Cultura

Vela que se apaga | Hermínio Prates

Estiagem prolongada, além do previsto. Sucessão de estações, percebida apenas por quem olha a folhinha com uma estampa de um Jesus com o coração esplendoroso e gesto de mãos que atraem olhares dos que creem. E no chão ressequido, apenas escassos arbustos de galharia seca e raízes à míngua de nutrientes e lençóis freáticos que lhe restituam o viço.   

 

Nuvens escassas, ao sabor dos ventos altos, que parecem zombar dos que esperam o milagre da chuva. Sol inclemente, nenhuma brisa para minorar o bafo de uma fornalha que não poupa ninguém, gente, animais, plantações.

 

Alvíssaras para um trovão distante, esperanças com o risco de raios cortando os céus. Graças a Deus, parece que o santo das águas ouviu as preces durante a procissão com pesadas pedras na cabeça dos penitentes. Raios distantes, trovões perdendo a força na acústica celeste. E nada mais do que isso, nenhuma gota para alentar os que rezam, fazem promessas e pagam penitências à espera do milagre. Pedras na cabeça, pés descalços feridos pelos cascalhos, cantorias lamurientas na trilha que leva à cruz da encruzilhada, símbolo de fé, também ela desgastada pelas intempéries e que, fincada no morro, pode ser vista à distância.

 

Dias, semanas, meses, mais de um ano, quase dois e finalmente, sem que ninguém notasse por já terem desistido de olhar para o infinito, as nuvens prenhes de esperança despejaram a cachoeira. E antes mesmo de raios e trovões, o aguaceiro se precipitou. Homens tiram os chapéus saudando em louvor, mulheres erguem os braços em agradecimento, crianças viventes nas ruas de poeira, agora correm no barro macio, brincam em poças que muitas nunca haviam visto. Aves buscam abrigos, protegem ovos e filhotes com as asas; animais de grande porte, bovinos e equinos mugem e relincham sob a agradável e rejuvenescedora ventania da chuva forte. Os felinos se escondem, os cães, costelas à mostra pela dieta da seca, correm e pulam alegres, perseguem de mentira os meninos filhos da estiagem. Festa em sítios e fazendas, mas no início da noite, na cidade todos emudeceram na escuridão total. O que foi o que não foi? Especularam sobre um curto circuito provocado por um raio, talvez tenha caído a torre de transmissão, – quem sabe? -, punição aos incrédulos em milagres. Houve até quem dissesse que aquilo era boicote do governo para convencer o povo desinformado que a solução definitiva seria a privatização da empresa.

 

Em cada casa bruxuleou a chama de antigos e empoeirados candeeiros, fifós e lamparinas resgatados da inutilidade; velas acesas, não para agradecer e sim para clarear cada canto das casas, a maioria humildes barracos, algumas de construção imponente, atestando as posses e poses de poucos.

 

Na morada de um homem solitário, professor por formação e versado na ficção, uma vela também foi acesa. E ele, impossibilitado de ler, ouvir músicas ou se informar pelo rádio, computador ou televisão, se recostou na poltrona da sala e liberou a mente para vagar sem rumo definido. Na quase semiescuridão, imaginou os temores dos homens que buscavam a proteção das cavernas, mesmo sabendo que poderiam ser localizados pelas feras da noite, predadoras de faro apurado e visão privilegiada. Sem nada ver ou ouvir, nossos apavorados antepassados tentavam adivinhar a aproximação dos monstros de garras e dentes afiados. Mesmo atentos, nada percebiam e o pavor crescia ao ouvir os gritos do infeliz abocanhado pela fera e arrastado para ser devorado entre as árvores ou em locas onde dormitavam até à próxima caçada.

 

Com o domínio do fogo, nossos ancestrais se sentiram menos expostos aos perigos da noite e com a invenção de armas, mesmo toscas, se tornaram também caçadores, enriquecendo a dieta de frutos e raízes pela proteína das carnes.

 

Na sala do caçador de palavras, uma brisa fez dançar a chama da vela. Ele a protegeu com a mão em concha, temendo que ela se apagasse. Esforço em vão. E o escuro o fez babatar na casa até encontrar a caixa de fósforos esquecida na cozinha. Por instantes, imaginou como seria terrível viver na escuridão total e perene, em dias, noites, anos e a vida toda para quem nasceu cego ou perdeu a visão por acidente ou vítima de tantos males que a ciência ainda busca a cura.

 

Admirador da obra de José Saramago, o homem se lembrou da quase agonia sentida ao ler “Ensaio sobre a Cegueira”, inquietante obra do português ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1998. O livro é uma visão das trevas, uma viagem ao inferno, e a história de uma resistência possível à violência dos tempos obscuros. Às vésperas do fim do milênio, num período onde impera, de um lado, a velocidade, a ganância e a abstinência moral e, de outro, a profecia e um misticismo compensatórios, o autor vem nos lembrar a “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”, na análise do escritor, crítico literário e musical, Arthur Nestrovski. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”, diz um personagem. 

 

É um livro, então, sobre a ética e é um livro também sobre o amor, e sobre a solidariedade. “Parece uma parábola”, comenta alguém no romance; mas sua força, como nas melhores parábolas, vem precisamente do realismo e da descrição, no limite do inominável. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” A epígrafe resume a empreitada do escritor, como de cada leitor. Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado, conclui o crítico. 

 

Cegueira? Nunca! Se tivesse que escolher, preferiria a perda de um braço, uma perna, até as duas. Dos males o menor, racionalizou sobre inesperadas tragédias nos anos que lhe restavam, que pretendia serem ainda muitos. Há tanto para ver, cidades e países que ainda não visitara; livros, filmes e músicas para apreciar. Mulheres? Sim, mulheres, preferencialmente apenas uma que o atraísse para o bem querer.

 

Com o fim da chuva, intensa, considerada breve para quem tanto esperou por ela após tanta secura, o abafamento da noite fez o solitário ir até à janela, de onde viu clarões distantes, relâmpagos nos céus de outras terras. E se decepcionou com a ausência dos técnicos da empresa de energia.

 

Cansado de olhar a avenida deserta de gente e ainda sem os homens da iluminação, voltou à poltrona. A vela, incapaz de propiciar a leitura, apenas clareava a incerteza da espera. Outra brisa mais forte e ela se apagou, assim como finda a jornada das pessoas, a maioria partindo sem tempo para se despedir da vida.

 

Como uma vela que se apaga.

 

Fotografia de Hermínio Prates

 

Hermínio Prates é jornalista, escritor, ex-professor universitário de Jornalismo, Rádio e Teoria da Comunicação na UFMG, UNI-BH, PUC e Newton de Paiva. Foi repórter e redator do Diário de Minas, Jornal de Minas, Minas Gerais, Rádio Itatiaia, diretor de Jornalismo da Rádio Inconfidência, chefe das Assessorias de Comunicação das Câmaras Municipais de Sabará e de Belo Horizonte e da UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Publica regularmente contos, crônicas e artigos em vários jornais mineiros. Autor dos livros Família Miranda – Vidas e Histórias ( ensaio historiográfico) e A Amante de Drummond (contos).

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