Cultura

Aforismos no café – Parte I (inspirações no Café – Grão Raro em Nova Friburgo – R. J. Brasil) | Clécio Branco

Submissão

 

  • A Trindade Moralista – o escravo, o tirano e o padre – atravessou as monarquias e se encontra nas democracias atuais. O grande segredo é o mesmo de antes, enganar o rebanho dissimulando a verdade e a mentira sob o nome de religião. Assim faz  temer aquilo que os acorrenta; por isso, “combatem por sua própria servidão como se fosse por sua salvação” (Branco – no café c/ Espinosa).

 

  • O tirano domina com a tristeza que produz; os sacerdotes se prevalecem da tristeza e da dor para venderem o bálsamo – e por fim, o rebanho se entrega voluntariamente à submissão numa relação de dependência (Branco – no café c/ Espinosa).

 

  • São três tipos de homens abomináveis em (Espinosa/Nietzsche): o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões e o homem que se entristece com a condição humana. Os tiranos produzem a tristeza e a miséria; os sacerdotes exploram a tristeza; o rebanho se lamenta de estar no mundo. Essa é a fábrica pastoral moderna de fabricar doença dizendo ser a cura (Branco – no café C/Espinosa).

 

  • Nos destruímos voluntariamente, sob a força da culpabilidade; mas não é só isso, destruímos os outros com a força do ressentimento. Propagamos a nossa insuficiência nessas duas forças que nos arrastam para o abismo – sejam indivíduos ou sociedades – é a mesma coisa, a doença e a escravidão que nossas ideias e crenças nos impõem. Somos o próprio tecido de nossos venenos, de nossas toxinas que, em nós mesmos, produzimos (Branco – no café/ c. Espinosa).

 

Indefinidos

 

  • Os dias frios e cinza no cais, nos convidam com as aves, que se juntam para aquecerem os corpos – entre nós, olhos dissimulados, no entremeio,  do mar sem fim e o vento frio que sopra… desviamos os olhos, são fugas, partes do jogo… 

forças ativam o olhar até o limite de uma distração necessária … longínqua, nos confins do mar… em baixo de nossos pés, as marolas quebram finalmente em seus limites, nós ainda não. Perpetuamos olhares silenciosos … sem que se possa medir as intensidades… ficamos ali, congelando e congelados… (Branco – indefinidos/no café).

  • Uma névoa de indefinições insiste desde os olhares… enquanto os olhos em formato e cor de amêndoas, fogem constantemente para o horizonte… Os cabelos tocados pelo vento desdobram os cachos finos de cheiro de maçã verde… As palavras se fragmentam em balbucios desencontrados… são mais murmúrios do que palavras… Tudo é indefinições, ela não é isso, nem aquilo, não somos amores, nem amantes, somos sim, intensidades puras, velocidade infinita… Nada pode ser mais veloz do que os indefinidos… (Branco – no café).


  • Os indefinidos compõem uma estratégia de combate da vida. Os nômades souberam transformá-los em uma máquina de guerra. Tal máquina se caracteriza pela capacidade de deslocamentos contínuos, o que põe tudo em estado de indefinição. Nesse sentido é inútil construir muralhas para impedir a passagem dos nômades através das fronteiras, eles não têm interesse no poder do Estado, estão sempre de passagem para um outro lado. Nesse sentido, não é do Estado que se servem. É só um procedimento de passagem, cruzar linhas, fazer dos mapas as suas próprias linhas de fuga. Uma máquina que não tem a guerra como objeto, não derrama sangue e não mata. A máquina de guerra nômade não é uma propriedade de um grupo, é um modo de vida que se subtrai da própria vida, uma imitação da vida. Um modo de escapar, de se esquivar das condições intoleráveis no mundo que tem como finalidade apequenar a vida em formas binárias: feio/bonito, baixo/alto, morto/vivo, pobre/rico, homem/mulher, diabo/deus. O traço que separa um do outro e define se você é isso ou aquilo. Síntese exclusiva que leva o pensamento à ilusão da verdade. Por isso, os indefinidos são a máquina de guerra por excelência (Branco no café com Deleuze/Guattari).

 

  • É preciso introduzir um terceiro termo, embaralhar os códigos binários com o terceiro excluído. Ao entrar em cena um estranho indefinido, um que não é isso nem aquilo, que não se identifica com a forma de expressão previamente dada, nem com o conteúdo pré-estabelecido. Perguntar-se-á sobre a sua natureza anômala: se não é isso nem aquilo, o que será então? Um indefinido que instaura uma máquina de guerra contra o império das segmentarizações do sistema da língua oficial. Aprendemos a ver e ouvir por padrões de medidas definidoras, o que nos faz cegos em relação ao todo, e ao resto desmensurado universo da vida. Isso nos faz pensar que, paralelamente aos sentidos, passam mundos não percebidos, apenas pelo fato de não entrarem na lógica da forma-expressão a que estamos condicionados. Quando os indefinidos entram nas definições, são as próprias definições que os excluem (Branco – no café)

  • O terceiro excluído – o que não é isso nem aquilo – só o é, por força de uma segmentaridade excludente. Ele passa a ocupar um terceiro lugar, pois na inclusão, permanece como o “terceiro excluído”, é o marginal, o feiticeiro, o anômalo, o anormal, o louco, o demônio, o gay, o estranho a ser evitado. Vemos nessas formas indefinidas, uma arma de guerra, um modo de se salvar das predeterminações que julgam a vida. Entrar na zona de um indefinido é entrar em linhas indiscerníveis de metamorfoses (Branco – no café com Deleuze). 

 

Na verdade, não somos assim, isso ou aquilo. Pelo contrário, somos uma multiplicidade molecular. Mesmo quando nos definimos homem ou mulher, no nível molar, permanecemos na zona de vizinhança de “n sexos”. Para o terror moralista, tudo o que se encontra na vida, banhado no mar da multiplicidade molecular, está inexoravelmente conectado pela conjunção “e…”, “e…, “e…”. Somos isso e aquilo ao mesmo tempo, homem e mulher, humano e animal, deuses e demônios, tudo ao mesmo tempo. E o próprio Deus do monoteísmo, é a causa da vida e da morte, da luz e das trevas. Conforme Espinosa, substância única para todas as formas que variam segundo a variabilidade de atributos, são corpos que afetam e são afetados. O terceiro excluído, na verdade, nunca esteve excluído, isso é assim por uma condição necessária. A vida é possibilidades infinitas e indefinidas. É o título do último artigo de Gilles Deleuze – “Imanência: uma vida…” (Branco – no café com Deleuze).

 

Fotografia de Clécio Branco


Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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