Cultura

“Summa demonologica” ou A dama do Hotel Faustus | Luiz Roberto Guedes

   Já ouvi muitas histórias sobre o Faustus Grand Hotel, os relatos mais fantásticos acerca de fenômenos insólitos dentro de seus quartos. Sua lenda bizarra viaja ao redor do mundo, onde houver um hotel Faustus. Posso dizer que o lugar merece sua fama singular, porque fui porteiro noturno do FGH, em Palma de Maiorca, durante oito meses. Foi o tempo que levei para escrever meu livro. 


    Escolhi essa ocupação ociosa para poder trabalhar à noite, isolado em meu posto, sem perturbação. Enquanto escrevia meu romance, outra história se desvelava diante de meus olhos, o que me fez encarar o fato de que o quarto 234 era o palco de um drama assombroso.


    Passava da meia noite quando aquela mulher ruivíssima me apareceu pela primeira vez no Faustus. Acompanhada por um jovem marinheiro loiro, ela veio em minha direção, altiva, elegante, imponente. 


    — O quarto 234 está disponível?


    A voz de contralto era imperiosa. Os olhos verdes magnetizavam. Examinei sua licença de motorista, expedida em Londres, em nome de Leona Falkenburg. Pedi um documento ao marujo, que me parecia um tanto tatibitate, como sob efeito de alguma droga.


    — Ele deixou no navio — ela falou.— E parte amanhã, ao meio dia. 


    Apresentei a caneta e a ficha para o rapaz preencher. Ele escreveu “Wim Winkler” e, como endereço, indicou o navio holandês Statendam Ster. Reparei nas iniciais “WW” gravadas em azul na sua mão esquerda, superpostas dentro de um círculo, junto ao polegar. Tatuado na mão direita, um pequeno caranguejo vermelho erguia suas pinças defensivamente. Achei que representava seu signo zodiacal. 


    O casal apolíneo caminhou para o elevador. Ela portava a tiracolo uma grande bolsa de couro negro, capaz de conter todo o arsenal cosmético de uma vamp tão esplendorosa. A cabeleira avermelhada flamejava sob as luzes do saguão, tanto que me perguntei se aquela seria sua cor natural, isenta de tintura. Para ter certeza, eu precisaria dar uma espiada no púbis da maja desnuda, mas isso era privilégio do bonitão holandês. 


    Procurei não pensar nisso e retomei a perambulação do meu protagonista por Barcelona, Marselha, Roma e Budapest. 


    Perto das 4h00, a mulher saiu sozinha do elevador e veio pagar a estada, em dinheiro vivo. Ela disse que o rapaz estava dormindo profundamente, que ele merecia descansar. E foi embora, penteada, maquiada, magnífica. Meu turno terminava às 7h00 da manhã, quando chegava meu substituto, o madrilenho Alejo Ferrero Velasco. 


    — Tem um marinheiro dormindo no quarto 234 — comuniquei.— Toquei lá às seis e meia, mas o camarada tem sono pesado. O navio dele zarpa ao meio dia.


    Ferrero ligou de novo, deixou tocar por meio minuto e anunciou que ia arrancar o dorminhoco da cama. Mandou que eu ficasse esperando.


    Logo voltou dizendo que não havia ninguém no quarto 234.


    — Está tudo revirado lá em cima, como se tivesse havido uma luta. O tipo já foi embora. Deve ter saído quando você foi mijar. Ou você nem percebeu, porque vive enfiado nessa escrevinhação.


    Ferrero gostava de implicar comigo, por isso, respondi só com um bocejo. Era minha hora de ir dormir no porão da pensão Sant Llorenç.


    Dias depois, li no Diario de Mallorca que um cadáver caucasiano fora encontrado, em partes, na platja Cala Esmeralda. O tronco nu, uma perna, um braço. Colhidos por uma rede de pesca. O peito estava aberto, faltava o coração. Fiquei alarmado com um detalhe em particular: havia um caranguejo vermelho tatuado na mão do braço decepado. 


    Concluí que o marujo Wim Winkler não tinha embarcado no navio Statendam Ster. No entanto, não informei a polícia nem compartilhei minha suspeita com Ferrero Velasco. Eu era um turista retardatário, meu visto estava prestes a expirar. Precisava me concentrar no meu bendito livro. 


