CARTA SETE
“A menina que caminhava com o gato morto debaixo do braço”
Meu Bem-Amado,
Espanto-me por continuar viva. Gostava muito de lhe escrever uma carta inspiradora, mas a verdade é que, aqui, o ar cinzento e a chuva miudinha têm ensombrado os meus últimos dias.
Sinto medo, muito medo, de coisas que não consigo explicar.
E depois … a guerra que nos vai assolando…
Ouço ainda os últimos estrondos, o grito das sirenes, os ruídos e os sons que atravessaram a noite na qual não preguei olho.
Este lugar é excessivamente solitário, uma coisa horrível que me deixa muda de terror. O silêncio é ocupado por vozes vindas de não sei de onde…
Mas é sempre a voz do mar que ouço, uma voz de quebrar o coração e o corpo.
Meu Amigo, sinto-me muito desamparada.
Só me lembro daquela criança que caminha, serenamente triste, com o gato morto debaixo do braço por uma estrada que não sabe onde vai acabar…
Quem move, realmente, a Realidade?
Saberá responder-me?
Neste momento ouço o quarto movimento da sinfonia de Beethoven, ao mesmo tempo que recordo aquela criança que não pára de andar… serei eu?
É tudo tão excessivo…
Aguardo, ansiosa, a sua resposta.
Um beijo terno.
Sua,
Hanna H.
A MENINA COM AS MÃOS CHEIAS DE LÁGRIMAS
Era uma vez uma menina que apanhou duas lágrimas e entrou com elas no quarto.
Deixou-as crescer lentamente e afogou os pais. Mas a mãe
que sabia nadar abriu a porta de casa e disse: olha o mar
O mar foi a correr buscar uma gaivota e uma caixa de memórias e retorquiu:
“olha o inverno a chegar.”
A menina então com as mãos cheias de lágrimas
e o cabelo chuvoso
apertou o mar no coração da mãe.
CONHECI-O EM LONDRES
Conheci-o em Londres.
Olhos negros, figura alta, esguia,
com a face quase oculta pela tarde,
parece um príncipe arruinado.
Ou talvez um rei no meio do mundo.
Todos os dias o encontro.
Todos os dias com ele me cruzo.
É um homem fechado à chave
com todos os seus erros e todas as suas virtudes.
Todos os dias o encontro.
Todos os dias com ele me cruzo.
Crescemos juntos com as árvores e
com os ramos da tarde a falar com os pássaros.
Oxalá que a Noite não leve tudo
no seu saco desesperado de vento e
lume.
AQUI TODOS AS PESSOAS DESAPARECERAM
Maria Azenha (Coimbra, Dezembro de 1945), é uma poeta portuguesa.
Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa. Desempenhou actividade docente no Quadro de Nomeação Definitiva na Escola de Ensino Artístico António Arroio. Membro da Associação Portuguesa de Escritores e membro de honra do Núcleo Académico de Letras e Artes de Lisboa.
Tem vários livros publicados.