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Sobre ensinar poesia | Marcelo Mário de Melo

SOBRE ENSINAR POESIA

 

Para realizar uma leitura completa da realidade e se expressar integralmente, é necessário saber distinguir os códigos científico, filosófico, artístico e religioso. O ensino regular não garante esse domínio, sendo necessários trabalhos de complementação para preencher as lacunas.

 

O ensino da poesia deve ter como objetivos centrais: levar à identificação da linguagem poética, em comparação com a linguagem utilitária do cotidiano, as linguagens típicas do jornalismo, da ciência, da filosofia, da religião e de outros gêneros literários; estimular o alargamento da compreensão de poemas, a apreensão de situações poéticas e a mobilização para a expressão poética das vivências; desenvolver a artesania poética.

 

A marca do trabalho deve ser o esforço para proporcionar avanços práticos no exercício do código poético, deixando-se num plano secundário a abordagem de referências teóricas, escolas, gerações e tendências literárias. Afinal de contas, não se trata de ensinar a história do ciclismo, as suas modalidades de competição e a evolução dos modelos de bicicleta, mas de trabalhar no sentido de que as pessoas percam a inibição, montem na sela e se ponham a pedalar.

 

A iniciação na linguagem poética deve quebrar a mistificação dos que colocam a prática poética como coisa de gênios ou iluminados, mas sem induzir à vulgarização de tomá-la como um jogo fácil de fórmulas simples. Iniciação quer dizer caminhada, esforço na superação de obstáculos. Nessa trajetória, os resultados devem ser expressos em tentativas de produção poética.

 

Não se trata de ensinar fórmulas, mas de estimular as pessoas ao envolvimento com os processos perceptivos e criativos da arte poética. A poesia coloca o desafio da ousadia da linguagem em todos os territórios da existência, quebrando barreiras, vidraças e tabus, descendo aos abismos, gerando tensões éticas por entre a dor, a ofensa, o protesto, o desejo, as seivas e podridões da vida e da mente. Não existem coisas poéticas e não poéticas, mas o olhar poético ou não poético sobre as coisas. É desse olhar que trata o ensino da poesia.

 

A poesia é linguagem racional. Fugir da racionalidade é querer apagar o que nos distingue da condição animal. E fugir da natureza é querer negar a nossa condição animal e cósmica. Sem racionalidade não há invenção, e sem invenção não há poesia. A poesia racionaliza o natural e naturaliza o racional. A poesia é racionalidade sensível. A racionalidade poética é vivida numa permanente sucessão de batismos de fogo e atenção às vísceras.

 

Não se deve confundir emotividade com poesia. Nem toda comoção conduz ao poema. Muitas vezes uma festa, uma farra, uma caminhada, uma conversa, uma sessão de terapia, a solução do problema x ou y, elimina a febre “poética”. Poesia não é exclamação. Como em todas as linguagens artísticas, o produto poético é expressão elaborada, tradução de vivência, construção. É um esforço para sair do círculo fechado da linguagem utilitária e abrir as percepções à totalidade social e natural, às inquietações e indagações vindas da imaginação e das vísceras.

 

Ferreira Gullar diz que a sua poesia é provocada pelo espanto, algo cuja compreensão desafia e não dá para interpretar pela linguagem convencional nem pelas linguagens da filosofia e da ciência. Mas nem sempre predomina essa carga de incompreensibilidade e indagação. A poesia pode vir também do encanto. Algo que nos envolve sem, necessariamente, o componente de espanto/indagação. Algo especificamente atrativo, provocante, chocante, indignante, sedutor, maravilhante. Mas sempre algo que sai do convencional, vai além das medidas e abre novas janelas.

 

No ofício do escritor, impõe-se a exigência da copidescagem, a carpintaria em cima do texto, depois dos primeiros jorros ou das primeiras versões. A produção poética cuida da passagem da vivência ao verso. Uma forma de edição de falas e imagens, como assinala Ítalo Calvino. Exige a copidescagem poética. Um minucioso trabalho de cortes e ajustes no texto. Semelhante ao que faz um trabalhador manual, um artesão.

 

É como servir uma refeição, em que se forra a mesa, põem-se pratos, talheres, copos e comidas retiradas das panelas e distribuídas em recipientes específicos. As roupas que usamos são lavadas, passadas e guardadas no guarda-roupa em prateiras distintas. São vestidas e desvestidas segundo certa ordem. Cada botão tem sua casa. Tudo na vida é assim, tem preparo e ordenamento. Sendo coisas da vida, a arte, a literatura e a poesia não fogem à regra.

 

Prosa é andar. Prosa poética é desfilar. Poesia é dançar. A arte poética trata da dança das palavras.

 

Fotografia de Marcelo Mário de Melo

Marcelo Mário de Melo é jornalista, escritor e ex-preso político do Brasil. Nasceu em Caruaru, no interior do estado de Pernambuco, e veio para o Recife em aos nove anos. Escreve poemas, histórias infantis, minicontos, textos de humor e teatro e notas críticas.

Vê a elaboração poética como o olhar que mergulha e voa, o espirarco-íris de portas abertas e andantes, sintetizando o pensentir humano nos mergulhos introspectivos, nas interações sociais e nas viagens cósmicas.

Tem diversos livros publicados, de literatura e jornalismo, sendo o último deles o Literavida Historias e Casos.


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