Cultura

Relações humanas à luz da Filosofia | André Giusti

Foto de William Smith

“Santo Agostinho nos dizia para detestarmos o pecado, mas não o pecador. E isso nos leva a uma reflexão sobre a forma com que alguns espiritualistas encaram, por exemplo, atos como o aborto. Podemos não concordar, mas é justo que condenemos, que tornemos criminosa a mulher que o faz em determinada circunstância da vida? Uma atitude que não faz parte das nossas convicções merece que despejemos ódio sobre quem a toma? Devemos repudiar o racismo, mas é necessário mesmo que condenemos o racista à treva eterna, não desejarmos que caia em si e veja o quão descabido e contrário à lei natural é seu preconceito?”

 

Calei-me. Com um sorriso de convencimento, tirei meus olhos da turma e os levei à janela. Havia um silêncio pesado sobre mim, e eu já me acostumara com ele sempre que chegava a esse tópico da matéria. O perdão era um dos pontos mais complicados de se abordar em minhas aulas. “No que quero que reflitam é que o ódio não redimirá a humanidade. Condenar como assassina quem aborta não reduzirá o número de casos. Odiar o racista não abrandará seu preconceito e o de outros racistas, preconceito que em boa parte dos casos é cimentado justamente com ódio”.

 

Conferi as horas. Cinco minutos para as dez da noite. 

 

“Mas não confundam, de modo algum, o ‘não odiar’ com a impunibilidade, com a impunidade”, e percebi pelos olhares que o que eu dizia ganhava tons mais confortáveis. Parti para Aristóteles, já encerrando a aula. “Ele considerava ‘que há atos que não devem ser perdoados, pois foram conscientes e deliberados, sendo eticamente reprovável fazê-lo’. Reparem que o filósofo fala que os atos não devem ser perdoados, mas não cita como imperdoáveis os autores desses atos, o que nos leva a concluir que perdão e justiça, perdão e punibilidade, ou pena justa, podem conviver harmoniosamente, cada um em seu campo, em sua função, fazendo com que a sociedade funcione nesse aspecto”.

 

Novamente fiquei em silêncio, percebendo que não haveria considerações, até por causa do adiantado da hora. Geralmente, os alunos precisavam mastigar o conteúdo ao longo da semana, e então na próxima voltavam com milhares de interpretações e desdobramentos. Anunciei que era o bastante para aquela noite, e encerrei a aula.

 

Paralelamente à minha atividade profissional, eu era professor na Escola Voluntária de Filosofia, no Lago Norte. Relações Humanas à Luz da Filosofia era uma das matérias que eu lecionava, voluntariamente, é claro, como todos ali. Abria mão de qualquer retorno material, pois foi essa escola que, vinte anos antes, devolveu sentido à minha vida, abalada terrivelmente por um câncer de mama negligenciado por um médico e que me jogou nos braços da viuvez prematura.

 

Tomei o corredor rumo ao estacionamento, me sentindo em paz e com o dever cumprido por causa de meus ensinamentos, uma sensação de que a cada aula eu me tornava melhor como pessoa e ajudava outras pessoas a se tornarem melhor, se quisessem.

 

Ao lado do meu, havia um carro parado de maneira invertida. Eu estacionara de frente, e o outro motorista, de ré. Quando me aproximei para abrir a porta, notei que havia um sujeito ao volante. Certamente esperava alguém. “Boa noite, professor. Até semana que vem”, e o rapaz de uns 25 anos me acenou. Fora meu aluno um ou dois anos antes, agora estava em turma mais avançada.  Era ele quem o sujeito esperava, por certo deveria ser o pai do rapaz. Sorri, e quando eu pensava em dar parabéns ao homem porque era muito bacana que o filho dele, ou talvez enteado, ou sobrinho, ainda tão novo, já se interessasse por filosofia, ele me olhou com mais atenção, apertou os olhos, franziu o cenho. “Você não é o Favela?”, perguntou, e foi como se eu tivesse pisado em falso e caído em um buraco bem fundo, daqueles de obra, mal sinalizados. Esse buraco era minha infância. “Sou”, respondi titubeante, parecendo até que nem era eu aquele o qual ele perguntava se eu era. Sorrindo, o sujeito saiu do carro. “Porra, Favela! Tu se lembra de mim?”, e sua nova pergunta jogou uma tonelada de lama no buraco em que despenquei, vieram juntos lixo e tanques de água suja. Era a memória dessa infância. Há mais de quarenta anos ninguém me chamava assim. “Sim, me lembro. Marcelinho, não é? Escolinha de futebol de salão do Grajaú Country, 1977, 78. Não é isso?”. Falei como alguém que se recorda de uma comida estragada. Há muitos anos também eu não me lembrava de nada daquilo, e de repente, em menos de um minuto, tudo me subia à altura do pescoço, prendendo meus pés, amarrando meus braços, caminhando para me cortar a respiração. E aquele rosto à minha frente, simpático e amistoso, voltou quatro décadas no tempo em minha mente e agora flutuava acima de mim, na borda da cratera para a qual fui empurrado. Ali, em posição vantajosa, exatamente como há 40 anos, zombava e escarnecia de mim com o apelido que foi, durante uma época, meu sinônimo para humilhação. 

 

“Puxa, como vim te encontrar em Brasília tantos anos depois? E dando aula de filosofia!”. Rindo, me estendeu a mão. O cumprimentei sem qualquer emoção, com uma frieza que, percebi, o deixou meio sem jeito. “Seu professor era um goleiraço”, e se voltou para o rapaz que acabara de entrar no carro. Tentava colocar algum afeto naqueles instantes que eu desejava que acabassem logo. Contou por que saiu do Rio, era funcionário de alguma estatal que não guardei, uma história de que pouco ou nada gravei. Minha atenção foi sequestrada pela minha memória e levada ao cativeiro de um regresso, amargo regresso, diga-se.

 

O técnico da escolinha de futebol de salão me viu jogando no campinho de terra perto da minha casa, na subida do Morro do Andaraí. Deve ter gostado. No final da pelada, chegou dizendo que eu aparecesse no Grajaú Country Club para fazer um teste. “Você é bom, garoto, e no Brasil quase nenhum moleque quer ser goleiro”. Era um senhor – seu Ivo, nunca esqueci seu nome -, me olhou carinhosamente, disse o endereço do clube. Eu sabia onde ficava, não era longe da minha casa, com boa vontade dava até para ir andando, nem precisava pegar ônibus.

 

À forma amistosa como seu Ivo me tratou se opunham à arrogância e prepotência dos moleques do clube. Olharam-me de alto a baixo quando cheguei, pude jurar que fizeram cara de nojo. Marcelinho era um dos destaques do time. Realmente ele jogava muito, era um demônio driblado, chutava bem e chutava com as duas pernas. E ainda era filho do diretor social do clube. Tudo isso lhe dava status de líder no grupo. A coisa começou com ele apontando para baixo e escarnecendo dos meus tênis. “Ele acha que com essa porra no pé vai jogar onde? Pelada no morro?”, e às risadas, debochando, chamava atenção dos outros, que riam também, ou por puxa-saquismo, ou por que eram perniciosos do mesmo jeito. Ou pelos dois motivos. Todos eles calçavam tênis de marca oficial para se jogar futebol de salão, um nível muito superior ao meu par de kichute, um tênis todo preto, grosseirão, de napa e borracha, que imitava chuteira, e que nos anos 70 calçava dez em cada dez moleques pobres feito eu. Era o que a minha mãe, costureira, podia comprar. 

 

“Tu ainda joga?”, ele perguntou ainda meio sem graça, eu já abrindo a porta do carro. Contou que jogava todo domingo em um desses clubes de servidor público que existem aos montes em Brasília. Disse que eu poderia aparecer para jogar, “Vai lá, cara, para fechar o gol como você fazia”, e, brincando, simpático, parecia até que me pedia desculpas pelos insultos da infância. Mostrando pressa, respondi que não jogava futebol há anos. Quase emendei dizendo que agora, se jogasse, poderia comprar a chuteira mais cara que houvesse, pois eu tinha um belo salário de funcionário da Câmara dos Deputados. Contive-me, é claro, primeiro por que eu não iria entregar ali, de bandeja, uma humilhação de tantos anos, e segundo, por que, afinal, para que mesmo eu ensinava filosofia?

