Cultura

Retratos da pandemia

 

O homem deveria ter nascido no paraíso, observou Nelson Rodrigues, com afiada ironia. Temos de reconhecer que homens e mulheres seguem imitando a felicidade eterna, valorizando uma existência segura entre pequenos prazeres.  

 

Como Adão e Eva foram jogados na realidade hostil, todos nós nos vimos mergulhados de repente, se não no inferno (como muitos), pelo menos em um incômodo purgatório, ao qual teríamos de nos confinar. Todos com a nostalgia de nossos modestos e frágeis paraísos.

 

Longos meses de pandemia, vivenciados em condições muito semelhantes, geraram estes retratos de gente comum, perplexa com a possibilidade de morrer por asfixia e à espera de uma vacina salvadora.

 

Os textos de A vida como ela era acompanham o cotidiano reconhecível de pessoas que viveriam ao nosso lado, experimentando um Natal e um Ano Novo que não imaginaram. Algumas se esforçam para que aqueles dias pareçam normais. 

 

Insistentes, reaparecem nas histórias alheias, em cenas quase triviais, preenchendo a custosa pausa que a humanidade, para sobreviver, se impôs. 

Vasos e vinho

 

Lino de Albergaria

 

Sobrou um vaso, a planta começando a perder o viço. Última recordação, na varanda nua, dos acontecimentos recentes na cobertura do prédio ao lado.

 

A mulher veio sozinha há uns dois anos. Cercou o lugar de plantas. Nenhuma comum, todas bem vistosas, cuidadosamente escolhidas. Apenas folhagens, excluiu as flores. Imaginei que era paisagista.

 

Via às vezes deambulando pelo apartamento duplex outra mulher, usando seu uniforme de doméstica. A patroa surgia nos finais de semana entre os arbustos da varanda, recebendo amigos e servindo vinho num decanter.

 

Veio a pandemia, e ela logo aumentou o número de convidados. Chegou a contratar um garçom, que, tanto quanto ela e os amigos, nunca usou máscara. A festa intermitente criou uma ilha agitada e à beira do descontrole no topo daquele prédio.

 

O vinho subia junto com as vozes, sobretudo a da anfitriã. O barulho, competindo com a música alta, atravessava a madrugada. Ouvidos dos vizinhos nunca foram considerados.

 

As reclamações, depois do apelo à polícia, finalmente fizeram efeito, e as animadíssimas reuniões passaram a acabar antes da meia-noite.

 

Acreditei que, habituada a frequentar restaurantes e bares, ela os trouxe para sua varanda aberta, espalhando pela vizinhança, amedrontada e confinada pelo vírus, a intensidade de uma alegria desvairada. Rito espalhafatoso para celebrar a vida, desconsiderando a morte.

 

Quando os bares reabriram, ela não recebeu mais ninguém. Ontem, minha surpresa. Homens de macacão cinzento enchiam caixas com as coisas da casa. Hoje, percebo o vaso que ficou para trás. A planta, sua cor se apagando, destinada a morrer de sede. 

 

A moradora, empresária até então de sucesso, não conseguiu honrar as despesas. Vítima do distanciamento social que arruinou seu negócio, não teve como manter a cobertura e os fins de semana de vinho, gritos e embriaguez. Seu jeito de demonstrar o quanto era feliz.

 

Lino de Albergaria, o autor brasileiro, vive em Belo Horizonte, onde nasceu e se formou em Letras. Estudou editoração na França e trabalhou na área em São Paulo e no Rio de Janeiro. Publicou cinco romances e várias dezenas de livros infantis. Dessa produção, teve textos publicados na Bélgica, no México e nos Estados Unidos. Tem colaborado com o Suplemento Literário de Minas Gerais e com a revista InComunidade.

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