    Mas o diabo gosta de cruzar o nosso caminho mais de uma vez.


    A maja de cabelos vermelhos reapareceu numa noite de sexta-feira, solicitando o quarto 234. Agora escoltada por um marinheiro negro, um grandalhão de cabeça raspada, argola dourada na orelha direita e um tridente tatuado na mão esquerda. Com um pressentimento sombrio, registrei o nome do eleito: Ebraim Senemor Coimbra, natural de Moçambique, embarcado no cruzeiro Almalusa.


    Evitando o olhar hipnotizante de Leona Falkenburg, notei que ela trazia a mesma bolsa de couro negro. Não pude deixar de pensar que ela enfurnava ali seu instrumental de dominatrix: algemas, açoites, corrente, coleira, máscara, falo de borracha, sei lá que mais. 


    Horas mais tarde, ela voltou sozinha à recepção, pagou em dinheiro e falou que o homem estava dormindo, chapado de haxixe marroquino, que eu só o chamasse pela manhã.


    Mal ela partiu, resolvi conferir a veracidade da história. Entrei no quarto 234 pisando como um gato, e não havia ninguém nos lençóis amarrotados. Espiei os armários, como se ela pudesse ocultar um Tarzan daquele porte. Inspecionei o banheiro, buscando salpicos de sangue nos azulejos, na banheira em forma de concha. Nada. 


    A porta para a sacada estava aberta, o vento fazia ruflar as cortinas. O quarto 234 ficava nos fundos do hotel, onde a vista era só a borda extrema de um penhasco e o mar rugindo lá embaixo, fustigando os rochedos. O que aquela leoa infernal tinha feito do moçambicano? Ela poderia dominar, desossar e abduzir um macho alfa massudo como um lutador de MMA? Eu não fazia ideia, porém, o Diario de Mallorca veio alardear o surgimento de mais um cadáver desmembrado, em outra platja, a Cala Mondragó. Um negro, reduzido a tronco, perna, braço. Com o peito aberto, o coração extirpado.


    A recorrência desse modus operandi me fez suspeitar de algum ritual tenebroso. Um sacrifício oficiado pela sacerdotisa de uma seita satânica? Mas quem era, o que era, na verdade, aquela pelirroja de olhos verdes? Uma bruxa? Uma vampira ou demônia encarnada? Eu só podia pensar na mítica succuba, a diaba lúbrica que sugava a energia sexual masculina. Para mim, aquela fêmea voraz não era a fantasiosa vagina dentata, mas um abismo sem fundo. Um sumidouro de homens.


    Repeli essas conjecturas porque precisava trabalhar no meu livro. Mas decidi que, se ela voltasse, eu chamaria a polícia no ato, assim que ela entrasse no quarto 234 com um novo parceiro — ou vítima.

 
    Era evidente que marinheiros incautos perdiam o juízo e a vida nos braços daquela sereia de cabelos vermelhos e olhos verdes.

     A dama demoníaca não apareceu mais no Faustus. Mas o jornal Diario de Mallorca continuava reportando uma série de corpos destroçados, em várias platjas da ilha, para horror dos turistas. A imprensa sensacionalista logo criou sua versão local de Jack, O Estripador, batizando o assassino de El Coleccionista de Corazones.


    Por fim, chegou o dia em que me desliguei do FGH, e disse adiós com mucho gusto ao antipático Ferrero Velasco. Parti de Maiorca com mala e mochila. Comprei uma passagem de ferryboat da CNV, com destino a Barcelona. Uma travessia de 12 horas. 


    Nessa noite, depois de jantar um lamentável macarrão instantâneo, fui respirar a brisa marinha no convés. Uma imensa lua cheia flutuava sobre o mar. Estava fumando meu puro quando tive um choque: vi a maja de cabelos vermelhos junto à amurada, contemplando a lua. A dama infausta, envolta num festivo poncho peruano. Criei coragem e fui em frente.


    — Boa noite, senhora. Creio que já nos vimos antes.


    — Não me recordo — a mesma voz imperativa, os olhos frios.


    — A senhora não se chama Leona Falkenburg? E costumava se hospedar no Faustus Grand Hotel?

 

     — Não. Estive no Hotel Sant Jaume. 