 

“E tu agarra sem luva? Vai quebrar os dedinhos, neném”, e um dos outros goleiros, um lourinho de cabelo lisinho, também veio para cima de mim. Ele usava luvas profissionais de goleiro, vestia uma camisa azul e branca, brilhosa, acolchoada nos cotovelos, short azul de nylon da marca das três listras, a mesma dos meiões brancos. Se eu mal tinha grana para os pés, iria ter para as mãos? Jogava com elas nuas mesmo, deixando a pele arder quando defendia os chutes mais fortes.

 

Ganhei o apelido quando souberam onde eu morava. E eu nem morava no morro, mas sim numa casa pequena de vila, na subida, poucos metros antes de onde, oficialmente, começava o temido Morro do Andaraí. Como eu sou branco e eles não podiam me desprezar pela pele me chamando de crioulo ou neguinho, me atacavam pelo lugar em que eu vivia. Todos ali moravam nas belas casas do Grajaú ou nos edifícios novos do bairro, com playground e elevador, e às vezes até piscina, feito os prédios da zona sul e da Barra. Favela. Me batizaram no primeiro dia. Nenhum ali fazia questão sequer de saber meu nome, só de me pisar com aquele apelido.

 

Nos primeiros treinos ouvi todo tipo de insulto. Chamavam-me, aos berros, de asno, imbecil, burro, jumento e estúpido. Eu não conhecia as regras do futebol de salão, eu jogava em campinhos de terra que não tinham marcação de área, de meio campo, nada disso, mal havia traves, as balizas eram montadas com madeira de caixote. Nervoso, inseguro, levei gol por entre as pernas e não consegui segurar outros chutes fáceis de defender. Minhas falhas excitavam a tormenta imposta pelos moleques e sua saraivada de xingamentos, sempre lideradas por Marcelinho, este mesmo de agora, sujeito de meia-idade, aparentemente bem estabelecido, que veio buscar o filho na escola de filosofia e que tenta ser simpático comigo.    

 

Minhas roupas, no entanto, é que eram o mote principal para o esculacho e a humilhação. Quando disse em casa que precisava de uma camisa de mangas compridas para jogar, minha mãe pegou uma que ela tinha, que servia de agasalho, pregou umas espumas nos cotovelos e costurou o número 1 nas costas. Com muita boa vontade passava por uma camisa de goleiro. Mas pior que o arremedo era a cor da blusa: rosa. “Olha só a bichinha! É a rosinha da favela”, e o time todo desabou em risada, conduzido pelo deboche do Marcelinho, claro, apontando minha camisa. Os calções que eu usava para jogar eram outra desgraça. Sei lá que tecido minha mãe usou para costurá-los. Só sei que um deles rasgou logo no início do primeiro treino em que o vesti. Rasgou na bunda, treinei com a cueca aparecendo para deleite daqueles urubus mirins com seus brilhosos calções de nylon da marca que a seleção brasileira usava. Nesse dia, no vestiário, o demônio do Marcelinho puxou meu short, que acabou de rasgar. Aliás, essa era a sua intenção: me expor ao limite do ridículo. Fiquei no meio de todos, do escárnio geral, de cueca e ainda calçado com meus tênis rústicos e vestido com a blusa que também era objeto de risada. “Vou levar essa merda desse pano para o porteiro do meu prédio engraxar os sapatos”, e ele ergueu o tecido do calção estraçalhado, para regozijo daquela molecada cheia de vontades e roupas bonitas, que nunca na vida deve ter entrado em um ônibus. Marcelinho deveria se sentir um astro da comédia quando me humilhava. Dei-lhe um empurrão e um soco que pegou de raspão em seu ombro. Eu não era de briga, eu não sabia bater, socar alguém. Ele nem precisou revidar, porque os puxa-sacos vieram para cima de mim. Eu fiquei quieto, viraria mingau se resolvesse enfrentá-los. Seu Ivo estava no vestiário. Ele, que fora tão carinhoso quando me chamou para jogar, viu tudo, mas fingiu que não viu. Era empregado do clube, precisava do salário, não iria chamar a atenção de filhinho mimado de diretor.

 

Quando cheguei em casa, fui direto para o quarto, que dividia com meus irmãos. Como eles não estavam, pude desabar sozinho no choro, o choro da vergonha. Só que minha mãe escutou, foi ver o que estava acontecendo. Contei da camisa rosa, do calção abrindo na costura. Minha mãe ficou calada, virou o rosto, olhou para o nada. Parecia que chorava a seco, por dentro. Acho que quando o filho da gente é humilhado, automaticamente também somos, mas essa parte eu não sei. Meu filho tem as melhores roupas e os melhores sapatos.

 

O dinheiro lá em casa era contado, mal dava para as despesas, quanto mais para comprar um uniforme de goleiro. Minha mãe foi falar com minha avó, que era tão ou mais pobre do que nós, mas minha avó procurou meu tio comerciante, irmão mais velho da minha mãe. Ele e minha mãe eram brigados e a velha inventou uma história de que precisava consertar a caixa d’água. Em uma semana eu estava vestindo uma camisa de goleiro preta com listras brancas e acolchoada nos cotovelos. De quebra vieram um brilhoso short de nylon e um meião preto, igualmente listrado em branco. Não eram da marca oficial da seleção, a que os moleques usavam, mas era uma boa marca, profissional. Eles me olharam de alto a baixo, como sempre faziam. Com aquela arrogância de meninos riquinhos, fizeram uma cara de “tá, tudo bem, passa”. Poucos dias depois, no final do treino, seu Ivo me chamou num canto, longe de todos. “Toma, mas não diz a ninguém que eu te dei”, e me entregou um par de luvas usado, mas em bom estado. Para quem é pobre, bom estado é sinônimo de novo. “Se você tivesse de luva, não levava aquele gol bobo que levou no treino”, e ele se referiu a um lance em que a bola escorregou em minhas mãos suadas.

 

“Observem que o perdão está no campo oposto ao da violência. Então, me parece óbvio que se queremos um mundo de paz, é plausível que o comecemos a construir a partir do perdão”. Entusiasmado, eu prosseguia minha aula uma semana depois de encontrar o Marcelinho. “E um mundo de paz passa pelas atitudes diárias que podemos tomar em prol da paz. Querem um exemplo? ”, perguntei retórico, ar sorridente. “Enxergarmos o próximo com as mesmas fraquezas que as nossas, passível de cometer os mesmos erros que cometeríamos se estivéssemos no lugar dele. E como conseguimos isso? Perdão é a receita”, concluí, agora com o ar de triunfo que eu adotava involuntariamente quando me parecia que a turma assimilava o que eu dizia.

 

“E aí, Favela? Que é que manda? ”. Praticamente toda semana eu tinha que encarar o Marcelinho na saída da aula, esperando o filho no estacionamento da escola. Continuava sem querer saber meu nome, embora o rapaz certamente lhe tenha contado. “Aparece lá domingo, vamos bater uma bolinha, só para brincar”, e insistia com aquela ginga irritante de carioca, a qual perdi e me desacostumei após tantos anos em Brasília. “Sou professor de filosofia e o cara me chama de favela”, voltei para casa resmungando, sem atinar que o preconceito também morava em campo oposto ao tema das minhas aulas. É que me chamando por aquele apelido que eu julgava soterrado, ele me empurrava para o fosso das piores recordações de minha infância, há muitos anos adormecidas. Adormecidas, mas não mortas.  

 

Devidamente uniformizado e conhecendo as regras do jogo, comecei a me destacar nos treinos, não deixando nada a dever aos outros dois goleiros. Mas como eles eram filhos de diretores, nunca passei de terceiro reserva. Fomos campeões cariocas em 1979, na categoria para meninos de 11 a 13 anos. Joguei duas partidas daquele campeonato. Fiz defesas difíceis, e em um dos jogos peguei até pênalti. Depois dos jogos, apenas seu Ivo veio me dar os parabéns. Os moleques do time não chegaram nem perto de mim. 

