Cultura

Sei o que irás fazer quando já não houver nada a fazer | Adília César

Foto de Stephanie McCabe

“Ao contrário do filósofo que fica, paciente, à beira desse abismo (chega mesmo a sentar-se na sua borda e a perscrutá-lo), o poeta precipita-se nas profundezas, é arrastado pela escuridão, abrindo os olhos, impaciente.”

Maria Filomena Molder, 

in O absoluto que pertence à terra, 2020, Edições Saguão

 

     Eu vejo o futuro. Sinto-o claramente em todas as suas cores, formas e caminhos. Ele está no salto que pretendo dar até ao infinito. Amanhã. O futuro está na bolha que visto para a contenção da maleita que prevalece em todas as minhas acções. Contra tudo e contra todos. O futuro está na oração que reinvento a cada manhã, depois de tentar esquecer tudo o que se passou. A noite. O futuro é o meu roteiro, mas não quero fazer essa viagem, não quero sair do local destinado à partida – o ponto zero da existência, a infância feliz. A minha infância. E, todavia, estamos sempre a partir para locais paradisíacos e, malogradamente, a chegar a lugares comuns. Somos empurrados (para onde?). A fuga para a frente dá as suas surpreendentes reviravoltas, enquanto corremos cada vez mais devagar, até ficarmos com os pés presos no cimento da melancolia. O futuro já não traz soluções: é preciso pagar a dívida referente a tudo o que foi inventado para justificar a crença de que o ser humano é um deus na terra. De um modo individual ou colectivo, já demos provas suficientes do que não somos capazes de consertar, de curar. É preciso fazer uma pausa humanística e voltarmos à ideia de raiz.

 

     Caminho de mãos dadas com o filósofo e o poeta, rumo ao futuro. Não sei o que sou. Talvez uma metáfora ou uma transgressão. De vez em quando, fico para trás e observo-os, procurando apropriar-me das suas características menos voláteis. São tão diferentes na recepção ao real e na interpretação dos seus próprios sonhos. Tão silenciosos e tão eloquentes na sua voz calada. Com um pequeno sobressalto alcanço-os sem esforço, dando as minhas mãos às mãos deles. E assim caminhamos, serenamente, rumo ao abismo. Envoltos em cinzento, a cor da demência.

 

     Os pés descalços sentem o chão do medo. Fechas os olhos e vês o teu duplo. É a tua última oportunidade de seres profundamente humano, de deixares cair a arma que te pesa nas mãos. O medo é um disfarce que não faz justiça à tua capacidade de comunicação. Falas, falas e nunca te calas. Falas e dizes peripécia, acidente, viagem, doença, fogo de artifício, morte. Nunca a esperança, nunca o respeito. A criança nasce e tu continuas a falar sem parar. O tempo passa, a criança cresce sozinha. Nunca chegas a horas, por mais que te esforces. Por fim, os pés descalços sentem o frio da solidão. Abres os olhos e o lobo uiva. Ouve. O abismo está tão perto. Por fim.

 

     O tempo parece abrandar para que tu tenhas mais tempo para pensar em tudo o que te rodeia. 

 

     É urgente abrandar para tentar compreender o que ainda pode ser compreendido. 

 

     É urgente abrandar para cuidar do que pode ainda ser cuidado. 

 

     É urgente abrandar para poder amar quem ainda pode ser amado. 

 

     É urgente abrandar para poder escrever aquele poema que ainda pode ser escrito. A poesia não salva a minha e a tua vida, mas cura as feridas que agora nos vestem, tal como o pão mata a fome, tal como a água mata a sede. 

 

     O movimento do corpo é uma miragem distanciada da realidade. Não há mais nada a fazer com este corpo. Outros sentidos são descobertos neste corpo sem forma. Nomes não ditos, apenas vividos. Neste corpo. Neste corpo que eu não sei se é o teu ou se é o meu.

 

     A música das palavras que nos embala, meu amor. A minha mão na tua e as palavras são as que ainda não escrevemos um ao outro.

 

     Lado a lado, tão calados e tão eloquentes no nosso silêncio. A ausência de algo tem uma presença própria. E assim caminhamos, rumo ao abismo, à procura de um distúrbio, de um contrapeso que equilibre os desastres do mundo que criámos à nossa medida, enquanto as balas se escondem nas cabeças, nas barrigas, nos ossos que adormeceram para sempre. Estivemos na mesma guerra e derramámos o mesmo sangue. E o desgosto. E o amor. Eis o absoluto do mal aniquilado pelo poder de um poema. E nós dois, de mãos dadas, tão distanciados dos outros, morremos, morremos, morremos.

 

Fotografia de Adília César

Adília César nasceu em Lagos, Portugal. É docente e formadora no âmbito da Didática das Expressões Artísticas, sendo Mestre em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Tem colaborações dispersas em antologias e revistas literárias. Publicou livros de poesia: O que se ergue do fogo (Lua de Marfim, 2016); Lugar-Corpo (Eufeme, 2017); O Tempo O Tempo (Eufeme, 2019); Uma agulha no coração (Urutau, 2020); Gelo (Busílis Poesia – Trinta Por Uma Linha, 2021); Delirium (Urutau, 2021); Nocturna (Húmus, 2022). Foi co-fundadora do projecto literário LÓGOS – Biblioteca do Tempo.

 

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
4
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura