Cultura

Um térsites para todas as ocasiões | Rui Miguel Mesquita

UM TÉRSITES PARA TODAS AS OCASIÕES

 

Ninguém vai comprar um romance com esse título! Dificilmente poderia haver uma forma pior de receber um escritor desconhecido; mas foi isso mesmo que aconteceu quando um jovem autor, Javier Marías, propôs entusiasticamente junto da sua editora, a Alfaguara, a tradução de um dos primeiros romances de Thomas Bernhard, Verstörung (1967) [Perturbação]. Embora o escritor austríaco já fosse um nome sobejamente conhecido dentro da cena literária de língua alemã, a sua fama algo sulfurosa e a própria dificuldade de traduzir uma voz singular, cujo estilo idiossincrático parecia impedir qualquer trabalho de recriação, funcionavam como um importante factor de dissuasão quanto à oportunidade dessa tradução. Mesmo o facto de Bernhard ter já sido agraciado, em 1970, com o mais importante prémio da literatura alemã, o Georg-Büchner-Preis, não parecia ter o peso suficiente para contrabalançar esses factores de dissuasão; o sucesso de escândalo que algumas das suas peças de teatro obtiveram na Alemanha e na Áustria também não foi o suficiente para que elas fossem de imediato traduzidas e representadas em Espanha e noutros países europeus. O pessimismo marcado e a morbidez aparente da obra de Bernhard eram uma realidade cujo valor se afigurava proibitivo, impossível de traduzir para outras latitudes que não um certo Finis Austriae.   

 

No entanto, a tradução de Verstörung foi mesmo publicada em 1978. A obra de Thomas Bernhard foi recebida com entusiasmo pelos nuevos narradores que marcaram a literatura espanhola daqueles anos, entre os quais se destacaram Javier Marías e Félix de Azúa, cujo interesse por Thomas Bernhard abriu espaço a que o autor austríaco rapidamente se tornasse um dos autores estrangeiros mais procurados em Espanha. Como refere Heike Scharm no seu estudo sobre a influência espanhola em Thomas Bernhard, se bem que Bernhard não fosse obviamente um autor espanhol, tornou-se certamente um autor para a Espanha, um autor cujas afinidades insuspeitadas com a tradição literária espanhola motivaram uma surpreendente aproximação entre o diagnóstico cultural extremamente cáustico da condição austríaca e a própria reflexão pós-franquista, na literatura e nas outras artes, sobre a história recente de Espanha, muitas vezes acompanhada de um repúdio e de uma consternação candente face a essa mesma história. A denúncia por Bernhard de uma persistência, nunca plenamente resolvida, do passado nazi na Áustria funcionou assim como uma linha de orientação para jovens autores espanhóis cuja ruptura com a violência e as clivagens profundas do passado franquista procurava formas de expressão que fugissem do realismo social da Geração de 50.

 

Esta ressonância especial da obra de Bernhard não pode, no entanto, ser unicamente explicada pelas afinidades temáticas que mostra relativamente a romances de outras literaturas. A obra de Bernhard deve muito não só à inquietação característica do Modernismo e do Expressionismo vienenses, mas também, por exemplo, a um género antigo da literatura ocidental, a sátira menipeia (cujo primeiro grande exemplo é o Satyricon, de Petrónio), que informou também vários desses autores que declararam a sua afinidade com os romances bernhardianos. Com efeito, algumas das características definidoras da sátira menipeia, como a preferência por psicologias incomuns ou por espaços extraordinários, quase heterotópicos, são também marcos distintivos da obra de Bernhard; a frequência com que temas como a loucura ou comportamentos compulsivos, ou lugares como as montanhas e as florestas, são retomados na sua ficção indicia de facto essa proximidade com os ambientes bizarros em que a sátira menipeia se demora. A suspensão dos padrões representacionais impostos por um realismo estrito tem como principal efeito a criação de um espaço intermédio, algures entre a realidade e os mundos possíveis, cuja navegação é assegurada através de figuras como o passeio e a rêverie que, por vezes, introduzem contrastes violentos entre o sublime e o grotesco.

 

É por este processo que a sátira menipeia não se deixa prender por alvos imediatos e alcança um significado universal; a sua preocupação por uma certa profundidade do real e da personagem não se detém obviamente nessas existências mais próximas. Como na obra de Bernhard, essa profundidade afigura-se frequentemente inacessível e perturbadora, de tal forma que as personagens são apanhadas em constante devir, na demanda de um objectivo impossível. É um processo no qual as personagens e as próprias situações narrativas assumem uma excentricidade levada cada vez mais ao extremo, em ruptura com a sociedade e as suas convenções; ficam definidas negativamente, não como aquilo que são, mas como aquilo que nunca vão ser. O corpus abundante da sátira menipeia ofereceu assim a Bernhard um conjunto rico de preocupações e esquemas narrativos que o autor austríaco conseguiu revitalizar na sua obra; a própria obsessão com as ideias e o seu poder preocupante é um traço comum, que rasga, em ambos os casos, novos horizontes narrativos e transporta o texto para além de uma topicalidade imediata. É um modo de configurar uma música infinita, sem perspectiva e sem resolução, que vai sendo gerada por sucessivos encaixes e enxertos, os quais, no âmbito desta construção paratáxica, cumprem uma função fática, conferindo, em ambos os casos, um factor de envolvimento e imersão do leitor.

