Cultura

A atração pelo insólito e pelo pasmante | José Manuel Simões

Em Copacabana, relaxado na poltrona que um amigo figurante da TV Globo lhe tinha oferecido, DuArte ouviu Caetano Veloso, “Leãozinho”, e lembrou-se que no dia anterior tinha lido que o cantor começou a namorar com a sua primeira esposa quando ela tinha 13 anos, que fizeram amor pela primeira vez no dia em que ele comemorava o seu 40º aniversário. Tinha pasmado na página. “Como no Brasil só depois dos 14 é que uma pessoa pode ter relações sexuais sem ser considerado estupro presumido, antes dessa idade, mesmo que tenha sido ela a querer e tenha gostado, não tem jeito e um cara pode acabar na prisão”, sugeria-se. Levantou-se o véu da questão e parece que o cantor, anos depois, foi consultar um advogado, o próprio sogro, que lhe terá dito: “Deixe isso p’ra lá. O caso já prescreveu. Como vocês são casados e têm dois filhos não há maneira de o punirem”. Abanou a cabeça e pensou: “estes jornalistas gostam mesmo de criar caso”. Caetano tinha feito aniversário nessa semana, 7 de Agosto, e merecia maior homenagem do que a referente à sua ambiguidade sexual. Será que ele disse mesmo que exercia uma atividade para a qual não tinha muito talento? 

 

Como é possível tal modéstia? – Que se aproximava, enquanto figura pública, daquilo a que Andrew Sullivan chamou de “uma tendência ubíqua e vagamente homoerótica”. Não sei quem é Andrew Sullivan nem o que homoerótica quer dizer, matutou, franzindo os lábios enquanto ouvia o filho da maravilhosamente paciente Dona Canô cantar “Totalmente demais”. 

 

Ele sabia que Caetano é um polémico agitador de consciências e achava doentio que a comunicação social se focasse no sensacionalismo, ignorando os seus Grammys, não mencionando o seu dom de ser um dos mais relevantes poetas da canção escrita em português, os movimentos que criou, o facto de ser inteligente e bem informado. Como homenagem de aniversário gostaria de ter lido que Emanuel Caetano Telles Viana Veloso também é escritor, diretor de filmes, ator, produtor, pintor; gostaria de ter ouvido falar do seu espírito mutante, imaginativo, versátil, a rara capacidade de adaptar criativamente diversos modelos musicais e poéticos; o seu jeito de menino-prodígio e a sua memória notável. O que mais admirava nele eram as canções que focam em zoom aproximado a intimidade de cada um de nós, traduzindo a nossa vontade de amor e alguma sede de protesto, sugerindo o tom e o coração de essenciais movimentos ocultos que brotam de um lugar mágico que existe dentro de todos nós. 

 

Os maconheiros de Copacabana descobriram a a casa de DuArte e volta e meia lá estavam, “Português, tenho aqui um da manga rosa”, bradava Betão, punk de crista pintada de vermelho, um bando de fãs atrás incluindo os irmãos mais novos, a mãe, a tia e por vezes a avó, todos a abanar a cabeça quando o Betão berrava nos palcos da Tijuca e de Jacarepaguá: “Sexo, sexo, sexo, sexo anal, sexo vaginal, sexo animal”. O avô era irlandês, culto, magríssimo, cabelo cor de cenoura e sardas no rosto, sempre na mesma poltrona da sala de estar, com um livro na mão ou pousado na manta do apaziguado regaço.

 

Como a Casa do Estudante do Rio de Janeiro, para as bandas do Castelo, estava lotada, o diretor mandou levar colchonetes e lençóis para o palácio casarão onde vivia, que distribuíram pelos três andares, sótão e doze quartos, para receberem duas dezenas de finalistas do curso de Educação Física da Universidade de Ribeirão Preto. 

 

No posto 6 da praia de Copacabana, em fila larga, Cláudia Paixão, à frente, de costas para o mar, pediu, doce e delicadamente, para relaxarem, inspirarem o bem pelo nariz, expirarem pela boca, crescentemente intenso, até o corpo amolecer, entregue à meditação. “Foquem-se num ponto preto, uma bolinha que está no meio de vosso coração; façam um túnel, em espiral, até chegarem com a vossa mão até ela; peguem-na; agarrem-na bem com a ponta dos dedos; devagarzinho tragam-na à superfície da pele para depois a expelirem com toda a força para fora de vocês libertando-vos do mal que têm dentro”. 

 

Imaginou que colocava a ponta dos dedos dentro do coração, pegava a bola, preta, do tamanho de uma semente, retirando-a com suavidade até projetá-la para fora de si, para o mar, caindo de seguida nas areias brancas de Copacabana, despertando os colegas do momento em que se encontravam com eles mesmos. Não tinha conseguido resistir ao que sentiu, lançou um grito, meio uivo, um lobo transformado em cordeirinho ao perceber que tinha “cortado o barato do pessoal”. Por simpatia ninguém reclamou. 

 

Voltaram para casa e, como sempre fazia naqueles dias assim que chegava à sala, o simpático Fábio Abreu colocou de imediato uma fita cassete do Barão Vermelho. “O Barão contribuiu para despertar em mim um prazer boémio comum aos que desfrutam da vida ao máximo, um assumir de uma posição ativa face à passagem pela Terra. Foi, muito incentivado por eles, que aprendi que o prazer, mesmo tendo risco de vida, é para ser vivido com entrega plena e que o amor é para ser eterno enquanto dura. Eles possuem uma dinamite poética exprimida sem pudor em tocar feridas, verbalizando o transe de forma anárquica, criando turbilhões nas mentes mais apaziguadas, chicoteando-nos de forma urgente, guerreiros das palavras, veementes na atitude e na pujança”, contava Fábio, empolgado. “Zé Geraldo exagerado”, comentou alguém entre uma risada coletiva, os olhos a brilhar enquanto no toca fitas a cassete chegava a “Mais uma dose? É claro que tô a fim/ A noite nunca tem fim/ Por que é que a gente é assim?”, que cantaram em uníssono. “Bem melhor do que o som lá da nossa região onde é todo o dia música caipira, acompanhada por viola, violão e sanfona, cantada em duplas de primeiras e segundas vozes, e que tem por temática o boi e a natureza”, explicou uma moça de olhos verdes e rosto oval de nome Rosana. 

 

Ficaram amigos, trocaram endereços e números de telefone fixo, deixaram saudades e as colchonetes espalhadas pela casa. 

 

“Porque não fazer deste espaço uma espécie de albergue da juventude?” projetou. Dias depois levava do aeroporto um grupo de médicos belgas e um australiano de Melbourne, Mordy Bromberg, chegados para o Carnaval de 1987. 

 

Foram juntos ao sambódromo assistir ao desfile das escolas de samba mas não acharam piada terem que ficar quase estáticos e em pé num demasiado exíguo meio metro quadrado de espaço. “Wait for me, Mordy. I will be back”. Desceu da bancada, subornou um vendedor de refrigerantes, entrou para o meio da parada como fotógrafo, embasbacou-se com tanto peito, pernão, paetês, lantejoulas e plumas, a mulher do morro sentindo-se rainha. Do alto de um dos carros alegóricos, uma morena, corpo nu coberto com arabescos e coloridas espirais, cantava: “Eu queria que o Brasil inteiro fosse a vibração do samba A alegria de estar viva e poder cantar a minha felicidade Podíamos fazer uma revolução de alegria para mostrar ao mundo a nossa folia Nós vivemos num país que não tem nada de dificuldade, é sol, sol todo o dia É água, é natureza, nós temos tudo para viver em beleza”. E lá ia cantando, pé de samba, feliz, enquanto o público aplaudia. 

 

No dia seguinte, percorreram as ruas de Copacabana com os mascarados e foram, à noite, ao famoso baile do Clube Fluminense. Entraram e ficaram atónitos. Em cima de uma mesa, entre garrafas e copos, uma mulata dançava e masturbava-se. No anfiteatro, um casal fazia sexo em público perante a indiferença da plateia que dançava “Lança perfume” da Rita Lee. 

 

Duas horas depois, saíram da festa que ainda fervilhava. No parque de estacionamento, umas gringas americanas que tinham conhecido na Praia de Ipanema pareciam estar em apuros com uns burgueses da Barra. Decidiram ir a pé até Copacabana. 

 

À saída do Leblon, viram um autocarro passar um sinal vermelho, abalroar um automóvel que passava no cruzamento, as pessoas no transporte público a gritarem, o condutor a acelerar até desaparecer. Correram para o carro que ficara prostrado no meio da estrada, o condutor desmaiado, o sangue a escorrer-lhe da cabeça tombada sobre o volante. Mordy tirou-o para fora do veículo para lhe prestar os primeiros socorros, mas pouco pôde fazer. A ambulância chegaria passados uns eternos vinte minutos e só então, ainda estupefatos por o condutor do autocarro ter passado o sinal vermelho sem parar nem mesmo depois de ter batido, continuaram a caminhada até ao palácio casarão, o Mordy com a camisa de flores lilases ensanguentada. Ao chegarem a Copacabana, viram um carro acabado de ser assaltado, vidro partido, o alarme a soar os últimos suspiros por a bateria estar a definhar. O português e o australiano davam-se invulgarmente bem, atraindo ambos o insólito e o pasmante.

 

 

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 

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