    Falei que tinha sido porteiro noturno do Faustus, que conhecera lá sua sósia absoluta. Ela por acaso não teria uma irmã gêmea? 


    A criatura dissimulada sorriu com desdém e observou que não era nada lisonjeiro ouvir que havia um clone nosso circulando pela mesma ilha. Então alisou os braços alvíssimos e disse:


    — Estou com frio, preciso de um chocolate quente. Ou melhor, de um conhaque. Vamos para a cafeteria? 


    Aceitei o convite, intranquilo. Bebericando seu conhaque de um copo levemente aquecido pela chama de uma vela, a ruiva dignou-se a revelar sua possível identidade. Disse que se chamava Malka, era livreira e dedicava-se a rastrear raridades para colecionadores obsessivos.


    — Primeiras edições de Cervantes, Rabelais, Chaucer, Goethe, Balzac, Baudelaire, Dostoiévski? — citei gigantes do meu panteão.


    — Não. Pérolas negras do ocultismo. Fui a Maiorca negociar o único exemplar conhecido da Summa Demonologica, um tractatus escrito pelo bispo tcheco Jan Kozel, publicado em Praga, em 1638.


    — Nunca ouvi falar, desculpe. Deve ser valiosíssimo. 


    — Pertenceu a um bilionário russo que morreu em Maiorca. Os herdeiros aceitaram minha oferta sem discussão. O novo dono é um viejo duque espanhol. Mas você me parece bem versado em literatura.


    Declarei que eu era apenas um obscuro escritor latino-americano, que tinha passado oito meses em Maiorca, escrevendo à mão um romance tortuoso, compilado em 21 cadernos escolares de sessenta páginas.


    — Interessante. Qual é o seu gênero literário? Terror? Thriller político? Erotismo?


    — Nada tão rotulável. Apenas ficção realista. Um road book.


    Malka sacou do poncho uma cigarreira prateada, de onde puxou um cartão comercial.


    — Quando for a Londres, me procure. Posso apresentar você aos maiores publishers  do Reino Unido. Nosso pessoal costuma frequentar o pub Black Boar, em Covent Garden. Toda sexta-feira. Apareça. Se eu estiver viajando, fale com minha assistente, Nikka Quickfall.


    Mirei o cartão: Malka Markova, Black Manor Books. Qualquer autor iniciante levitaria em altas expectativas a partir desse encontro aparentemente casual. Mas o filho de meu pai tem mais juízo que a maioria dos escribas irrefletidos. Eu tinha todos os motivos para temer os sortilégios daquela medusa ardilosa, uma sumidade em tratados de demonologia. Agradeci a gentileza, sabendo que nunca pisaria no tal pub. E tratei de controlar minha inquietação, até que pedi licença para me retirar, alegando que continuava a reler e retocar meu original. 


    Vi uma chispa de fúria nos olhos verdes. Por segurança, tranquei minha cabine com duas voltas na chave. E meu desassossego se prolongou em insônia. Se adormecia por instantes, despertava agoniado, quando a demônia já ia mergulhar um longo punhal negro em meu peito. 


    Por volta de sete da manhã, desembarquei atordoado em Barcelona — sem avistar Malka Markova —, e logo peguei um trem para Madrid. Ignoro se a polícia de Maiorca descobriu alguma pista que levasse ao Faustus Grand Hotel. Nunca ninguém saberá o que se passava no quarto 234. Tenho uma única ideia absurda sobre o que aconteceu com aqueles homens. E creio nela — ؙporque é absurda. 


    Não quero mais imaginar quem pode ser aquela sereia sequiosa de marujos. Preferia esquecer essa história.


    Mas eu sei bem que o diabo gosta de aparecer de repente, sem esperar convite.

 

Fotografia de Luís Roberto Guedes

 

Poeta,escritor, tradutor e letrista, Luiz Roberto Guedes escreve para pequenos e grandes. É autor da novela histórica “O mamaluco voador” e dos contos de “Miss Tattoo” e  “Como ser ninguém na cidade grande”. Seus infanto juvenis “Treze Noites de Terror” e “O Livro das Mákinas Malukas” foram adotados pelo Ministério da Educação para o PNBE — Plano Nacional Biblioteca na Escola.




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