Cultura

O avião invisível I Raquel Naveira

O AVIÃO INVISÍVEL

 

Raquel Naveira

 

Por muito tempo aquele avião foi invisível para mim. Atravessava a rua Pinheiro Machado, no coração do bairro de Laranjeiras, entre elevados e árvores de fícus e observava a escultura em bronze, do tamanho natural de um homem, do aviador Carlo del Prete. Com os olhos baixos li os dizeres da placa. Descobri que se tratava de um tributo a um herói, pioneiro que arriscou a própria vida fazendo um voo sem escalas entre Montecélio, perto de Roma, até o Rio Grande do Norte, em 1928. No mesmo ano, quando testava um avião em acrobacias sobre o mar, caiu na baía da Guanabara. Morreu, alguns dias depois, no hospital, em meio a muito sofrimento. Foi extraordinária a comoção da cidade. A estátua marca o lugar onde Del Prete recebeu homenagens póstumas, próximo da embaixada italiana.

 

Um belo dia, quando fazia a travessia perigosa do viaduto em direção à praça, deparei-me com o avião. Sim, acima da estátua de Del Prete, meio coberto pelas folhas de fícus, havia um avião, uma enorme reprodução do avião usado pelo aventureiro. Que surpresa. O avião estava ali o tempo todo e eu não tinha reparado nele.

 

Lembrei-me dos índios que não enxergaram as caravelas. Eles não conseguiram ver coisa alguma, até que as caravelas estivessem a pouca distância da praia. A explicação é que a caravela era algo desconhecido para os nativos e que a mente só pode ver o que conhece. Por mais estranho que pareça, o que a mente não conhece é invisível aos olhos, é parte da paisagem. As caravelas surgiram da névoa, estavam ocultas por um véu espesso como se fossem fantasmas. A bruma é mística, separa mundos. As brumas separaram Avalon, terra dos magos e das fadas, do mundo medievo do rei Artur. A impactante chegada das naus dividiu culturas. Os homens brancos, considerados filhos do deus Sol pelos índios, trouxeram guerras e enfermidades pelas espumas do mar.

 

O avião estava ali o tempo todo: matéria compacta, mas não passava de um imenso vazio atômico não captado pelo meu pensamento e pela minha vontade. O avião era “maya”, como diriam os budistas, ilusão não projetada em meu restrito campo de visão. O avião era essência pura, fruto de uma forma a princípio abstrata, alto reflexo de um sonho transfigurado em realidade, como imaginou Platão em sua “Teoria das Ideias”. Talvez eu estivesse de costas para a entrada da mítica caverna, presa na escuridão, e, agora, subitamente, na luz da verdade, brilhou, dourado, o avião.

 

O escritor Antoine Saint-Éxupery, autor da fábula “O Pequeno Príncipe”, também foi piloto, escreveu sobre a aviação, sobre a sensação de solidão ao sobrevoar os desertos. Desapareceu misteriosamente num voo de reconhecimento na região do Mediterrâneo. Os destroços da aeronave foram encontrados e é provável que tenha sido abatida por alemães. Foi pela boca do seu personagem que ele nos ensinou: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” Ah! Como precisamos de amor, companheirismo e amizade, meu Pequeno Príncipe.

 

Dá para entender porque o apóstolo Tomé duvidou da ressurreição de Jesus e o sentido do ditado popular: “Aquela pessoa é feito São Tomé, precisa ver para crer.” Tomé viu Jesus, tocou em suas chagas. E eu que preciso crer para ver, adorar um Deus em Espírito, nem sabia que naquele ponto da vida cruzara com um avião invisível. Mas quando o vi, fui tomada por uma onda de consciência. Não coloquei mais limites entre o natural e o sobrenatural. O avião invisível me provou que há coisas que estão ao nosso lado, que a fé é maior que tudo que o universo nos esconde.

 

Fotografia de Raquel Naveira

A escritora Raquel Naveira é brasileira, nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Título de Doutor em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE)  e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal “O TREM” (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.

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