Cultura

Um casulo | Luísa Venturini

 

Há dias em que preciso de um casulo. De uma almofada redonda e toda ela plumas, onde afagar a alma e uma outra, feita colo ou então abraço, onde aconchegar o corpo. Os dias são confusos e há momentos em que me apetece calar a memória, para que deixe de doer-me, e os pensamentos, para deixar de angustiar-me. Entre uma e outros só não me sinto na asfixia da gaiola porque em mim um qualquer sótão, com belas janelas de mansarda, me dá horizonte, ponto de fuga, alívio das febres desta forja.

 

Não gosto quando o desconsolo me seduz desta maneira e eu, que nem donzela medieva, fico prestes a oferecer-lhe o meu lenço branco, garbosamente bordado com monograma e flores, da mais fina cambraia de outros tempos. Melífluo, de toada encantatória, sibilino no trejeito, insidioso no gesto e na palavra, o desconsolo corre pavidamente o seu percurso em mim e eu vejo-me sem muros onde conter-lhe a correnteza e sem pérolas de sabedoria onde conter-me a aflição. Não fosse ele quem é e esta poderia ser história de um cantar de amigo. Sendo ele quem é, não passa de uma litania de queixume ao belo jeito persa, um riacho de tristeza sem mar onde desaguar, imbricando-se na infeliz estética de um sulco, de uma lágrima ou de um suspiro, perverso, perversamente.

 

O céu de trovoada, a terra quente, o ar pesado, o ruído agigantado neste vale de miasmas, tudo acresce à claustrofobia deste presídio redondo (porque tudo é redondo – até o tempo!). Se me chegasse um sussurro, eu sei que conseguiria ouvi-lo, tal é a minha tísica ânsia de salvação. Se me chegasse um aceno, eu sei que conseguiria vê-lo, tal é o lince escondido na minha ânsia de proximidade. Se… (mas já é muito tarde para que um Kipling me resgate ou para que um Sebastião da Gama me remoce) – é mesmo só um casulo! Até poderá ser momentâneo – porque do meu tempo trato eu, eu que tenho a prosápia de saber lidar com o tempo, de ser délfica, ainda que não cassândrica, e de sonhar com éons e éons de pura luz…

 

Há dias em que as fronteiras me estrangulam por dentro e em que todos os meus sentidos me alucinam por fora. Também não me adianta o desabafo. Era só mesmo um casulo: Uma translucência sedosa como um olhar de amor, uma correspondência aveludada como um adejo de andorinha, uma hierofania num aleph de misericórdia e consolação…

….

 

Combalida, atristada, lá cheguei penosamente ao meu sótão. De olhar posto no horizonte, sentado na sua eterna esteira, lá estava o meu belo Perfumista1 de Nishapur. Mal olhou para mim. Muito baixinho, muito baixinho, começou a sussurrar-me o seu Mantiq-ut-Tayr, a sua Conferência dos Pássaros. E eu não o ouvia em farsi ou em árabe: ouvia-o por dentro de mim, envolta pelo casulo da música única das suas palavras, querendo-me uma daquelas trinta aves, querendo- me uma a alcançar o monte Qaf, querendo-me uma das que souberam que “a Viagem era em Mim e Meu o feito/- no imo Ser dormiam, no Seu leito…”

 

Nota

 

1 Farid ud-Din Attar de Nishapur (1145-1221), o pseudónimo pelo que ficou conhecido este expoente da poesia e da mística Sufi identifica o que foi a sua profissão (Attar significa perfumista, boticário) e a sua cidade natal (Nishapur, actual Irão).

Fotografia de Luísa Venturini

Luísa Venturini (aka Margarida Santiago) frequentou as faculdades de teologia e de antropologia social e, entre outras ocupações profissionais, sobressai a sua actividade como tradutora de dezenas de obras, das quais se destacam Cem Anos de Solidão e Amor em Tempos de Cólera de Gabriel Garcia Márquez. Desde sempre dedicada à escrita, foi Prémio Bocage de Poesia 2008 (LASA) com Os Desnortes do Manuel Maria. Em prosa publicou dois romances – A Gaiola dos Periquitos e O Grupo de Colares – e dois livros de crónicas e contos breves – O Persa e outros contos, crónicas e desabafos e Folhas de Chá (que conta com seis  contributos da arte de Paulo Damião). O seu último livro é Das horas (ou hoje apetece-me chamar Stefan Zweig). O texto aqui apresentado encontra-se publicado em Folhas de Chá.



Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
1
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura