Cultura

Quando a literatura se debruça sobre a homossexualidade: uma homenagem a Eduardo Pitta | Cecília Barreira

Prólogo

 

Há já muito tempo, em finais de 2016, era dezembro, de rajada, fiz um ensaio que, por razões óbvias, nunca poderia ser académico.   Saiu um livro, por mim pago, a uma editora.  Mas, claro, ninguém soube do dito livro. A culpa nem é da editora. A única culpada sou eu. Que não leem os livros de minha autoria. A editora, que eu muito prezo, é a Edições ExLibris do Sítio do Livro.  Uma capa muito bonita. Mas que culpa pode ter uma editora se uma autora não consegue vender os livros dela própria?

Agora, numa revista muito por mim estimada, a Incomunidade, com o Jorge Vicente e o Henrique Dória na direção, consta que já me leem. Muito grata que eu estou à Incomunidade, revista online.

O ensaio é do tipo opinião e história.  Não tem os conceitos certos. Não tem os ditames do hoje, 2024.

É apenas um ensaio, muito velho. De finais de 2016, porventura com uns retoques de 2017.

O ensaio, hoje, 2024, é todo ele uma homenagem ao Poeta Eduardo Pitta. Poeta e Ensaísta. Brilhante. Mas, para minha grande tristeza, morreu ainda novo.

Como homenagem que é, por favor sejam ligeiramente benignos. Não tem referências bibliográficas. Tem os nomes certos. Mas sem as certificadas notas bibliográficas.

É que eu própria desde sempre nunca apreciei as notas bibliográficas, apesar de ser professora universitária. Claro que, havendo um paper académico, lá terei as ditas notas bibliográficas. Assim fiz  no doutoramento e na  agregação.

Nunca cheguei a catedrática. Porque não me apeteceu fazer um cardápio para concorrer a Associado ou a Catedrático.  Fiz dois cardápios, para a Agregação. Já me bastaram.

Portanto isto: uma homenagem ao poeta e ensaísta Eduardo Pitta.

 

Cecília Barreira

(Professora Auxiliar com Agregação da FCSH NOVA e Investigadora Principal do CHAM)

Quando a literatura se debruça sobre a homossexualidade

Rumo à diversidade, pluralismo e igualdade de direitos, chegará o dia em que não será preciso celebrar a diferença, para a fazer reconhecida e respeitada

Verónica Policarpo

 

Voltando a oitocentos, e continuando a Igreja a apelidar de pecados as

várias sodomias, as próprias sociedades mantinham-se inocentemente

ingénuas e incrédulas. A medicina invadiu os comportamentos e os atos

com todo o género de patologias, augurando sucesso nas muitas curas.

 

Quando Abel Botelho (1855-1917) escreveu o Livro de Alda e O Barão de

Lavos, encarou-se abertamente a sodomia e o safismo, essas tão

impressionantes patologias.

 

Alfredo Gallis (1859-1910) escreveu o celebérrimo romance As Sáficas,

pormenorizando obsessivamente atos e práticas.

 

Abel Botelho não tinha o talento literário de um Eça de Queirós, mas, tal

como um Balzac ou um Zola, pretendia açambarcar nos seus romances

as inúmeras doenças sociais.

 

Na segunda edição d’O Barão de Lavos (1898), Abel Botelho refere o

programa da série Patologia Social: O Barão de Lavos, O Livro de Alda,

Fatal Dilema são romances em que predomina o sentimento. Em Amanhã

encontra-se o excesso de pensamento. Em Próspero Fortuna, excesso de

ação (O Espelho Deformante Imagens do Grotesco em Fatal Dilema, de

Abel Botelho. Anabela Barros Correia.)

 

As temáticas de Abel Botelho, desde o safismo à pederastia, passando

pelo incesto (o incesto, esse tema obsessivo queirosiano) eram de tal

modo escandalosas que causavam muita polémica.

 

A obra que mais vendeu foi O Barão de Lavos.

 

Tal como nos diz a ensaísta Anabela Barros Correia, o próprio Botelho

mostrava desinteresse por personagens normais e sem doenças. O autor

era Naturalista, tal como Zola, e agradava-lhe a anatomia das taras

humanas.

 

O Naturalismo, com a sua obsessão pelos cenários grotescos, pouco ou

nada tinha a ver com o cenário social.

 

“A arte naturalista não concretizou o seu esforço de representar a

realidade pura” (O Espelho Deformante Imagens do Grotesco em Fatal

Dilema, de Abel Botelho. Anabela Barros Correia.). O que o Naturalismo

mais apreciava eram as doenças, as patologias médicas, a prostituição,

os vícios.

 

A obsessão de Botelho pelos grotescos era tal, que a sociedade

portuguesa ficava restrita a “doentes” sociais.

 

Eça de Queirós, não tão naturalista, e penetrando cada vez mais no

Impressionismo Literário, apesar de uma obsessão psicanalítica pelo

incesto, espelhava melhor um retrato da sociedade da média e alta

burguesias. É que Eça, por questões profissionais, tendo viajado por

imensas culturas e civilizações oitocentistas, surgia com um olhar mais

clínico e puro da realidade social.

 

No século XIX, como já se disse e se referiu, a medicina no mundo

ocidental tomou conta das doenças e das inúmeras patologias, renovadas

e reencontradas, que rotulavam os cidadãos.

 

Antes de Freud, os alienistas já procuravam o sentimento de tristeza, de

depressão, de insónia, de ansiedade, de sexualidades mórbidas, etc., etc.

 

Em 1896, o médico Adelino Silva escrevia A Inversão Sexual. Estudos

Médico-Sociais. A problemática da questão sáfica era o imenso pudor que

o sexo feminino tinha com o exterior social (vulgo, a rua) e a dificuldade

em conhecer exatamente práticas sáficas específicas. O referido médico,

tal qual um medium, estaria convencido que as mulheres das causas

femininas estariam abençoadas por uma certa masculinização dos

costumes: elas já eram professoras e/ou precetoras.

 

Curiosamente, Alfredo Gallis vivia obcecado com as precetoras

estrangeiras, as quais se tornavam demasiado íntimas das inocentes

discípulas. Este mesmo Gallis, seguindo o médico Adelino Silva, falava de

práticas de tribadismo, de clitorialismo e safismo.

 

Egas Moniz (1874-1955), o primeiro prémio Nobel português, publicou em

1901 o célebre ensaio A Vida Sexual. Fisiologia e Patologia, que foi muito

aclamado e lido. O médico, futuro Nobel, convivia muito bem com esta

medicina patológica. Por exemplo, em relação ao safismo, sentia que

havia uma imensa dificuldade em comprovar atos sáficos, dado que as

mulheres levavamuma vidadiscretados olhares públicos etinhamassuas

reuniões sociais, o tão prestativo chá das cinco. Uma vez que os maridos

passavam muito tempo fora de casa, pouco ou nada havia a dizer.

 

O futuro Nobel comprovava que havia sáficas conhecidas como viragos:

apresentavam um ar profundamente masculino, quer no andar, no falar e

nos gestos. A virago viveria sempre de uma forma acutilante o ciúme. Este

médico,que consideravahaver sodomitas ativos oupassivos,considerava

que também nas sáficas havia as viragos ativas e as passivas (Filhas de

Safo. Paulo Drumond Braga).

 

Como atrás se referenciou, o desenvolvimento do safismo dava-se

sobretudo em conventos, zonas de prostituição, asilos e nas classes

cultas, onde predominariam precetoras ou poetisas.

 

Os sodomitas,com a medicinamuito preocupadacom a suadoença, eram descriminados quando apresentavam gestualidades efeminadas. Só em finais do século XIX, na lógica extrema de apregoar a doença nas sexualidades marginais, é que se começou a preferir o termo homossexual. Mas o povo não falava assim: as mulheres com essas doenças, eram “fressureiras”; os homens eram “bichas”.

 

Se ainda formos aos grandes filósofos, de Aristóteles a S. Tomás de Aquino, percecionamos a inferioridade das mulheres num sentido definitivo.

 

EmPortugal,durante osmeados e até aofinaldoséculo XIX,Maria Amália

Vaz de Carvalho ficava muito preocupada se as mulheres burguesas,

essas incultas, não soubessem tratar do lar, do marido, das criadas e da

prole. Outro aspeto realçado por esta ensaísta seriam as chamadas boas

maneiras. A dita Maria Amália, viúva bem cedo do poeta Gonçalves

Crespo, escreve as Cartas a Luísa: “a mulher nunca será um funcionário

pontual, nem um magistrado inexorável, nem um operador de execução

firme e rápida, nem um médico, nem um legislador” (…) “a vida psíquica

da mulher é periodicamente e crudelissimamente perturbada pelas crises

da sua vida fisiológica”.

 

A ensaísta dizia que a mulher representava o escravo do mundo antigo,

os servos do mundo medieval e os plebeus da monarquia.

 

Oliveira Martins, no artigo que dedica ao livro de Maria Amália, apesar da

submissão da ensaísta ao mundo masculino, refere: “Hoje o médico e o

tutor dessa pupila eterna é o homem: o pai, o marido, o filho. Ai da mulher

que se não submeter, dócil e amoravelmente, a cada um destes médicos

nos períodos sucessivos da sua existência! As miragens de uma suposta

liberdade, inconciliável com o seu estado de doença constitucional, são

mais perigosas ainda do que as miragens tentadoras do donjuanismo”. E

vaimais longe:“asregras,aprenhez,opartofazem-teinválida,ésenferma

por condição, és histérica… o casamento foi uma terapêutica; o marido,

teu protector, um médico. Por sobre enferma, a mulher é débil, no corpo,

no espírito”.

 

Num artigo de 1888 intitulado Feminismo comenta: “é natural que daqui

por pouco tenhamos as mulheres a pedirem voto, agora que já têm liceu”.

 

Mouzinho de Albuquerque, em 1823, afirma: “tendo o sexo feminino igual

direito repartir as vantagens do Estado Social, visto que sobre ele como

sobre o outro sexo recai o ónus público, a educação das mulheres não

deve ser como até agora barbaramente abandonada. Criar-se-ão, pois,

escolas primárias para este como para o outro sexo, e os

estabelecimentos de instrução pública lhe serão completamente

franqueados”.

 

Almeida Garrett, em 1829, é muito cauteloso no que diz respeito à

educação feminina. As mulheres deveriam ser resignadas e deferentes; os

homens são o primeiro sexo por criação divina. A mulher deve estar

sempre sujeita ao homem porque dele depende. A mulher tem como

missão a reprodução e a harmonia no lar. Garrett era um galante, um Don

Juan. Gostava de vestir bem e de pôr pó de arroz cada vez que saía de

casa. Foi um grande apaixonado por mulheres, mas nem todas retribuíram

tanta paixão. Como homem de teatro e escritor é notável e a sua

inferioridade, com certeza mínima, advinha destas considerações, algo

normativas, sobre as mulheres.

 

José Augusto Braamcamp, em 1835, defende que as mulheres, se

puderem ser educadas, serão muito mais úteis à sociedade. Um caso

único de inteligência e de pioneirismo no modo como se observava a

mulher.

 

Oliveira Marreca acreditava na liberdade e na emancipação das mulheres.

Eu própria, que transcrevi, um a um, todos os artigos e escritos deste

economista, percecionei, desde logo, os valores humanistas que

interiorizava e que posteriormente dizia, sem pejo, junto de pares que

muitas vezes o criticavam.

 

Rebelo da Silva, em 1845, referia que existiam 1075 escolas para o sexo

masculino e 41 para o feminino. Veja-se, não só a discrepância do número

de escolas, mas também como isso invalidaria o prosseguimento dos

estudos femininos na Universidade de Coimbra.

 

Entre a construção do projeto de um Código Civil Português (1821) e a sua

concretização (1867), poderá entrever-se a lentidão com que as ideias

liberais entraram em Portugal.

 

O grande Mouzinho da Silveira, em 1832, pretendeu criar o Registo Civil

mas o Registo Civil só se tornou obrigatório em 1911, após a República. A

Carta Constitucional em vigor dizia que a religião Católica era a religião

oficial do Estado. Herculano contestou a não laicidade dessa Carta. Mas,

a Carta era muito pragmática nas incumbências para o sexo feminino: a

mulher tinha que prestar obediência ao marido; a mulher autora não podia

publicar os escritos sem o consentimento do marido; a administração dos

bens do casal pertenceria ao marido; a mulher, administradora na

ausência do marido, não poderia alienar bens imobiliários sem a

autorização do conselho de família, etc.

 

Joel Serrão, grande historiador, perguntava-se se o estatuto da mulher

autora não se ligaria, no final de oitocentos, ao republicanismo e à

maçonaria.

 

Ainda segundo Joel Serrão, todo o período de oitocentos teve

demograficamente mais mulheres do que homens. Os nascimentos

oriundos de relações ilegítimas iam para a tradicional instituição da roda,

extintados conventos em1834.Lisboa detinha o primeirolugarnos recém-

nascidos fora do casamento (25,4 %).

 

A ilegitimidade dos nascimentos até 1940 era uma das mais altas da

Europa. A mãe solteira era uma realidade de ontem e de hoje. A grande

maioria dessas mães eram donas de casa. Outras tratavam do campo e

ainda outras eram costureiras ou modistas, operárias, criadas, lojistas,

mendigas. Mulher que não casasse, em tempo de conventos, seria uma

solução fácil. Depois disso, ou se era operária ou criada ou, as mais

ilustres, professoras ou poetisas.

