A gênese do teatro repousa nos ritos e festivais religiosos, sendo o indivíduo praticante inserido num grupo, partícipe de uma cerimônia. Originariamente ministrados por um sacerdote, essa tarefa foi paralelamente delegada ao comediante, desligando-se de sua essência metafísica. Em substituição às escrituras místicas, pouco a pouco, os textos dramatúrgicos passam a interpretar a realidade de forma crítica, expressando historicamente relações conflituosas, polarizadas com centros absolutos de poder.
Isento da carga negativa atribuída aos artistas por Platão – marcado no período medieval pelo aspecto moralizante de temática sacra -, paulatinamente, o teatro vai se adaptando às mudanças e incluindo temas mais abrangentes que envolviam diferentes dimensões da vida social caracterizadas pela instrução e pelo divertimento, tornando-se útil à população mediante diversas formas de experiências cênicas.
Durante o período moderno a prática teatral era intensa. Dramaturgos davam impulso à propagação de espetáculos com críticas sociais, fazendo das representações teatrais um poderoso veículo de comunicação, com grande influência junto ao público. Sob essa perspectiva, o valor literário das encenações não mais se atinha a cenas de lirismo popular com longos trechos declamatórios. Com preocupação didática, o teatro moderno – servindo como instrumento do idealismo humano – propiciou aos espectadores o contato com a história contada, incentivando-os a transformar a realidade vivida.
Surgem, então, as grandes edificações teatrais da era burguesa, sendo erigidos em poucas décadas imponentes palácios por toda a Europa. Entre os anos de 1745 e 1786 foram construídos teatros nacionais em cidades como Viena, Hamburgo, Mannheim e Berlim, entre inúmeras outras. O mesmo se deu em França, Itália, Inglaterra, Polônia, República Tcheca, etc. Embora tenha sido a Dinamarca o primeiro país no qual o teatro tomou por assim dizer uma autoconsciência de suas potencialidades, foi na Prússia do rei Frederico II e na Rússia da imperatriz Catarina II que as artes cênicas foram percebidas como solução para problemas educacionais, mediante a adesão de uma ideia de teatro como «escola do povo».
Na França do século XVIII, Diderot vislumbrou no teatro o meio de promover o ideal ilustrado – expresso como reconciliação do humano com sua natureza e como contemplação de sua bondade natural, considerando ser tarefa da arte expressar os acontecimentos cotidianos – a fim de entender as relações entre indivíduo, natureza e sociedade, com vistas a desvendar o enigma que estas relações estabeleciam.
Para o filósofo francês, a arte era seleção, a busca de um ideal de esclarecimento, sendo tarefa do artista à época tornar belo o mundo sensível através de um modelo real captado da natureza, esfera essa na qual a essência da arte deveria se consistir em seu aspecto verossímil, enquanto transposição do real.
Se, em defesa da regra das três unidades formais do teatro, Aristóteles referiu-se ao poder catártico das tragédias ao afirmar que a arte imita a natureza [He tékhne mimeîtai tèn phýsin], em conformidade com o filósofo estagirita, Diderot acreditava que a arte, substituindo a natureza ou pondo-se em seu lugar, permitia levar a termo o seu processo poético. Assim é que em seu Paradoxo sobre o comediante, ele indaga: “E como formaria a natureza sem a arte um grande comediante, já que nada se passa no palco como na natureza, e que os poemas dramáticos são todos compostos segundo um certo sistema de princípios?” (Diderot, 1979: 460).
Por sua vez, Rousseau, que em princípio se interessa pelas artes cênicas, motivo pelo qual teria se transferido para Paris, se transforma numa ‘máquina de argumentar’, fazendo diversas críticas ao teatro. Eis a sua grande questão: “Seria o teatro o grande corruptor da moral e dos bons costumes?” Em tendência por assim dizer contrária aos seus contemporâneos, ele lembrava aos artistas de sua época que a obra não deveria ser meramente um simulacro: “Tudo o que existe de supérfluo precisa ser evitado para não prejudicar a clareza do tema. Só assim a arte deixa de ser um mero enfeite, assumindo, acima de tudo, um sentido didático” (Rousseau, 2002: 72).
