Um dos piores anos de nossas vidas | Flávio Sant’Anna Xavier
Só os pessimistas têm acertado as previsões sobre o Brasil, desgraçadamente. O país padeceu na maior parte do ano como o epicentro mundial da pandemia de coronavírus. As vacinas, quando chegaram a um nível efetivo, no segundo semestre, trouxeram alívio e um pouco de esperança.
O SUS é o maior programa social planetário e com enorme capilaridade. Capítulo onde o centrão não avançou suas garras na Constituinte de 88, ergueu-se um sistema descentralizado e universal. Pode parecer pouco, mas não foi. A grande contribuição dos comunistas brasileiros após a longa noite de ditadura. Opera-se tentativa de privatizá-lo, mas os municípios resistem. Quando chegaram enfim as vacinas, antes recusadas pelo governo federal, os otimistas noticiaram o início da vitória contra o vírus no país. Atrasados nas previsões, mas certos enfim do alívio representado.
A longa batalha do acesso à vacina esgotou a economia, que já não evoluía bem. Houve enorme retração industrial e de serviços e mesmo o agronegócio, favorecido pelo câmbio favorável, enfrentou uma seca sem precedentes. Esse foi mais um dos cenários em que os pessimistas acertaram.
A seca sem precedentes fez avançar o desmatamento. Nunca o fogo se mostrou tão aliado na derrubada de florestas para o avanço da pecuária e soja, compradas pelos países ricos. Enquanto não se estancar este fluxo de proteína, em especial para a China e Europa, o principal bioma do polo sul perderá cada vez mais espaço. Quem cruzou os ares brasileiros nunca se deparou com tantas queimadas. Era a proteína sendo produzida à custa de enormes chaminés de árvores.
Em pouco tempo até o sonho do país do futuro se esvaneceu. Os otimistas agora se dão por contentes em eleger alguém que respeite a democracia e a vida. Que se respire num país onde seu Ministro da Saúde eleja o bem da vida como o mais precioso. Que os amantes da morte ascendam ao cadafalso do esgoto da história já é de bom tamanho e que tais previsões se confirmem, para o bem dos otimistas e dos brasileiros.
A pandemia fez explodir o feminicídio e o abuso sexual das crianças em patamares que já eram inaceitáveis. A fúria do brasileiro explodiu não diante dos poderosos, mas das frágeis criaturas e no recesso do lar, onde a lei não avança. Também cenas de sadismo com animais. Um balé sinistro onde a morte imperou com força diante da vida. Como nunca e com aplausos das mais variadas camadas sociais.
Num destes dias estanquei o automóvel no trânsito de Porto Alegre. Defronte a um bar, o que se via eram olhares paralisados de pessoas sozinhas que pareciam encarar o infinito com amargura. Até onde chegará isso tudo? É difícil prever, talvez nem fosse o caso, mas de viver cada dia como se fora único, o epíteto dos sonhadores, aventureiros de toda ordem, loucos de todos os gêneros.
Enquanto jogam xadrez com os otimistas, os pessimistas recordam que a democracia brasileira foi sequestrada por quem deveria defendê-la. “O homem é o lobo do homem”, sussurra o pessimista enquanto avança lentamente o peão na casa central do tabuleiro, com ar de intimidação. Pode ser coincidência, mas o corte orçamentário em 2021 para a saúde equivaleu ao “orçamento secreto”, mecanismo inconstitucional que privilegia a compra de voto de parlamentares governistas (ou não) que utilizam os recursos para seus próprios bolsos, na grande maioria dos casos. Outros 5 bilhões serão destinados ao fundo eleitoral, compondo a farra de dinheiro público numa economia, pública e privada, que definha.
Em 2022 o desfile dos salvadores acontecerá num cenário dramático e por isso mesmo propício a milagres. Nunca se dependerá tanto dos evangélicos. O país não é laico. Aguardemos dias melhores, onde os otimistas vençam pelo menos algumas batalhas. Os pessimistas brasileiros estão cansados.
Flávio Sant’Anna Xavier é Procurador Federal desde 1997. Autor de obras e artigos jurídicos na área do Direito Agrário e Administrativo. Autor do livro de contos “Guris” (2016).