 

Serrão refere a personalidade ímpar de Camilo Castelo Branco: bastardo,

órfão, mal casado aos dezasseis anos, raptor de donzelas, pai de uma

filha exposta na roda, suspeito de convívios íntimos com freiras mais ou

menos inflamadas e, por fim, a partir de 1859, amantizado com Ana

Plácido. Quanto ao romancista Camilo, foi ele, como ninguém, que

trabalhou as vivências femininas. As mulheres em Camilo são construções

sociais mais importantes do que em Eça. Pensamos mesmo que Eça seria

misógino, daquela misoginia a que a geração de setenta tanto nos

habituou. A geração de Camilo, romântica por excelência, apreciava mais

o lugar do feminino. Camilo é um mundo. Quase todos os grandes

ensaístas literários, falaram da obra camiliana. Ana Plácido, a mulher

oficial e oficiosa, foi-se extinguindo nas memórias, à medida que Camilo

crescia ao longo de novecentos. O século XIX traz-nos três grandes

romancistas: Garrett, o primeiro, Camilo, no seu caos, e Eça de Queirós,

sublime.

 

Em 1875, nas páginas de uma revista pouco lida na sua primeira versão,

surge o violentíssimo romance O Crime do Padre Amaro. Antero, muito

moralista, e Batalha Reis seguindo-lhe o caminho, censuram as partes

mais vibrantes do romance. Em 1878 surge o primoroso O Primo Basílio.

Teixeira de Queirós publicava Amor Divino, em 1877. Júlio Lourenço Pinto

dava à luz Margarida, em 1880, e Abel Botelho publicava O Barão de

Lavos, em 1891. E a primeira “selfie” pictórica foi da pintora Aurélia de

Sousa, por volta de 1900.

 

Mas, uma mulher emancipada, vagamente louca, poetisa, com diários

publicados, divorciada várias vezes e ambígua em certas cartas na vasta

correspondência encontrada, clareou no horizonte: Florbela Espanca.

 

Nascida em 1894, escreve os primeiros versos por volta de 1915. A tónica

finissecular é-nos conferida com a mágoa, a dor e a saudade, que já

António Nobre tinha, mas ela eleva ao êxtase. A sensualidade da sua

poesia, com forte conotação erótica, larga uma inquietação a quem a lê:

 

“Beija-me bem!…que fantasia louca

Guardar assim, fechados, nestas mãos,

Os beijos que sonhei prá minha boca”.

 

Ainda Florbela:

 

“a vida, meu Amor, quero vivê-la!

Na mesma taça erguida em tuas mãos,

Bocas unidas temos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…

Que importa o mundo e os seus orgulhos vãos?…

O mundo, Amor?…as nossas bocas juntas!…

 

Apesar das correspondências várias com o irmão, um dos amantes e

amigas, não há provas de safismos no seu comportamento amoroso.

 

Já António Nobre, muito efeminado, seria alvo de chacota por muitas más

línguas,e sobre esse lado menos conhecido do poeta nada melhor do que

ler a História de Portugal, volume VI, de Rui Ramos. Na poesia de Nobre,

finissecular e muito ligada a procissões, aldeias, apoteoses de grotesco,

não se denotam traços de homossexualidade. O próprio Teixeira de

Pascoais,falandodeAntónio Nobre, para serengraçado,referia ser Nobre

“a nossa maior poetisa”.

 

Um parêntesis acerca de Carolina Beatriz Ângelo. Foi a única mulher que

votou durante a Primeira República (e só depois do 25 de Abril é que as

mulheres votaram em massa), aproveitando um descuido da legislação e

com direito a parangonas nos jornais e até a ameaças físicas por ter

exercido o direito de voto; foi uma mulher extraordinária.

 

O historiador Paulo Drumond Braga refere que a poetisa Virgínia Vitorino

seria sáfica, apresentando-se como afilhada de uma dita madrinha.

 

Judith Teixeira (1880-1959) é, para mim,a única mulher a proclamar a sua

homossexualidade desde sempre até hoje. Teixeira nasceu em 1880.

Publicou três livros de poesia: Decadência; Castelo de Sombras e Nua.

Poemas de Bizâncio. Publicou o livro de novelas Satânia e dirigiu a revista

Europa em 1925.Morreu em 1959 completamente abandonada e sem que

se soubesse sequer que fora poetisa (Lesbianismo e Interditos em Judith

Teixeira, de Martim de Gouveia e Sousa). Os tempos não estavam

favoráveis para sexualidades alternativas.

 

O ensaísta Martim de Gouveia e Sousa refere que Silva Pinto, no ano em

que conheceu Cesário Verde (1873) manteve uma relação passional e

tensa com Narciso de Lacerda, jovem poeta. E viveriam os dois na mesma

casa.

 

Raul Brandão, moralista e conservador,nas Memórias escreve:“Lisboa foi

sempre uma terra depravada, mas nunca como agora. Actualmente é uma

cloaca.Noutro dia noEntrudo, houveumgrandebaile depederastas numa

escola da Graça. Publicam-se livros de versos dedicados a homens por

homens, e entre os manifestos e folhetos espalhados figura a Sodoma

Divinizada, etc., também há mulheres oferecendo poesias como A Minha

Amante” (1933).

 

Retornando a Judith Teixeira. Seguindo o raciocínio de Martim de Gouveia

e Sousa, encontramos nesta poesia uma inflamação quase orgástica que,

para mim, é de uma coragem inaudita, tendo em conta o conservadorismo

da época.

 

“tomo o cetim às mãos cheias…

Sinto latejar as veias

Na minha carne abrasada!

– torcem-me o corpo desejos…

Mordendo o cetim com beijos

Numa ânsia desgrenhada!”

 

(“Perfis Decadentes”. 1923)

 

Vejamos o poema “A Estátua” in Decadência:

 

“Ó Vénus sensual!

Pecado mortal

Do meu pensamento!

Tens nos seios de bicos acerados,

Num tormento,

A singular razão dos meus cuidados!”

 

Ainda outro poema, recomendado por Martim de Gouveia e Sousa:

 

“Não entendem dos meus amores contigo –

Não entendem deste luar de beijos…

– há quem lhe chama a tara perversa,

Dum ser destrambelhado e sensual!

Chamam-te génio do mal –

O meu castigo…

E eu em sombras alheio-me dispersa…

 

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…

Que és tu que doiras ainda,

O meu castelo em ruína…

Que fazes da hora má, a hora linda

Dos meus sonhos voluptuosos –

Não faltes aos meus apelos dolorosos…

– adormenta esta dor que me domina!”

 

(“A Minha Amante”. Judith Teixeira.)

 

Estranhamente, Judith Teixeira morre em 1959, no mesmo ano da morte

de António Botto.

 

Aliás, em torno do caso Judith Teixeira, que mereceu nos dias de hoje da

parte de uma editora a compilação da obra completa, é interessante

verificar que, aquando das fogueiras para onde se lançaram os livros dela,

de Raul Leal e de António Botto, Fernando Pessoa, o grande poeta,

defendeu os homens em causa, esquecendo-se daquela estranha figura

feminina (Paulo Drumond Braga).

 

Durante o salazarismo, continuou a chamar-se de tríbades, sáficas e

nomes impróprios, quando se referia à homossexualidade feminina. Mas,

o salazarismo não se preocupava demais com mulheres que vivessem

sozinhas (provavelmente professoras ou enfermeiras), nem com as

grandes figuras que tinham os seus salões literários. Preocupava-o, ao

salazarismo, o questionamento político do regime e as oposições. A dita

homossexualidade feminina, sobretudo nas zonas rurais e operárias,

certamente que existiria, sem que os homens ficassem muito preocupados

com semelhantes assuntos, dado que confraternizavam nas tabernas uns

com os outros, após o jantar. Já a homossexualidade masculina era

encarada pela sociedade portuguesa como uma doença, uma

irregularidade que a medicina poderia resolver.Mas, falava-se tudo à boca

pequena, havendo sempre alguém que dizia acerca de uma estranha

pessoa, que era um tolo, destituído de consciência ou marginal.

 

Não coloco em causa os feminismos da Primeira República, sufragistas,

encontram-se muito em torno das personalidades de Ana de Castro

Osório, Adelaide Cabette, Virgínia de Castro e Almeida e Maria Veleda.

 

Coma ajuda deJoão Esteves,em Maria Veleda(1871-1955)encontramos

finalmente uma mulher emancipada.

 

Maria Carolina Frederico Crispim nasceu em 26 de fevereiro de 1871 e

morreu a 8 de abril de 1955. A família pertencia a uma classe média culta

de Faro. O pai, João Diogo Frederico Crispim, desempenhou funções

importantes na Câmara Municipal de Faro. A mãe, Carlota Perpétua da

Cruz Crispim, apesar de católica, aderiu aos ideais feministas da filha,

conhecida pelo pseudónimo de Maria Veleda. Veleda esteve num colégio

particular dos três aos seis anos e posteriormente fez os estudos em casa

com diferentes professores. Tinha uma irmã quinze anos mais velha. A

influência paterna foi decisiva, mas aos onze anos deparou-se com a

morte do pai. Dificuldades económicas derivadas desta morte conduziram

a que a mãe Carlota internasse o filho, com doze anos, no Seminário de

Faro. Nas visitas ao irmão,conheceu Cândido Guerreiro, internado à força

pelo pai para acabar o liceu.

 

Porquê Maria Veleda? Maria Veleda foi uma sacerdotisa insubmissa que

defendia as leis mais favoráveis às mulheres, durante o Império Romano.

 

Nunca se quis casar e criou sozinha o filho de Cândido Guerreiro, que fora

para Coimbra estudar. Em Lisboa, por um feliz acaso, conseguiu um lugar

no Centro Escolar Republicano Afonso Costa. Foi nesse centro que

conheceu o famoso Afonso Costa. Colaborava no jornal A Vanguarda, de

Magalhães Lima. Veleda era muito crítica em relação a certas secções

femininas dos jornais em torno de culinária, moda, bordados, remédios

caseiros, etc. Os temas que lhe agradavam eram: a emancipação

feminina, o livre pensamento, a missão social das mulheres, o sufrágio

feminino e o republicanismo.

 

Regressando a 1907, foi iniciada na Maçonaria, por Magalhães Lima, com

o nome Angústias. Militou na Loja Humanidade, ao lado de Ana de Castro

Osório, Adelaide Cabette, Carolina Beatriz Ângelo, e outras. Era

anticlerical. Dizia que a influência dos Jesuítas era inimiga da

emancipação feminina. Era contra os dogmas da Igreja. Criticava a

confissão auricular, porque dava origem à manipulação. Defendeu a

instauração doRegistoCivilObrigatório,aseparação daIgreja edoEstado

e a lei do divórcio. Em 1908 defendeu a criação do Partido Feminista

Português e o sufrágio feminino. Mas foi mais longe. Pediu a abolição do

juramento de defesa da religião a que estavam sujeitos os funcionários

públicos.

 

Nas Cortes, ouvindo António José de Almeida, gritou “Viva a República”.

A sala foi evacuada e a polícia procurou-a. Ela era pequena e franzina,

escondendo-se entre as saias rodadas e compridas de Ana de Castro

Osório e Maria Clara Correia Alves, as quais apontaram a porta aos

polícias afirmando que ela tinha saído a correr.

 

No capítulo da educação, criticava a memorização em detrimento da

compreensão. Criticava também as turmas serem constituídas por 50

alunos. Pugnou para que rapazes e raparigas tivessem uma educação

mista. Defendia uma educação racional e laica. Defendia o exercício físico

e o civismo. Defendia os laboratórios de ciência e as visitas de estudo.

Defendia que a escola não devia ter compêndios, mas programas

científicos e racionais. A educação mista apagaria muitos preconceitos.

Escreveu a peça teatral Escrava, em torno da luta feminista.

 

Com a fundação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas criou

cursos de enfermagem, de francês e de comércio. Tomou contacto, em

Lisboa, com os bairros mais degradados onde havia prostituição, miséria

e crime.

 

Para Veleda, a independência feminina andava a par com o direito de

cidadania. Todas as mulheres deviam adotar uma profissão. Desafiava os

homens a emanciparem-se dos preconceitos. Pretendia a igualdade de

direitos. Traduziu grandes escritoras e feministas de outras fronteiras.

Logo após o 5 de Outubro, percebeu-se que havia uma divisão clara das

feministas: uma mais conservadora e outra tendo Maria Veleda como

referência revolucionária. Houve uma discussão pública em torno do

sufrágio feminino. A presidente da Liga Maria Veleda queria o voto para a

mulher do povo e não só para a burguesa. Mas o voto era masculino e

com bastantes restrições. Veleda já se preocupava com o abuso sexual

de menores, bem como a venda de álcool e tabaco aos mesmos.

 

Morre em 1955 e, tal como pediu, foi enterrada civilmente sem qualquer

ritual católico ou de qualquer outra religião. (Natividade Monteiro,

Memórias de Maria Veleda, feminista republicana, escritora e

conferencista).

 

Após Maria Veleda e a sua insubmissão, o que se poderia esperar mais?

Teríamos de esperar pelo 25 de Abril, por Natália Correia ou Maria Teresa

Horta, para reencontrarmos a emancipação.

 

Natália, no livro O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (Obra Completa),

dedica um poema a Safo (1955).Ary dos Santos, homossexual que o PCP

nunca admitiu, dedicou poemas a Nobre, a Lorca e a Botto. Ary, nas

entrelinhas, sabemo-lo homossexual.Poeta Maior,às vezes tem receio de

ir mais longe.

 

Durante a Guerra Colonial, Lourenço Marques tinha uma prostituição

masculina muito visível. Guilherme de Melo, em A Sombra dos Dias

(1981),refere-nos uma trajetória biográfica deGuy,tendosexocom muitos

companheiros ocasionais, magalas que chegavam de Lisboa e outras

faunas (Cadernos do Nefando: a Experiência Homoerótica na Literatura

da Guerra Colonial, de Paulo Alexandre Pereira.). “Gloriosos, os

homossexuais avançavam agora à clara luz do dia para a conquista do

seu mundo. Durante anos haviam-se conservado nos seus apartamentos,

ocultos por detrás de convencionais máscaras de circunstância (…).

