Em seu novo romance Querida cidade (Ed. Teodolito, 2023), que surge após um interregno de quinze anos sem publicar, cuja edição portuguesa foi lançada em fevereiro no Correntes D’Escrita com a presença do autor, Antônio Torres dá continuidade a uma cartografia peculiar dos sertões geográficos e psicológicos e do seu interior territorial e emocional a partir de sua ancestral Junco, atual Sátiro Dias. Instância real e ao mesmo tempo mitológica de suas escrevivências, daí recolhe matéria para uma escritura que vem marcando a literatura brasileira, sobretudo por retratar as os movimentos migratórios e os choques por eles provocados na vida de seus personagens.
Eis uma obra densamente povoada de emoção criativa, intensidade semântica e linguagem poética, na qual percebe-se um puzzle narrativo a partir do núcleo temático dos deslocamentos que têm caracterizado sua vasta bibliografia. As histórias albergadas em seus romances e contos (entre os quais destacamos os antológicos “Essa terra”, “Um táxi para Viena D’Austria”, “Um cão uivando para a lua”, “Meu querido canibal”, “O cachorro e o lobo”, “Carta ao bispo”) constituem o repositório dessa realidade tantas vezes cáustica e desafiadora, da qual não conseguem fugir as personagens, tantas vezes fragilizadas pela compulsoriedade de seus destinos, mas que por isso mesmo traduzem a sua dimensão essencial e humana.
É a partir da conversa com a mãe sobre o sumiço do pai que o gatilho da memória é deflagrado e deslinda-se o fio do romance, ao tentar desatar os nós de um passado pouco esclarecido e confuso para o filho. Ao sair de seu pequeno burgo nos idos de 1950, o protagonista – um menino de dez anos que sonha em descortinar mistérios e paragens – vai viver com um tio noutra cidade, na esperança de galgar escalas na vida, tendo o parente como exemplo de ascensão social. Esse sonho é interrompido pelo desaparecimento do seu novo protetor e seus planos de estudar e se progredir são frustrados.
Adolescente, sem em quem mais se apoiar, o menino precisa trabalhar para seu sustento e alugar um quarto. Aqueles efervescentes anos mudancistas, de bossa nova, de construção de Brasília, de vitória na copa do mundo e um otimismo sem fronteiras na esteira do desenvolvimentismo inaugurado por Juscelino Kubitscheck, servem de pano de fundo para que AT, com sua inegável maestria e num viés analítico, explore os rumos e percalços do próprio País.
Querida Cidade rastreia um imaginário social, político e coletivo, em que os totens e referencialidades de uma geração – a música, a arquitetura, o cinema, o teatro, a literatura, o futebol – vão compondo, em rica intertextualidade, um enredo híbrido em sua forma, mas com uma temática subjacente, quando o Brasil profundo e desigual é o leitmotiv do autor. Num ritmo fragmentário, em que o fluxo de consciência e de memória culminam num rico caleidoscópio de uma época de profundas transformações, acaba por metaforizar não apenas o desejo íntimo do personagem de não perder o bonde da história, mas de um país cujas ambições vanguardistas e modernizadoras em curso serão frustradas com a ditadura pós golpe de 64.
Como o Brasil, o personagem depara-se com atropelos, paradoxos e impossibilidades e a melancolia da interdição vai percorrendo toda narrativa, dando a senha para um mergulho em universos e ambientes distópicos. Entre o real e o onírico, há momentos de pura epifania, em que a expertise de AT se projeta com toda potência e carga simbólica nos recursos e planos de que se vale para o desenvolvimento da trama. Ao criar outras atmosferas dentro desse mundo, do vivido ao sonhado, o desejo, as fantasias e o delírio se entrelaçam em simbiótica relação, sensação que nos remete a Ana Hatherly, autora portuguesa, para quem “em arte a realidade verdadeiramente possível é a que nós inventamos.”
Passado e presente do personagem avultam numa sequência vertiginosa de relatos e situações às vezes insólitas ou suprarreais, ressonância dos melhores ecos do realismo mágico, valendo ressaltar as cenas em que do alto de um prédio ilhado por água, o narrador se vê na torrente do rio existencial, lá onde seus fantasmas e obsessões emergem sem pudor e acabam por afogá-lo no rio tumultuário da solidão e no caudal caótico e espantoso das ilusões.
Querida cidade vem confirmar o percurso literário de um autor, membro da Academia Brasileira de Letras, cujas obras transitam por nosso passado recente e que desnuda a realidade não apenas com a responsabilidade estética que toda arte demanda, mas com o compromisso ético de um escritor fiel ao seu mundo, ao seu tempo, às suas contradições e aos seus dilemas. Ao ler esse romance pungente, percebe-se estreita convergência da ficção de Antônio Torres com o que disse James Wood, crítico e ensaísta inglês em A máquina da ficção: “A literatura faz de nós melhores observadores da vida; e permite-nos exercitar o dom da própria vida; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na literatura; que por sua vez nos torna mais atentos ao detalhe na vida.”
Ronaldo Cagiano é um Escritor brasileiro e vive em Lisboa