Cultura

Uma viagem ao mundo da arte contemporânea | Sara Neves

 

Qualquer pessoa já se sentiu perdida e descontextualizada perante uma obra de arte, questionando-se quais os critérios que definem determinado objecto como tal. Para o colecionador Alain Servais, que coleciona não só obras de arte, mas também definições da mesma, arte é o que nos permite ver além das sombras na alegoria da caverna de Platão. Para a artista multidisciplinar Sophie Jung a arte  permite recuperar a sensação de vida e agarrar o presente. Neste Verão, em Veneza e em Berlim, afastei-me do pensamento mais regrado  – embora também ele em certa medida artístico – da prática da arquitectura e dediquei-me ao mundo da arte contemporânea. Com a certeza de que a subjetividade e a inexistência de verdades absolutas são das características que tornam o tema fascinante, partilho aqui algumas reflexões desta viagem. 

 

 

Walter Benjamin utilizou o termo aura para definir algo que uma obra possui que a torna única, autêntica, uma essência que eleva o objecto a arte. Com esta ideia em mente, há quem acredite que este valor intrínseco será reconhecível pela maioria das pessoas. Isso significaria que obras que hoje consideramos obras-primas, deveriam ter sido aclamadas desde a sua primeira exposição, o que sabemos nem sempre ter sido verdade.

 

 

Por vezes, o mundo da arte parece indecifrável, e de fora vemos os que nela operam como quem tem acesso a uma “chave” que é restrita a muito poucos. Numa perspectiva mais académica podemos dissecar uma obra por camadas de entendimento: o contexto histórico – que acontecimentos podem ter influenciado a obra; o contexto da História da Arte – em que movimento se insere, quais as suas influências, em que medida esta obra é inovadora no seu contexto?; o artista – qual o seu percurso e que eventos da vida privada marcaram a sua obra; a técnica e a intenção/conceito. Para historiadores de arte, esta análise é fundamental, interessante e até, dadas as vidas rocambolescas de muitos artistas, divertida de fazer. No entanto, não pode ser exigido a quem visita um museu que tenha este conhecimento prévio. E será ele necessário ou uma apreciação emotiva e intuitiva é igualmente válida? Considerando a aura e a beleza de uma obra como valores universais, fará sentido a disparidade entre o valor que atribuímos à opinião de um crítico e à de um espectador comum?

 

 

A ideia de que há alguém capaz de distinguir objectivamente o que é ou não é arte, a ideia de que existe uma chave, tende a abrir portas à especulação. Esta palavra, que pertence ao léxico capitalista, é muitas vezes desconsiderada na crítica e na escrita da história da arte. Se é verdade que o dinheiro sempre influenciou o rumo da arte, com o mecenato por exemplo, também é verdade que o volume de capital investido neste mercado nunca foi tão alto, mesmo apesar do elevadíssimo risco inerente a este tipo de investimento. Acredito que, conscientemente ou não, uma das grandes motivações para os colecionadores seja o estatuto que possuir aquele objecto representa. Não como forma de demonstrar o poder de compra, uma vez que outros bens preenchem melhor esse propósito, mas como forma de demonstrar sofisticação e sensibilidade. Ao comprar certa obra para a coleção, o colecionador prova que, ao contrário da maioria das pessoas, possui a “chave” que o permite entender aquela obra e distingui-la entre tantas outras como algo sublime.

 

 

Acredita-se que as primeiras obras de arte tenham sido produzidas para entidades mitológicas, tendo portanto uma dimensão metafísica, como parte de um ritual, refletindo o carácter central das religiões na sociedade. Mais tarde, os movimentos Avant-garde do início do Séc. XX espelhavam a sociedade ideológica da época. Sucessões de novos ideais perante as novas circunstâncias político-sociais uniam grupos de pessoas sob princípios estabelecidos em manifestos, princípios estes que se materializam em estéticas próprias. Com a Segunda Guerra Mundial, cai a visão humanista e progressista da sociedade e os artistas procuram refúgio e ordem na arte abstracta. Na arte contemporânea, não se definem estilos, é o triunfo do individualismo, mais uma vez um reflexo da sociedade da época. Nesta análise breve e superficial, vemos que o ónus da criação artística transita de Deus para o artista, arrastando consigo um sentido mitológico que distancia cada vez mais o artista do artesão e o aproxima de Deus. Por este e outros motivos, o alvo da crítica de arte transitou da obra e do artista, para a curadoria e as instituições. E mesmo essa crítica – com a exceção de situações particulares como o caso da exposição “It’s Pablo-matic: Picasso According to Hannah Gadsby”- dificilmente se posiciona de forma clara. 

 

 

Um amigo americano que estuda fotografia em Nova Iorque contou-me que é difícil receber orientação no seu curso porque alguns dos seus colegas não admitem ter o seu trabalho criticado, retaliando com denúncias dos professores, como se a crítica fosse um ataque pessoal. Estes, para salvaguardar o seu emprego, passam a limitar o ensino a questões técnicas. Há quem acredite que a arte pode ser o lugar onde nos encontramos como seres humanos, que ao expor histórias de diferentes experiências promove a empatia. Nada disso será possível se o medo do diálogo for imposto.

 

 

Fotografia de Sara Neves

Arquitecta de profissão, Sara Neves é de Gondomar, estudou na Soares do Reis no Porto, e mais tarde, na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Durante o curso, fez intercâmbio de um ano no Rio de Janeiro. Desde 2017, vive em Macau onde trabalha num escritório de Arquitectura, principalmente em projectos de obra pública.

O gosto pelas viagens começou cedo e hoje já visitou mais de 30 países, em 4 continentes e em diferentes tipos de viagens.

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