Alfredo, 73 anos, catava coisas na rua. Não comida com prazo de validade vencido, nem roupas rasgadas; aliás, não precisava: funcionário público aposentado, viúvo sem filhos, vivia com algum conforto com a pensão que recebia. E, a rigor, não catava coisas. Catava palavras.
Tudo começara por acaso. Caminhava, distraído, por uma rua da parte mais antiga da cidade, quando viu algo brilhar entre as pedras do calçamento. No mesmo instante, sentiu um calor dentro do peito, agradável, uma sensação de plenitude, e ouviu uma voz que ordenou:
– Cate!
Levou um susto e recuou; a sensação agradável transformou-se em um forte aperto em seu peito, parecia que ia ter um infarto. Deu um passo para a frente, a dor diminuiu; recuou dois passos, o aperto ficou mais forte. Decidiu não testar mais o que lhe acontecia, avançou – a plenitude voltou –, abaixou-se e pegou a coisa brilhante. Era uma palavra, das antigas: peralvilho.
– Cate mais! – ordenou a voz.
Nem pensou em desobedecer. Subiu e desceu a rua duas vezes, até ver, semioculta pela vegetação, outra palavra obsoleta: pelintra. Pegou-a e a pôs no bolso, junto com a outra. Ouviu então nova ordem:
– Leve-as, limpe-as, guarde-as. E volte amanhã.
Em casa, consultou um dicionário. Peralvilho era um indivíduo afetado nas maneiras e nas roupas. E pelintra designava alguém pobre e malvestido, que tentava passar por uma pessoa de posses. Notou a quantidade de palavras antigas, que não faziam parte do vocabulário corrente, e estremeceu: morreria muitíssimo antes de encontrar todas elas!
Essa tornou-se a rotina de Alfredo. Saía de seu apartamento, ia para os bairros mais velhos do núcleo urbano e passava horas percorrendo as ruas, os olhos baixos no chão. Por vezes tinha sorte – encontrou, logo no segundo dia, um pilantra, primo-irmão do pelintra. Não era tão antiga, mas caminhava a passos rápidos para a obsolescência. Crianças e adolescentes riam dele, chamavam-no de velho maluco; mas, se parasse antes da hora predeterminada pela voz, a dor no coração voltava, forte. Por sua vez, a sensação de plenitude, depois de encontrar alguma palavra ou vasculhar as ruas por no mínimo quatro horas (ele testara), era um sinal de que a voz estava satisfeita, ele podia ir para casa.
O pior, dizia a si mesmo, era a falta de sentido e a solidão de tudo aquilo. Não sabia por que catava palavras, a voz não se dignara a explicar. E não podia partilhar essa experiência surreal. Certa vez, convidara um amigo, um dos poucos que tinha, a visitá-lo. Quando tentou mostrar-lhe a coleção de palavras, sentiu uma dor fortíssima no peito e teve de mandá-lo embora, sem explicar por quê. Perdeu o amigo, claro. Seu único prazer – e põe exagero no uso desse termo – era descartar palavras de que não gostava. Uma vez, chutou para dentro de um bueiro um gratiluz, que algum ostrogodo, inimigo da última flor do Lácio, deixara cair. Fez isso com medo, mas a dor no peito não veio: aparentemente, a voz também achava que esse termo era uma barbaridade inadmissível.
Uma noite, deu um balanço na sua precária existência: perdera os amigos, os poucos que ainda restavam, não tinha tempo ou energia para ir ao cinema, ao teatro, algo assim. Sua vida era catar palavras. Quando se atrasava para começar, porque tivera algum compromisso que acabara depois do previsto, a dor no coração começava, mais forte a cada minuto.
“Sou movido a alternâncias de contentamento e aflição, de momentos de plenitude e apertos no coração. Virei uma cobaia de Pavlov. Isso não é vida.”
Decidiu-se, escreveu seu nome completo, Alfredo de S…, em uma folha de papel, pintou-o com tinta dourada, e foi dormir.
No dia seguinte, iniciou a catação com uma sensação gostosa, um calor dentro do peito. Não era a plenitude por vezes oferecida pela voz – estranho, pensava nela como uma entidade, não como a expressão de algum ser, um deus, um anjo, um demônio – e sim a iminência do confronto, a adrenalina gerada pelo entrevero próximo. Passou uma hora, duas, não achou palavra alguma. Jogou então na rua o papel com o seu nome pintado e gritou:
– Não cato mais nada! Se quiser, cate você! – e correu para trás.
A dor veio lancinante, mortífera. Era o que ele esperava. Um segundo depois, estava morto.
No mesmo instante, por todo o Brasil, em Portugal, Moçambique, em todos os países de expressão portuguesa, milhares de outros Alfredos de S… tombaram, igualmente fulminados.
Meu nome é Carlos Eduardo (Cadu) Matos. Nasci em 1946, em Niterói, cidadezinha diante do Rio de Janeiro – uma Almada da baía de Guanabara. Formei-me em Direito em 1968 mas jamais advoguei. Dei aulas de Sociologia na Fundação Getúlio Vargas- SP e, antes disso, em 1975, na Escola Bento de Jesus Caraça, em Évora. Sempre exerci o ofício de escritor. Desde 1969 trabalhei como editor, redator, tradutor, preparador de texto e revisor para editoras de fascículos, revistas e livros didáticos e não didáticos. Contudo, apenas em 2018 escrevi meu primeiro texto pessoal, não encomendado por uma empresa. E não parei mais. Lancei quatro e-books pela Amazon: Shoshana – publicado na íntegra em quatro edições sucessivas da InComunidade – e os livros de contos Lili dos dedinhos, A outra e Rebeldes.