 

Logo no início do ano seguinte, minha mãe teve um enfarte fulminante. Caiu dura e de cara na máquina de costura, o instrumento que colocava comida lá em casa. Precisei trabalhar, e com a ajuda da minha avó, me tornei o homem que nunca havia existido naquela casa. Meu tio comerciante se reconciliou com minha mãe, quer dizer, com o que sobrou de minha mãe esticada no caixão, e me ajudou muito, começando por me dar meu primeiro emprego em uma de suas lojas. Por causa deles dois não larguei os estudos, mas abandonei o futebol para trabalhar no contraturno da escola e cuidar dos meus irmãos. Melhor deixar as quadras do que o colégio, e com maturidade precoce, eu pensava assim aos 13 anos. Em meu último treino, apenas seu Ivo se despediu de mim. Aqueles meninos não tinham a menor ideia do que era uma criança precisar trabalhar para ajudar a criar os irmãos, para ter o que comer. Depois de dois anos ali dentro, tornei-me um cético quanto a essa conversa de que o esporte une as pessoas.

 

“Para Hanna Arendt ‘o perdão existe apenas para aqueles que não sabem o que fazem’, e não para o mal intencional, o que nos sugere mais uma vez a comprovação de que perdoar não significa não punir. Na cruz, Jesus Cristo pediu ao pai que perdoasse seus algozes, porque não sabiam o que estavam fazendo, inteiramente diferente dos nazistas na segunda guerra”. E de um lado a outro da sala, eu construía meu raciocínio. “Mas aqui não falamos de atrocidades, falamos do dia a dia, das mágoas a que estamos sujeitos em nossa relação com as pessoas em casa, no trabalho, e até na escola de filosofia”, e nesse ponto dei uma rápida risada, mas ninguém me acompanhou. “A própria Arendt considera que ‘a faculdade de perdoar é a única solução possível para o problema da irreversibilidade da ação humana’, ou seja, como o tempo não volta atrás para reverter atos e ações, só o perdão pode, digamos assim, anulá-los”. A turma me acompanhava atenta, ou ao menos parecendo atenta.  “É verdade que perdoar em tempos de intolerância é ainda mais difícil, mas se sequer tentarmos perdoar, estaremos mantendo sempre atual um momento passado, como se ele se repetisse a cada dia de nossa existência”, e olhei para os alunos com um ar que eu supunha ser de complacência. “Quem não perdoa não se livra do rancor, que é uma doença, é um atavismo ao que de mais atrasado existe na condição humana. É claro que para perdoar precisamos passar pela dor do desmerecimento, pelo luto da ofensa, mas nos tornaremos reféns eternos disso? Precisamos lutar para alcançarmos o esquecimento, e quando se fala desse esquecimento, não é o da memória, mas o do coração. Compreendem?”.

 

Nesse dia, depois da aula, percebi de longe Marcelinho no estacionamento esperando o filho. Dei meia volta, fui fazer hora na livraria da escola. Estava sem muita paciência para aquele infeliz apelido de infância e para novamente escutá-lo me chamar para “bater uma bolinha no domingo, só pra brincar, Favela, tá todo mundo gordo e barrigudo”. Eu não estava, ou pelo menos não tanto, mas há muito meu time era Sócrates, Platão, Epíteto, Sêneca e outros. 

 

Foi a última vez que Marcelinho e o filho apareceram na escola.

 

Ou melhor, a última vez durante dois anos.

 

“É claro que o desejo de vingança estará de quando em quando nos visitando, afinal, ele se aproveita da nossa condição humana de inferioridade espiritual, mas dentro da racionalidade que a filosofia nos traz, precisamos saber administrar essa situação com moderação e bom senso”, e abri largamente os braços. Estava particularmente efusivo naquela aula, a última antes do Natal e do recesso de janeiro. “A vingança, minha gente, nos aprisiona ao opositor. Penso que não há como esquecermos este opositor e o mal que nos causou, a não ser por intermédio da certeza de que a vingança, ou o não-perdão, não se coaduna com o que nos trouxeram ao longo dos séculos os pensadores que estudamos e que nos ajudaram a formar convicções com base na filosofia”. Sorri vitorioso, com um ar de ‘façam o que estou dizendo e vivam melhor seus dias’. Encerrei a aula com tamanha eloquência que talvez alguns da turma houvessem sentido vontade de puxar aplausos. Como não era costume da escola, se contiveram.

