar na medida da sua responsabilidade. Até os legalistas de ocasião, pois todos foram coniventes com os acampamentos e atos de terrorismo do dia da Diplomação do Lula.  O próprio Múcio, Ministro da Defesa, afirmou ter gente sua lá nos acampamentos. Não houve comportamento legalista por parte de nenhum deles.  Condescender é abrir brecha pra que se arvorem em novo golpe, na primeira oportunidade.
                   O papel das Forças Armadas é dar proteção ao Estado, defender fronteiras e seus interesses estrangeiros e não dar golpe. Precisamos, inclusive, rever a formação militar, em todos os níveis, pois tem o potencial de disseminar ideias golpistas em todo o território brasileiro.
                   O recente golpe que tirou Dilma, prendeu Lula para que não voltasse ao poder, foi “impresso e auditável”, deixou fartos rastros que servem de provas contra seus idealizadores. Há farta documentação, que inclui desde diário do Heleno a minuta de Estado de Sítio, ameaças de prisão. Em plena era digital foram pegos por serem analógicos. Aproveitemos  essa oportunidade, pois é preciso que todos eles sejam punidos exemplarmente, incluindo os Ministros das três Forças, que apoiaram os acampamentos.
                          E é chegada a efeméride mais sombria da nossa história, o 60º aniversário do golpe cívico-militar. Comemorar, no sentido de rememorar, o golpe cívico-militar de 1964 é certo ou não? Estou no grupo dos que acham que não se deve deixar passar em branco, até porque estivemos muito próximos de reviver esse nosso sombrio período histórico.  E, principalmente pelos compatriotas que  foram barbaramente torturados ou pagaram com a própria vida e os que sobreviveram a todo esse horror, aos que trazem no corpo e na alma as marcas indeléveis do que viveram então. Temos que nos basear no passado para projetar o futuro. Pensar 64 é fundamental para isso.

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