Agora, entravam em euforia. Viam-se por toda a parte – nos cafés, nos

restaurantes, nos cabarets ou na praia, nas esplanadas e nos cinemas –

exibindo os companheiros privativos ou rodeando-se de uma corte de

soldados e fuzileiros, num alarde de risadas a vozear. Pela primeira vez,

os travestis de rosto pintado e cabelos tratados em salões de beleza

davam às esquinas da Baixa o insólito da sua presença”. (A Sombra dos

Dias. Guilherme de Melo. 1981).

 

Ainda Guilherme de Melo: “Não deixa de ser irónico, como, sendo aquele

um regime de tal modo preocupado com a intransigente defesa da moral

e dos bons costumes, de tal forma apegado aos sacrossantos valores da

família cristã (…), de modo tão decisivo acabou afinal por contribuir para

a destruição de todo esse mundo, ao arrastar a sua juventude para uma

guerra que por completo a subverteu” (Guilherme de Melo. 2001).

 

Guilherme de Melo usou sempre a frontalidade, quer nos livros quer na

postura pessoal,desarmando as homofobias dominantes numa sociedade

latina. Além de Guilherme de Melo, temos o caso de Eduardo Pitta.

 

O ciclo Ser (Homo)sexual, organizado por Helena Vaz da Silva no Centro

Nacional de Cultura, deu origem ao título Ser Homossexual em Portugal

(1982; in Um Rapaz a Arder, de Eduardo Pitta. 2013). Diz-nos Eduardo

Pitta que por lá passaram Natália Correia, Guilherme de Melo, Fernando

Dacosta, Maria Belo, Afonso de Albuquerque, entre outros. Pitta

confidencia que “oriundo de Moçambique, homossexual assumido, com

amigos à esquerda e à direita – três óbices sérios nos 70 portugueses –,

eu era uma avis rara” (Um Rapaz a Arder de Eduardo Pitta. 2013).

 

Ainda Pitta: “nunca esqueci um almoço com Eugénio de Andrade, no

Porto, em que ele admitiu vagamente, mas, mesmo muito vagamente,

saber do que eu falava quando meti a homossexualidade entre a

francesinha e a paisagem. Foi isto num sábado de Maio de 1991, no

Cifrão.” (idem). Pitta mais uma vez: “o Botequim foi o bar-restaurante que

Natália abriu com Isabel Meyrelles, em 1971.” (idem). Diz-nos ele, e nós

sabemos, que pelo Botequim passaram Snu Abecassis e Sá Carneiro,

Cesariny, David Mourão-Ferreira, Ribeiro de Mello, Fernando Dacosta,

Helena Roseta, etc., etc.

 

Pitta, sempre “em Julho de 1992, num jantar de aniversário realizado no

Oporto Cricket and Lawn Tennis Clube, Mário Cláudio fez-se acompanhar

do seu jovem companheiro” (idem).

 

O próprio Jorge de Sena, na introdução a Sinais de Fogo, diz “claro que,

no plano da insinuação torpe, ou virtuosa (os extremos tocam-se), será

possível adivinhar, de olho guloso, muita coisa nestas páginas. Isso me

agrada muito, porque os amadores de escândalo poderão ocupar-se de

mim – o que sem dúvida me avantajará na história literária como escritor

–, sem que eu precise de ocupar-me deles” (idem). Nunca um escritor

português soube falar de erotismo com tanta qualidade como Sena.

 

Paulo Alexandre Pereira, já citado, confronta-nos com a novela Pesadelo,

integrada na trilogia Persona, de Eduardo Pitta. A história revê-se num

homossexual branco soçobrando perante as leis militares. É um texto que

associa a homossexualidade à decadência do colonialismo português.

 

O primeiro caso diagnosticado com HIV surge em 1983. No ano seguinte

fala-se indiretamente de um problema pulmonar que vitimaria António

Variações. Entretanto, iam morrendo Rock Hudson, Lauro Corona ou

Cazuza.Em1983,o Diário deNotícias associa o HIVà homossexualidade:

a peste cor-de-rosa e a doença dos homossexuais. (Verónica Policarpo).

Tal como nos diz a historiadora, os homossexuais masculinos são

apresentados como responsáveis. Outros temas tornavam-se

completamente invisíveis: a heterossexualidade, o lesbianismo, a

bissexualidade. Os preconceitos avançam em relação ao HIV. Mas, na

década a seguir um cada vez maior número de pessoas é infetado. Claro

que o preservativo começa a ser publicitado em todo o lado. Os mais

jovens aderem.

 

Em 1985 é fundada a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. Fala-

se cada vez mais de impotência sexual e de frigidez. Mas os sexólogos,

tal como os psiquiatras e os psicólogos, classificam os comportamentos

todos: por exemplo, as parafilias (Verónica Policarpo). Em Portugal, a

homossexualidade é descriminalizada em 1982. Mas, no discurso médico

falava-se dessa preferência como um problema com possível tratamento.

Em 2001 passam a ser legais as uniões de facto, também para casais do

mesmo sexo. Em 2004, a Constituição inclui o artigo 13.º, a proibição da

descriminação em função da orientação sexual. Mas, como é óbvio, os

casais do mesmo sexo não podiam adotar nem procriar com assistência

médica. Em 2006, é aprovada uma lei que regula a procriação

medicamente assistida, a inseminação artificial e a fertilização in vitro.

Mas,só as pessoas casadas,vivendocomo cônjuges há,pelo menos, dois

anos têm acesso. Em 2009, a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica

diz que a orientação sexual não heterossexual não é uma doença e, como

tal, não precisa de qualquer tratamento. Os terapeutas, em grande parte,

continuam a considerar um défice ser-se homossexual (Verónica

Policarpo).Em 2010 é finalmente aprovado o casamento entre pessoas do

mesmo sexo.

 

A partir dos anos 90 cresce a visibilidade das minorias em programas de

ficção, séries e telenovelas. Mas, a descriminação acontece sobretudo

dentro da família.

 

Paradoxalmente, apesar das permissividades, as mulheres enchem os

consultórios dos médicos com ausência de desejo sexual. Ao nível dos

comportamentos, as mulheres têm relativamente poucos parceiros

sexuais. As mulheres continuam a ser monogâmicas.

 

No início dos anos 90m o sexólogo Júlio Machado Vaz apresenta na RTP

o programa Sexualidades. Este programa era relegado para horários

tardios para não ferir as suscetibilidades dos portugueses. Já num

contexto de privatização, continuam os horários tardios e, se possível, nos

canais decabo.Mas,na internet,não háhoras para nada.Tudo é possível.

Surgem os poliamorosos. Através do anonimato permite-se a expressão

de afetos e fantasias. As redes sociais são multifacetadas. Como diria

Badinter,um é o outro;outro pode ser um. Surgem os predadores sexuais.

Os adolescentes podem estar mais permeáveis. Os sexólogos passam

das perversões às disfunções (Verónica Policarpo).

 

Os médicos querem tratar a sexualidade.

 

José Régio e Fernando Pessoa tentaram sempre encontrar na poesia de

António Botto (1897-1959), para além da homossexualidade explícita do

eu poético, uma qualidade e beleza da sua obra.