Diferentemente do pensador genebrino, Diderot atribuía valores positivos ao teatro, ao ratificar que este imitava a natureza. Sob esse enfoque, em seu Ensaio sobre a Poesia Dramática, de 1758, o enciclopedista afirma: “indo ao teatro, os homens se esquivarão da companhia dos perversos que o cercam; lá encontrarão aqueles com quem gostariam de viver e lá verão a espécie humana tal como ela é, reconciliando-se com ela” (Diderot, 1979: 29).
Assim como o filósofo-enciclopedista, também os dramaturgos franceses – desde Molière, com a comédia e Racine e Corneille, com o gênero trágico – atribuíram ao teatro uma forma de fuga das mazelas cotidianas, possibilitando ao indivíduo encontrar, mediante sua fruição, os motivos de identificação através de personagens exemplares, heroicos e virtuosos, sempre envoltos na luta do bem contra o mal por meio de cenas fantásticas.
Ao lado de Montesquieu e Voltaire, Diderot foi um dos pensadores que mais empreendeu esforços no sentido de melhor difundir o potencial da Ilustração, buscando contribuir para a revitalização do teatro, bem como para a resolução de aspectos comportamentais considerados há muito contrários à ideia de sociedade, avançando também na defesa do direito de legalização do ofício do ator, entre outras conquistas.
Em seu mencionado Paradoxo sobre o comediante, ele escreve: “Um grande comediante não é um piano forte, nem uma harpa, nem um cravo, nem um violino, nem um violoncelo; não há acorde que lhe seja próprio; mas toma o acorde e o tom que convém à sua parte, e sabe prestar-se a todos. Nutro elevada ideia do talento de um grande comediante: este homem raro, tão raro, talvez mais que o grande poeta” (Diderot, 1979: 170).
Por sua vez, na Alemanha, sob a mesma vertente esclarecida, o filósofo, dramaturgo e poeta Gotthold Lessing, também voltou sua atenção para o teatro, postulando que o valor social que se dava à arte era vinculado de forma correta com o proceder humano, ou seja, com o exercício da moral. Como autor e crítico, suas produções dramatúrgicas e poéticas manifestaram grande interesse pelos conteúdos morais, carregadas de sentido crítico, convidando o espectador a encontrar um meio termo entre os extremos da piedade e do terror.
Como expoente do Iluminismo, Lessing defendeu os valores da Auflärung a partir da crítica de temas relevantes de sua época, a exemplo de sua peça de 1755, Senhorita Sara Sampson – um libelo contra preconceitos sociais da época – considerada a primeira grande tragédia nacional que abordava criticamente o cotidiano da vida burguesa alemã (bürguerliches Trauerspiel), constituindo, ao mesmo tempo, um marco decisivo no rompimento com a dominante dramaturgia clássica francesa, então majoritariamente em voga.
Assim como supostamente ocorreu com o drama do período greco-romano, diz-se que o teatro no século XVIII surge, enquanto expressão de ideias sociopolíticas, sob a égide da necessidade de refletir sobre a condição humana. Se assim foi, isso certamente não se deu sem divergência entre seus protagonistas, ocasionado principalmente pela defesa de diferentes modelos éticos determinantes.
Como exemplo, por meio da notória querela entre Rousseau e Voltaire, o tema da liberdade teve papel relevante na discussão daquele período, não só no âmbito individual, mas também num contexto mais amplo de interação do indivíduo com a sociedade.
O século da invenção da estética como disciplina filosófica preconizou, também em sentido ideal, que a filosofia não deveria ser apenas um assunto de especialistas, mas um conhecimento que interviesse nos destinos da vida do cidadão comum. Desta forma, a ideia de uma cultura de caráter universal irá fundamentar a invenção da categoria de indivíduo ilustrado do período das luzes, promovendo a junção, em uma única figura, do sábio, do filósofo, do comediante e do sujeito das letras, opondo-se a um conhecimento gestado como expressão de obscurantismo.
Para além da discussão em si, indiscutível foi a função que as artes desempenharam na vida social da época, apesar do primado burguês, caracterizado pela divisão da sociedade em classes distintas, antecipando em mais de dois séculos uma tendência que iria se generalizar de forma massiva como segunda natureza. Como na época, ainda hoje.
Referência:
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Lucyane De Moraes – Nascida em Salvador-Bahia. É Professora de Estética e Filosofia da Arte. É, também, autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin – Em torno de uma amizade eletiva (Edições 70) e de diferentes ensaios com temas socioculturais.
@lucyanedemoraes