 

“Qual é Favela?”, e depois de tanto tempo, quando cheguei junto ao meu carro naquela noite, ouvi novamente o malfadado apelido, mas desta feita se aproximando por trás de mim. A voz era a mesma; o tom, no entanto, estava inteiramente diferente, perdera aquele jeito do carioca que parece que está debochando da gente quando fala. Olhei para trás, na direção da voz. O filho de Marcelinho empurrava uma cadeira de rodas. Nela, estava Marcelinho, mas como estivesse praticamente todo encoberto pelo carro estacionado à minha frente, só consegui enxergá-lo do tronco para cima. Quando passaram pelo carro e se aproximaram, permitindo que eu o visse de corpo inteiro, tomei um choque, um baque tão violento, que larguei a pasta de couro em que eu carregava livros e material de aula. Marcelinho estava sem as pernas. No lugar delas, havia volumosas ataduras, em forma de pontas rombudas, pouco abaixo dos quadris. Marcelinho me olhou com dureza, não sei que emoção transparecia. Eu era todo espanto, lividez, horror. Se algum quadrinista desenhasse minha expressão naquele momento, provavelmente colocaria meu queixo no chão. “Pois é, Favela… não vai dar para jogar neste domingo. Nem neste, nem em nenhum outro mais. Pena que você nunca apareceu lá para brincar, enquanto eu ainda podia dar um showzinho de bola…”. E fez um meio sorriso, duro. Eu olhava para ele e para seu filho, e minha mente era como um dicionário que, de repente, por obra de um feitiço, perdera todas as palavras, restando apenas páginas em branco. Se aquela cena se repetisse mais dez mil vezes, comigo sabendo o que estaria diante de mim, mesmo assim eu não encontraria o que dizer. “Olá, professor. Estou voltando para a escola, vim ver a situação da minha matrícula”, explicou o rapaz, enquanto continuava empurrando vagarosamente a cadeira com o pai. Seu rosto também estava inexpressivo, mas com maior atenção, notava-se nele uma grande dor endurecida, ressequida, terra arrasada, leito por onde não corre mais rio. “Trouxe o velho porque não gosto de deixá-lo sozinho em casa, estou tentando convencê-lo a estudar filosofia. Na volta das aulas, ano que vem, estarei aí”, e encerrou o assunto, como se estivesse indiferente à minha cara aterrorizada, como se nada existisse para explicar, ou tudo que eu via estarrecido fosse de domínio público. Eu não dizia nada, mas minha cara de horror certamente perguntava “O que aconteceu, meu Deus do céu?”. Marcelinho percebeu e se virou para o filho pedindo “Conta pro teu professor o que aconteceu”. Seu semblante parecia exausto de falar sobre o assunto. No rosto endurecido do rapaz, acentuou-se também uma exaustão, certamente advinda daquela dor desidratada por volta e meia ter que explicar por que o pai, que era tão saudável e ativo, de repente aparece sem as pernas. “Ele e minha mãe estavam vindo de Goiânia. Uma carreta na pista contrária perdeu a direção, passou pela divisória e pegou o carro deles em cheio, de frente. Minha mãe morreu na hora, o velho ficou entre as ferragens do motor do carro, passou um bom tempo em coma… se salvou por milagre”, resumiu com sua dureza conformada. “Uma merda de milagre, Favela, uma merda…”, e falando baixo, olhando-me feito concreto, Marcelinho era revolta misturada a ressentimento. Passaram vagarosamente por mim, foram-se sem se despedir, sem que, abobalhado, eu houvesse conseguido dizer ao menos um “Sinto muito”, por mais patético que fosse.

 

Trêmulo, longe da eloquência e firmeza de minutos antes em sala de aula, entrei no carro, e precisei de alguns minutos para me refazer e ganhar a rua. Sem surpresa, a morte da mulher de Marcelinho remexeu na dor da minha viuvez, sempre ressurgente quando eu sabia que alguém havia perdido a esposa. Com o que eu não contava mesmo, de modo algum, era, ainda que envergonhado, sentir de repente crescer o prazer de tê-lo visto aleijado, em uma cadeira de rodas.

 

André Giusti nasceu no Rio de Janeiro, em 1968, e acaba de lançar seu décimo livro, As Filhas Moravam com Ele, uma coletânea de contos publicada pela editora Caos e Letras.  

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