Política

A pulsão do abismo | Celso Japiassu

Uma história de ações muitas vezes desastradas, como foi a criminosa intervenção na Líbia, mas apontada como a mais bem sucedida aliança militar jamais realizada, a Organização do Tratado do Atlântico Norte-NATO completa em 2023 74 anos tendo a comemorar fracassos, mas também o retumbante sucesso de ter derrotado a União Soviética e feito desaparecer o Pacto de Varsóvia, sua contrapartida organizada pelo bloco socialista para enfrentá-la. 

 

Criada durante a Guerra Fria, reunindo além dos Estados Unidos, que a lidera até hoje, o Canadá e os países da Europa, ganhou novo fôlego com o ressurgimento da Rússia como potência e ator global no jogo da geopolítica mundial. O Ocidente sentiu-se ameaçado quando os Estados Unidos se sentiram ameaçados. A competição pela hegemonia entre as nações pode vir a afetar a qualquer momento o precário equilíbrio de uma paz que está sendo permanentemente ameaçada e negociada.

 

A paz sem paz

 

Quando a Nato foi fundada, em 1949, o mundo sentia os efeitos da Segunda Guerra Mundial e penetrava num clima de tensão permanente que George Orwell chamou de “guerra fria”. Uma paz em que não há paz, definiu. Ao contrário das guerras “quentes”, não tem conflitos bélicos, não conduz à paz e nem reconhece a honra de guerreiros. O verdadeiro objetivo da NATO foi o de conter a influência e a expansão soviéticas na Europa depois da conflagração em que a URSS saiu vencedora. Inaugurou-se um tempo das “guerras por procuração”, grandes conflitos regionais em que cada um dos lados era apoiado por uma das duas superpotências. O confronto direto foi evitado pelo enorme poder de destruição nuclear dos estoques atômicos mantidos pelos países que lideravam os dois blocos e o temor de que um conflito direto trouxesse a aniquilação total. Em alguns momentos a sobrevivência da humanidade ficou por um fio. Bastaria um descuido, um engano ou um líder ensandecido para ocorrer o horror de uma catástrofe nuclear.

 

A luta entre as potências caracterizou-se pela guerra psicológica, campanhas de propaganda, espionagem organizada, embargos econômicos e pela corrida espacial. Nenhum país deixou de ser envolvido nesse conflito. O Brasil, entre outros países, purgou uma ditadura de 20 anos promovida pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria.

 

O campo de batalha

 

A Europa foi o principal campo de batalha dessa guerra estranha. Antes de entrar nas chamadas operações fora de área, a primeira delas no Afeganistão, a NATO foi à guerra ao intervir no território da antiga Iugoslávia. 

 

Os partidos comunistas da Europa haviam se fortalecido após a Segunda Guerra, a ponto de o primeiro-ministro francês advertir o presidente americano Harry Truman, em 1946, de que os comunistas poderiam chegar ao poder não só na França quanto em outros países europeus. O temor era de que o movimento comunista se expandisse de tal forma que viesse a ameaçar os valores capitalistas e avançar sobre as sociedades ocidentais. O historiador Eric Hobsbawm discorda e diz que a União Soviética tinha saído da guerra enfraquecida e estava longe de ser uma nação expansionista.

 

O analista de defesa britânico Michael Clarke afirma que a NATO é a maior aliança que o mundo já viu, mas que hoje, com cerca de 30 países membros, tem muito menos força do que quando tinha apenas metade desse tamanho. Trata-se de uma análise que foi feita sem considerar o conflito na Ucrânia, que veio a fortalecer a aliança. Sua expansão, na opinião do secretário geral Jens Stoltenberg, é um fator altamente positivo e a sua ação de disseminar a democracia e o estado de direito “é um sucesso histórico”.

 

O presidente Putin fez um alerta ao Ocidente para não ultrapassar “as linhas vermelhas” que protegem os interesses de segurança nacional da Rússia. A invasão da Ucrânia deve ser vista nesse contexto. Antigos países ocupados pelas tropas do Exército Vermelho, caso das repúblicas bálticas da Estônia, Letônia e Lituânia, e de antigos membros do Pacto de Varsóvia, como a Polônia, já se encontram sob influência da NATO. A adesão da Ucrânia significaria o completo cerco da Rússia.