 

Do mesmo modo que a obra bernardiana não pode ser reduzida a uma imensa acusação, eivada de um pessimismo radical, contra os trânsitos do mundo, também não pode ser reduzida a um discurso monótono, sem modulações emocionais, retido por determinadas obsessões do autor. Não só tem tido uma ampla sobrevida (atestada, por exemplo, pelo sucesso crítico da tradução da Autobiografia, publicada pela Sistema Solar), mas está também inserida numa série larga de referências intertextuais, das quais destacámos a sátira menipeia, o que deve provar como apresenta outros factores de interesse para o leitor que não essa perturbação que lhe é característica. Não haveria esse envolvimento e imersão do leitor se a obra de Bernhard não fosse mais do que o miasma deletério que algumas leituras apressadas poderão fazer dela; a mania e a insolência que irrompem tantas vezes nesta obra afastariam o leitor se não canalizassem outras preocupações e conduzissem a outras reflexões, cuja amplitude, de resto, é prevista pelo próprio modo como essa insolência pretende constantemente quebrar todas as limitações à sua expressão. Tal como a “força do hábito” (título de uma peças mais conhecidas de Bernhard) impele estas personagens a insistir no seu apelo vital, apesar dos sucessivos impasses que descrevem, também os textos bernhardianos associam a sua insolência típica a uma procura de liberdade e de verdade que não desmente o impulso biológico que, apesar de tudo, contraria finalmente a vontade de morte tantas vezes exprimida nesse textos.  

 

Os protagonistas de Bernhard, e o próprio autor nas suas aparições públicas, reeditam assim uma figura paradigmática, a de Térsites, o soldado deforme da Ilíada cuja franqueza insolente incomoda os seus superiores; recriam o tema antigo da parrésia, e poderíamos mesmo dizer que esses monólogos obsessivos e intermináveis exploram a possibilidade de um discurso realmente livre, tanto mais livre quanto mais verdadeiro. A atenção à possível conjugação da licença discursiva com um valor acrescido de verdade é de facto comum na obra de Thomas Bernhard; daí a frequência de últimas palavras e confissões finais, como se fosse procurado um discurso sumamente livre e verdadeiro, impossível de confundir com os discursos mundanos cuja importância procura diminuir. Para Bernhard, o “falar livre” e o “falar verdadeiro” não podem ser dissociados dessa insolência de Térsites, de uma inconveniência corrosiva que ameaça os próprios princípios narrativos; dir-se-ia mesmo que estamos perante uma anti-narrativa, ou mesmo, no caso dos textos autobiográficos, de uma anti-autobiografia, onde essa natureza corrosiva da inconveniência bernardiana atinge talvez o seu máximo, de tal forma que nem cronologias nem personagens resistem à voragem dessa corrosão primordial que o estilo bernhardiano procura despertar. Como evoca Hegel nas Lições sobre a Filosofia da História, “a ambição e o egotismo de Térsites são o espinho que lhe está cravado na carne, e o verme imortal que o corrói é a aflição face ao insucesso que as suas excelentes intenções e críticas conhecem no mundo” (tradução minha). 

 

Esta presença constante de um incómodo excruciante marca as próprias escolhas estilísticas de Bernhard: as frases repetidas, trabalhadas através de sucessivas variações (a que os estudos musicais de Bernhard não são estranhos), de uma forma que é levada ao extremo, tanto no tom acerbo das críticas, como na própria construção ficcional, em que o remoinho de situações e personagens impede qualquer tentativa de delinear com mais clareza uma narrativa, propiciam a sucessiva retoma de esquemas invariáveis, nos quais temos duas ou mais personagens à procura de um determinado conhecimento, fatalmente frustrado, embora cada uma em fases diferentes dessa procura. No entanto, essa procura de conhecimento é de tal modo exaustiva e impossível que essas demandas constituem afinal histórias de desagregação pessoal. É uma desagregação que, mais do que cronologicamente, é espacialmente marcada: essa dissolução pessoal é espelhada frequentemente pela deslocação para um espaço à parte, o qual, embora aparente prometer uma perspectiva suprema sobre o mundo e os seus feitos, é na verdade um espaço de extinção (título de um dos mais importantes romances de Bernhard). A descoberta desta vantagem ilusória é a oportunidade derradeira para uma declaração de vanitas vanitatum et omnia vanitas, de uma desagregação terminal que não poupa pessoas e mundos.

Fotografia de Rui Miguel Mesquita

Rui Miguel Mesquita é tradutor e investigador colaborador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Doutorado no Ramo de Conhecimento em Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2016, publicou o estudo A Situação e a Substância: Cinco Ensaios sobre a Ficção de Virginia Woolf e de Maria Velho da Costa (vencedor do Prémio PEN Ensaio 2017).

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