 

A representação da homossexualidade masculina, desde o satírico

Libaninho, de Eça de Queirós, até à estonteante A Confissão de Lúcio, de

Mário de Sá-Carneiro, é todo um envolvimento em estudo (Anna M.

Klobucka. A Invenção do Eu: Apontamentos sobre a Vida Virtual de

António Botto).

 

O despedimento de Botto do cargo de funcionário público, em 1942, por

dirigir galanteios a um colega enquadra-se no lado mais negro do

salazarismo: a total recusa das diferenças. Luís Forjaz Trigueiros, que

chegou a entrevistar o poeta, disse que ele falava como se estivesse num

palco, de um modo muito afetado. Seria um homem gay out and proud.

(Anna M. Klobucka. A Invenção do Eu: Apontamentos sobre a Vida Virtual

de António Botto). Esta ensaísta avança “que o desejo homossocial pode

ser considerado como uma das forças principais que dinamizam a

interacção e atracção mútua entre os participantes na comédia da

multiplicação heterónima” em Pessoa. A respetiva ensaísta refere o

“Epitáfio” do poeta Carlos Drummond de Andrade aquando da morte de

Botto em 1959 “Não me interessa discutir se o Botto dos poemas finais

valia ounão oBotto triunfaldeoutros tempos.Interessa-meessafidelidade

do poeta a si mesmo, esse orgulho de não renunciar à poesia e de se

considerar um príncipe do mundo, esse poder de manipular mitos e dar-

lhes uma existência, uma densidade social.Nesse sentido,coube-lhe uma

forma de felicidade que nenhum infortúnio externo podia atingir. Botto

criava o seu reino.” (Carlos Drummond de Andrade. Crónica intitulada

“Botto: um Príncipe”. 1959).

 

Botto diria que desde James Joyce, passando por Virginia Woolf, até

Lawrence Olivier falavam dele próprio. Fernando Pessoa traduziu para

inglês no volume Songs, publicado em 1948, sendo que Virginia Woolf

morrera em 1941.

 

A ensaísta Anna M. Klobucka trabalha o espólio de Botto com muitos

apontamentos manuscritos, rascunhos de poemas, mas, curiosamente

estão-lhe vedadas fotos do poeta e de terceiros, bem como resultados de

exames médicos. O bailarino Vaslav Nijinsky seria um amigo imaginário

de Botto. O poeta possuía uma coleção de fotografias do bailarino e

recortes de jornais e revistas. Quando Nijinsky morreu em 1950, Botto

ficou impressionado ao saber que ele tinha morrido sozinho num hospital

de Londres e dedicou-lhe um poema manuscrito. Mas, a relação

imaginária mais intensa era com o grande poeta Federico Lorca, do qual

dizia ter mais de duzentas cartas que eram um primor.A ensaísta Anna M.

Klobucka refere existir um apelo anti-homofóbico quer de Judith Teixeira

quer de Botto: “Deixa-os Falar”.

 

“No mais afirmativo dos poemas homoeróticos de Pessoa, “Le Mignon”,

datado de 1915, mas só publicado pela primeira vez em 1995, diz Pessoa:

 

“Deixa-os falar. A vida é bela se teus lábios são

Vida. O amor é belo se tu és amor. (…)

Deixa-os falar. Prende a tua mão nesta minha mão

E amemo-nos como o rapaz a rapariga ama.

Mas nós somos outros e o amor é chama

Em nossas almas que vibram em compreensão.

Óh, para a tua cama.”

 

(Richard Zenith. Obra Essencial de Fernando Pessoa. Poesia Inglesa.

Volume VI. 2007).

 

Retornando a Botto e aos seus imaginários amigos. Descreveu oralmente

uma visita de Lorca a Lisboa e das noitadas de ambos em Alfama, no

Bairro Alto e na Mouraria. Lorca e Botto, por fim, encontraram-se com

Fernando Pessoa no Café da Arcada. Lorca não gostou dos poemas de

Pessoa porque eram forçados e duros, contrariamente aos versos

bottianos, cantantes e que levavam ao choro.

 

Luiz Pacheco (1925-2008), o escritor maldito, fala desde logo da sua

iniciação sexual, aos 11 anos, pelo Acácio Gama Guerra: “Fui enrabado

mas não muito” (Puta que os Pariu!/A Biografia de Luiz Pacheco. João

Pedro George. 2011). Por volta dos onze, doze anos sabemos que lia

bastante A Vida Sexual de Egas Moniz.É óbvio que a sua iniciação sexual

não foi só com esse poeta, mas com prostitutas e mulheres várias.

 

Além de autor, Luiz Pacheco esteve ligado ao surgimento da editora

Afrodite, onde se publicou, em novembro de 1965, a Antologia de Poesia

Portuguesa Erótica e Satírica, coordenada por Natália Correia. A PIDE,

segundo Dórdio Guimarães, apreendeu os exemplares todos, mas Ribeiro

de Mello fez uma edição pirata que transportou num fundo falso no próprio

carro” (Puta que os Pariu!/A Biografia de Luiz Pacheco. João Pedro

George. 2011).

 

Em 1990 publica o texto “O Teodolito” e em 1992 “O libertino passeia por

Braga, a idolátrica, o seu esplendor”. Só por estas duas obras, e como

editor da célebre antologia, Luiz Pacheco ficaria sempre na história da

literatura. Lendo a magnífica biografia de João Pedro George, verifica-se

que Luiz Pacheco, a maior parte das vezes heterossexual empedernido,

não teve pejo de confessar desvios homossexuais,algo espúrios.De 1952

a 1957,Mário Cesariny publicou naEditora Contraponto,de Luiz Pacheco,

um conjunto de livros. Segundo nos esclarece João Pedro George,

Pacheco publicou um outro texto de Cesariny editado sem nome do autor

e sem data. Cesariny, aborrecido, referenciou que Pacheco pertencia à

Censura e que tinha amigos na PIDE. Dava-se o primeiro grande

desentendimento entre os dois. Cesariny passou-se para outra editora, a

Guimarães.Segundo João Pedro George, Pacheco teria dito que Herberto

Helder fez a mesma coisa “Contraponto cumpria o seu papel de rampa de

projecção, de chocadeira de autor hoje no firmamento da nossa literatura

contemporânea. É a tal minha cagança, eis!, eis!” (in Puta que os Pariu).

 

Pacheco ajudara bastante Cesariny quando este foi apanhado numa

relação com um tropa, Armando Ventura Ferreira. Além de ter de pagar

uma cauçãotinha desedirigirtodos osmeses aoTorel.Pachecopergunta,

em carta a Natália Correia, se ela conhece um bom advogado. A

Contraponto lançou Manual de Prestidigitação, de Cesariny, e o

lançamento foi em casa de Natália Correia:“A sala da Natália estava cheia

de gente. Estava o Gaspar Simões, a Isabel da Nóbrega, o Villaret, estava

o pai deste Tavares, o filho da puta do tareco, estive para lhe dar um

pontapé porque o gajo estava lá a querer sabotaraquilo, estava a roncar…

o Cesariny leu muito bem, depois a maluca da Natália também quis exibir-

se disse ai que bonito, torne a ler, e então arrancou-lhe o livro e leu muito

mal o poema… era o menino das mãos de ouro, que é de facto um poema

muito bonito, dos melhores do livro, aquilo era para concitar à volta dele

um ambiente, enfim, de admiração e apoio para ele ganhar coragem para

parar com aquela porcaria da visita… ele primeiro não queria ir, depois lá

o consegui agarrar para ir ao lançamento, e ele estava sentado com a

Isabel da Nóbrega no meio do chão… e a irmã também foi, a irmã mais

velha, que ainda é viva, suponho” (Puta que os Pariu).

