

SETE POEMAS
(sete poemas do livro “Não esquecer” de Clara Baccarin
Ed. Patuá, 2022. Contemplado com o ProacLab 2021)
***
ser a própria voz
final de flor
pétala caída
com sinal
de semente
nascente
navegando
nas águas
turvas do rio
pedra bruta
nas rugas
da pele
rouquidão
entre parênteses
insistentes
linhas
que tocam
as mãos
***
andam
recolhidas
minhas asas
e
nunca estiveram
tão prontas
para voar
***
caminho
noite de meia lua
na estrada sem luz
folha seca de embaúba
ou gambazinho morto?
barulho de vento na mata
ou bicho grande que espreita?
discos voadores dançando no céu
ou experimentos espaciais de elon musk?
distante um disparo de tiro
ou escapamento velho de moto invisível?
espíritos que acompanham a subida da serra
ou presságio de dia que nascerá limpo?
***
uma criança chora na casa
e acorda as outras
que com tantos anos
aprenderam a guardar os choros
chora alto
em frente aos desesperos
das que pararam de chorar
e quer consolo
das crianças de corações
quebrados
e as crianças de corações quebrados
tremem dos pés à cabeça
ao barulho de sirenes nas ruas
de miados de gatos
de alarmes de despertadores
e de choros de outras crianças que choram
e que cortam tudo o que cochila
nas crianças que não choram
as crianças de corações quebrados
então
fecham as portas
falam muito
acendem uma tela ou um cigarro
imploram que silenciem
encontram bicos para as bocas
abafando os sons de dentro
e doem mesmo assim
até que aprendem um pouco, que seja
a destravar os braços
e pegar no colo
as crianças que choram
e seus próprios vestígios
***
eu não passaria
de novo
o fim do mundo
com você
mas talvez
uma tarde de chuva
uma série apocalíptica
um doc sobre vida
extragaláctica
talvez uma lembrança
compartilhada
talvez um café velho
naquela rua gasta
e nossos corpos
enjoados
eu já não passaria
o fim do mundo
a reinvenção da vida
com você
mas te encontro
sempre sempre
num canto dos olhos
num breve respiro
no último segundo
***
querer tudo de um livro:
a começar (e terminar)
pelo cheiro
sentir como se encaixa
nas mãos
tocar as texturas
das folhas, palavras
demorar nas primeiras páginas
orelhas, lombada
espiar o que há debaixo delas
roçar o verso
com olhos e dedos
notar como inicia o percurso
gostar ou não
continuar sedento
ou fechar por ora
passar a língua
no primeiro parágrafo
e ver
o que acontece
depois
***
se você deixa
o dia te come
(por uma boca
pequena
ávida
silenciosa)
se você não pausa
o mergulho
e não pousa
os pés fora
do ciclone
e não seca
um pouco o corpo
nas margens de si,
as águas densas
desse cotidiano rio
te tomam
por todos
os cantos
se você não ousa
olhar estranho
os seus roteiros
talvez você já tenha
perdido
há tempos
as canetas
as agulhas e as linhas
e esteja sendo arrastado
por enxurradas coloridas
de dentro
da baleia azul


Fotografia de Clara Baccarin
Clara Baccarin é poeta e escritora, mora em Monteiro Lobato, interior de São Paulo. Graduada em Letras e mestre em Estudos Literários pela Unesp, publicou os livros de poesia Instruções para lavar a alma (Sempiterno, 2016. Vencedor do Prêmio Guarulhos de Literatura em 2017) e Vísceras (Patuá, 2019. Contemplado com o Proac 2018). Não esquecer é seu terceiro livro de poesia contemplado pelo edital Proac Expresso LAB 2021.