 

NATO x Pacto de Varsóvia

 

Tanto a Nato quanto o Pacto de Varsóvia foram criados dentro do contexto da guerra fria, levando os países de cada bloco a se organizarem em acordos de cooperação militar para, se for o caso, enfrentarem-se em campos de batalha inimagináveis. O compromisso era de que, no caso da agressão a um dos membros, tratar-se-ia de uma agressão a todos, embora tanto a Nato quanto o Pacto de Varsóvia fossem também um instrumento de ataque e de invasões territoriais. Na linguagem militar, o ataque é sempre interpretado como defesa. São diversos os exemplos desse tipo de interpretação: Afeganistão, Iugoslávia, Líbia, Iraque, Golfo de Aden, ataques com mísseis na Síria e a própria invasão da Ucrânia. Em todos esses casos, na maioria sob pretexto de salvaguardar a vida ou a liberdade das populações, predominaram os interesses geopolíticos da Europa e, principalmente, dos Estados Unidos.

 

A Rússia reforçou seu arsenal nuclear e desenvolve uma política externa que procura restabelecer a antiga influência internacional. Sua intervenção na Síria é considerada como bem-sucedida, sustentando o governo de Bashir al-Assad e ajudando a desmantelar o Daesh, o Estado Islâmico. 

 

Em 2023, são vários os conflitos armados ativos no mundo, segundo o Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (Acled, na sigla em inglês):

  • Guerra da Ucrânia: a guerra entre Rússia e Ucrânia começou em 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia. 

 

  • Guerra civil no Iêmen: começou em 2015, quando uma coalizão liderada pela Arábia Saudita invadiu o país para apoiar o governo do presidente Abdrabbuh Mansour Hadi contra os rebeldes Houthi. Já causou a morte de mais de 300.000 pessoas e uma enorme crise humanitária.

 

  • Guerra civil na Síria: começou em 2011, quando uma série de protestos contra o governo do presidente Bashar al-Assad veio a provocar uma guerra civil. Já causou a morte de mais de 500.000 pessoas e a destruição de grande parte da infraestrutura do país.

 

  • Conflito entre Israel e Hamas: é um conflito de longa duração entre Israel e o grupo palestino Hamas, controlador da Faixa de Gaza. Tem sido marcado por ataques do Hamas a Israel e violentos contra-ataques israelenses à Faixa de Gaza. Neste momento está a acontecer uma invasão por parte de Israel tendo como consequência mais um grande desastre humanitário.

 

  • Conflito entre Azerbaijão e Armênia em Nagorno-Karabakh: os dois países disputam a região de Nagorno-Karabakh, que é controlada pela Armênia. Eclodiu em 2020 e já resultou na morte de milhares de pessoas. 

 

  • Guerra Civil no Mali. O número de vítimas da guerra civil do Mali é difícil de estimar com precisão, pois o conflito ocorre em uma região remota e de difícil acesso. No entanto, as estimativas mais recentes apontam para um número de mortos entre 30 mil e 40 mil pessoas mortas em combate, por fome, doenças, e por violência étnica.

 

  • Guerra civil na República Democrática do Congo: A guerra civil na República Democrática do Congo começou em 1998 e é considerada a guerra mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial. Já causou a morte de 8 milhões de pessoas e a destruição de grande parte da infraestrutura do país.

 

  • Guerra civil no Sudão do Sul: A guerra civil no Sudão do Sul começou em 2013, quando o presidente Salva Kiir e o vice-presidente Riek Machar se enfrentaram. Estima-se que mais de 400.000 pessoas tenham sido mortas, mais de 2,5 milhões tenham sido deslocadas internamente e mais de 3 milhões tenham se tornado refugiados.

 

  • Guerra civil no Myanmar: começou em 2021, quando uma junta militar derrubou o governo democraticamente eleito do país. O número de mortos na guerra civil de Mianmar é difícil de estimar com precisão, pois o conflito ocorre em uma região remota e de difícil acesso. No entanto, as estimativas mais recentes apontam para um número de mortos entre 3.000 e 12.000 pessoas.

As guerras e conflitos armados no mundo têm um impacto devastador na população civil. Causam a morte de milhares de pessoas, o deslocamento de milhões de refugiados e a destruição das infraestruturas nacionais.

 

O perigo do conflito nuclear ainda não se desvaneceu por completo e tudo vem confirmar a permanente pulsão da humanidade pelo abismo e o reino de Thanatos.

Fotografia de Celso Japiassu

 

Celso Japiassu: Poeta, articulista, jornalista e publicitário brasileiro. Trabalhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.

É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).

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