 

Muito mais haveria a dizer sobre Luiz Pacheco e as margens, mas nada

melhor do que citar João Pedro George na conclusão do livro Puta que os

Pariu:

 

“Em certo sentido, os meios artísticos legitimam as situações marginais e encorajam os comportamentos e as opiniões desviantes. O facto de se tratar de um argumento mobilizado por muitos escritores – mesmo por alguns daqueles que ocupam posições centrais e que mantêm laços fortes com as instituições, ou seja, que dominam as oportunidades de produção e difusão literária – faz da marginalidade não um espaço de minorias, de privações ou de exclusões, mas, sobretudo, um lugar de identidade e de integração, onde são vitais a necessidade de rebeldia, de transgressão, de resistência, de inquietação, enfim, de afirmação contra o mundo”.

 

Ao colocaras margens dos artistas no centro das várias culturas, podemos

colocar uma outra questão: as homossexualidades, vividas nas margens,

desde que “artísticas”, serão bem recebidas pelos públicos padronizados?

 

Vejamos o mito de Antínoo na literatura portuguesa mais recente. Sem

dúvida,Antínoo, o belo e esfíngico homossexual,é o corolário inventivo de

escritores muito validados e em que a perturbação da inclinação sexual

nunca se coloca.

 

Na poesia, focamo-nos logo em “Antinous”, de Fernando Pessoa, que, em

carta a João Gaspar Simões, o designa de obsceno.Aliás, está escrito em

inglês bem como “Epithalamium” que, talvez por pudor, Pessoa colocou

em inglês, sabendo da imensa ignorância que esta língua despertava nos

princípios denovecentos emPortugal.Vou mais longe:duvidoque Pessoa

os considerasse “obscenos”. Mas tinha um legado a deixar para o mundo

literário, a famosa arca, e assim desculpabilizava-se de qualquer

comentário futuro.

 

A poesia contemporânea é bastas vezes alertada para o mito de Antínoo,

o amante de Adriano. Marguerite Yourcenar escreveu as celebérrimas

Memórias deAdriano.Tiago Alves (inEsse Humanoque foicomo um Deus

Grego: Antínoo entre Eros e Thanatos na Poesia Portuguesa

Contemporânea) refere também Schiller, Goethe e Oscar Wilde, bem

como Julio Cortázar, Pablo Armando Fernández, Reynaldo González,

entre outros, como autores da literatura universal que referenciaram

Antínoo. (2010)

 

Em Portugal, refere o mesmo ensaísta, surge Lídia Jorge com António

(conto), e o romance de Frederico Lourenço Pode um Desejo Imenso

(2006).

 

Eduardo Pitta e Eugénio de Andrade, obrigatoriamente o devolvem ao

nosso olhar inquieto. Adriano em Yourcenar, Antínuos em Pessoa. Dois

nomes incontornáveis da literatura mundial, sobre a beleza, o

enquadramento estético, a masculinidade bela do muito jovem amante do

imperador, encontrado morto, algures nas margens do Nilo. Querem

melhor lenda/história para a posteridade? A morte na juventude, enquanto

se é belo ou rebelde, de James Dean a Marilyn, aí se encontram as

estratégias das fábulas milenares que endoidecem as mentes de quem as

escuta. A sociedade portuguesa ia-se modernizando.

 

Por exemplo, a poesia inigualável de Luís Miguel Nava, que morreu

assassinado, precocemente (1957-1995), em Bruxelas.

 

Em Nava não há falocentrismo: a figura masculina é o rapaz e o garoto e

a feminina é a mãe e a mulher (Duas Qualidades de Movimento a partir do

Corpo em Luís Miguel Nava A Leitura no Prazer e a Erótica do Poema.

Érica Zingano).Nava admirava Eugénio deAndrade. Gastão Cruz escreve

sobre Nava “O percurso de Luís Miguel Nava, ao longo de quinze anos, é,

simultaneamente, o obsessivo aprofundar da pseudo-análise de um

mundo sinalizado por um conjunto de imagens que nos dá, por vezes, a

sensação, porventura ilusória, de se fechar sobre si próprio” (Gastão Cruz.

2002).

 

Baudelaire, poeta associado a uma lírica do grotesco, foi de certeza

importante nas leituras de Nava, onde se confrontam o erotismo, as fezes,

os interditos e uma escatologia do insondável (Duas Qualidades de

Movimento a partir do Corpo em Luís Miguel Nava A Leitura no Prazer e

a Erótica do Poema. Érica Zingano. 2010).

 

O poeta e ensaísta Eduardo Pitta refere que Joaquim Manuel Magalhães

e João Miguel Fernandes Jorge, juntos desde 1963, casaram assim que a

lei o permitiu. Opoeta, quando os conheceu, diz que já levavam vinte anos

de “casados”: “Dois homens a viver a sua conjugalidade sem álibis, com a

agravante de serem professores, era algo que subvertia a ordem

estabelecida”.

 

Nos anos 90, seguindo a lógica de Pitta, havia duas figuras que

dominavam o meio literário português: Eduardo Prado Coelho e

Joaquim Manuel Magalhães. Sobre Prado Coelho diz

acutilantemente: “Verdadeiro mandarim da vida cultural portuguesa,

tratando o Poder por tu, manietando cordelinhos, arbitrando, foi

suscitando pruridos na Academia, nas corporações, nas centrais de

rumores… Zelotes ressabiados casquinavam o rancor ardido da

inveja: o pai, as mulheres, as viagens, os mots d’esprit, as sinecuras,

a obra, o cosmopolitismo. Ninguém como ele tão lá de casa com

Marguerite Duras ou Maria Cavaco Silva. Trinta anos de genuflexão

para um homem que foi tudo o que quis ser”. Para Pitta, Joaquim

Manuel Magalhães, estaria num campo oposto.

 

Falemos agora de Al Berto, pseudónimo de Alberto R. Pidwell Tavares. O

poeta Al Berto não escondia a sua homossexualidade e, pelo Bairro Alto,

pelo menos nos anos 80,era fácil de o encontrar. A sua poesia ainda é um

ícone gay. Lendo Eduardo Pitta, encontramos reservas em relação a este

poeta. Compreendo. Seguiam correntes poéticas diferenciadas. Mas há

lugar para todos. Al Berto, na obra O Medo, fala de alguns imaginários:

 

“espio o anoitecer, por trás das inexistentes cortinas

apercebo o rapaz com a silhueta do gato morto

junto ao peito, o meu olhar tornou-se felino

sorrio à minha ficção quotidiana

pego num lápis e recomeço a escrever”

 

(“Truque do gato”)

 

E um outro poema:

 

“tateio-te de alto a baixo

reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro

contaste-me uma improvável aventura de Tarzan, ouvia-te

e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via

 

sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo chão

manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas, blusão cheio

de

autocolantes, peúgas encortiçadas pelo suor

as cuecas rotas, sujas de merda

 

e tuas mãos, recordo-me

sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito

teu corpo nu, à beira da cama, em sossegado sono”

 

(“Truque do Meu Amigo da Rua”)

 

Al Berto deixou os Diários (edição e apresentação por Golgona Anghel.

2002). Vejamos um excerto do dia 25 de abril de 1991:

 

“Fui tomar café ao Príncipe Real com o J. P. Fazia frio, começou a

chuviscar.Fomos para a Cister.(estavao L.M.Nava,Tiago e A.Guerreiro,

de quem não me aproximei – o pobre crítico não sabia onde se enfiar na

cadeira). Sentámo-nos numa mesa perto da porta (quando o crítico se

eclipsou, subtilmente, o rabo entre as pernas) o Tiago e o Luís Miguel

(Nava) aproximaram-se. Bom dia para cá, bom dia para lá. Nada de novo.

Pelas 9:30 telefonou-me de uma cabine e deu-me o n.º para eu ligar. Não

consegui, dava sinal de interrompido. Desisti”.

 

Outro excerto de “9 de Março de 91, Porto.

 

O lançamento do livro correu bem. Caso raro, havia bastante gente. A

Isabel de Sá e a Graça Morais trouxeram-me uns desenhos de presente”

 

“1 de Março de 1985:

 

Encontro na Cister: Luís Figueiredo Tomé e o Georgio, Fernando Luís e

Carlos Marias.(…) o que me chocou foi o aproveitamento do meu texto

como suporte de Obsessões Heterossexuais Verdadeiramente Nojentas”.

 

“9 de Fevereiro de 1985. não, não sou eu que estou mais novo, como

disseste. tu é que envelheceste. eu tinha-me limitado a amar o puto que

havia em ti. Cresceste. já não gostas de mim como gostaste. e eu já não

te amo.”

 

 “26 de Fevereiro de 85. Fui jantar com a Teresa Sá e o Luís Figueiredo

Tomé (…) tanta cumplicidade entre nós! Cheguei a casa estoirado, mal

consegui dormir.”

 

“10 de Março de 91. Cheguei a Lisboa exausto. Apanhei um táxi. Não

esquecer o livro para a Isabel de Sá e a Graça”.

 

“24 de Março de 91. Recital: eu, Paulo da Costa Domingos, Rui Beirão e

Eduardo Pitta.”

 

“8 de Abril de 91. (…) fui ter com o Alexandre (Melo) ao Frágil, por volta

das 11:30 (…) fomos ao Kremlin mas estava um verdadeiro terror.

Bebemos um copo e saímos. São 5 da manhã.”

 

“1 de Março de 91.Jantei com o Alexandre (Melo),Eduardo Prado Coelho,

Tereza (Coelho) e Mena no S. ID.”

 

“30 de Outubro de 96. Telefonou o Alexandre. Há meses que nada sabia

dele. Pelos vistos a vida continua a não lhe correr de feição. Está outra

vez em casa dos pais. Será que ainda o amo?”

 

“27 de Abril de 97. Parece o Marco Paulo já abafava a palhinha (…) mas

é paneleiro. (…) odeio o Marco Paulo, é tudo o que mais odeio neste país

(…) tonto absoluto, este ídolo do povo, o povo é tonto. Será? Sempre me

perguntei porque é que a população tem tão mau gosto!”

 

“29 de Abril de 97. (…) Redimi-me da conversa idiota do JL. Não quero

acreditarqueaMariaJoão Martins não tenhaseguidoasminhas emendas.

Ricardo Araújo (Pereira?) sabe – assistiu à emenda”

 

“30 de Abril de 97. Fim do diário.

 

(…) lá fora o tempo não passa. Não passa. E é Domingo, outro, tanto faz.

Se não é Domingo, virá outro lá para o fim da semana. Tenho cada vez

menos força para escrever.Mas é tudo o que me resta. Mesmo coisas sem

sentido.”

 

Al Berto, como todos os ídolos, morreu precocemente. Nesse diário fala-

se por duas vezes de um grande amigo meu, poeta e escritor de teatro,

Luís Figueiredo Tomé. Homossexual assumido, por entre imensas

relações, visitava saunas e reunia amigos para jantares esplendorosos na

sua casa em Campo de Ourique. A peça de teatro Graal ainda hoje é

desconhecida. Poeta Maior, lidando com um vasto público de intelectuais,

era frequentador assíduo do espaço Graal,de Teresa Santa Clara Gomes,

e do Botequim, de Natália Correia. No início dos anos oitenta, lá fui eu

parar ao espaço Graal e inevitavelmente empatizei logo com Luís

Figueiredo Tomé. Não mais nos largamos, se não quando ele se refugiou

na Igreja, para esconder a SIDA, da qual veio a morrer.

 

Eduardo Pitta fala-nos em Um Rapaz a Arder da descoberta de Adília

Lopes, com a antologia Sião (1989).

 

Poesia do nonsense, publicou a obra completa em 2000. Nada se sabe

sobre vidas privadas. Apenas se conhece o seu amor por gatos e

portadora de uma poética totalmente diferente do que se publica por aí.

 

“As Cadeiras Lésbicas”

Na sala só havia uma cadeira

e elas eram duas

como quer fazer isto?

no chão não é próprio

está sujo

ao colo parece mal

e assim as duas ficaram de pé

bem afastadas

uma da outra

e a cadeira ficou sentada

muito contente

ao meio.

 

E “Autobiografia Sumária de Adília Lopes”

 

Os meus gatos

gostam de brincar

com as minhas baratas.

 

Após Adília Lopes não apareceu ainda nenhuma figura feminina que produzisse o mesmo efeito de escândalo e espanto. Existem poetisas lésbicas de opção que não referenciam na sua obra a preferência sexual.

 

O medo é muito. As mulheres lésbicas, ao longo dos tempos, nunca foram bem tratadas. A própria Judith Teixeira morreu só e abandonada em 1959.

 

Nenhuma mulher se confessa homossexual: são bissexuais, tal como no inquérito que Sofia Aboim elaborou para o ICS.

 

De Eduardo Pitta ficam, como referência, a poesia reunida Marcas de Água(1999) e também o romance Persona (2013)que, segundoo próprio, animou os movimentos literários da época. Aliás, refere que é lido “em departamentos de gay studies de universidades inglesas, americanas e brasileiras. (Um Rapaz a Arder. Eduardo Pitta. 2013).

 

Guilherme de Melo e Eduardo Pitta: duas personalidades sem medo ao terem assumido, por escrito, as preferências sexuais.

 

Fotografia de Cecília Barreira.

Cecília Barreira leciona Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. É autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colabora em várias revistas, entre elas a Incomunidade.

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