TODOS OS CAMPOS DE GIRASSÓIS A ARDER NO CORAÇÃO
Quando me vestiram de Charlot
Eu não sabia quem era Charlot.
Tinha um chapéu e um colete negro
uma gravata negra sobre uma camisa branca
um olhar que não saberia descrever.
É difícil dizer com palavras um olhar.
A paz de um olhar humano é um incêndio
e a natureza de um incêndio é fazer nascer.
(Eu tinha umas pantufas vermelhas)
E uma camisola de lã grossa
E a minha avó –
foi certamente a minha avó –
vestiu-me de Charlot
num dia de Carnaval
O vento sopra quente
e o trigo estremece –
O coração é um campo em chamas.
É TEMPO DE AMAR
Os homens afirmam a vida quando tudo fundamenta o desespero
Sérgio Vieira
Irmão Moamba! Irmão Fernando! Irmão Sérgio Vieira!
É tempo de amar meu irmão! Irmão Bandeira! É tempo de amar! Não é tempo de ouriçar ainda Maria! Não é tempo de morrer ainda José! É tempo de criar um mundo novo porque só esse há, mais justo é o tempo da libertação Irmão João! irmã Francisca! É tempo de amar! É tempo de amar com força! É tempo de amar irmão Mateus! Que toda a luz do universo ilumine o teu caminho irmão Luiz! Irmão António no céu de todas as pontes e tudo ser tudo ao mesmo tempo é tempo de amar! É tempo de estrelar irmão Simão! Meu irmão Sol e minhas filhas e minhas irmãs e todas as revoluções que te correm no sangue e todas as línguas a serem criadas e os poemas que nelas serão escritos é tempo de libertar irmão Agostinho, irmão Manuel alguém escreveu num muro da tua luz: “juramos defender a liberdade” E somos crianças filhos do sol e de espanto e ainda nos falta nascer e mesmo ontem alguém disse no início de um poema :“Eu sou o chão ouves-me?”, e todos a ouviram porque todos somos o chão meu irmão, e todos somos o carvão meu irmão, irmão faustino meu irmão Craveirinha, feitos de chão embondeiro-planeta-enchente, liberdade, e eu ardo por todos os lados e deus é uma barrigada de riso meu irmão Henry, e temos de rir com mais força se nos queremos aproximar o que quer que seja dele irmão Espinoza, Jesus, Platão, Sunny, irmãs de todas as cores, como me encho de comoção disto não ter fim. é tempo de amar meu irmão! É tempo de amar! É tempo de amar. É tempo de amar dentro de nós.
Relâmpago
Desejo que sejas feliz como o coração da libélula azul quando pousa devagar no rio e o coração do sol lhe atravessa a asa de vida – vida que rebenta, quente, una e enchente em todas as direções: Assim quero que os teus dias sejam de uma felicidade inteira, livre e sincera. Felicidade de ponta a ponta, felicidade-onda e felicidade-estrela, felicidade espuma que vem com a alegria de haverem dias tristes também, felicidade-moinho que roda sem precisar de vento nem de rio, nem de chuva, nem de sol. Felicidade inteira de um cão malhado que dorme em frente a um café de aldeia com alegria humana lá dentro e de uma criança quando ouve os adultos rirem na sala, a barriga-almofada de um cão que sobe e baixa com a respiração enchendo de paz e segurança uma cozinha inteira antes da hora de jantar, o coração da avó e a barriga-tambor mãe que se confunde com barriga-tambor-estrela e o milagre ciranda de tudo se misturar. Porque a vida gosta de unir desejo que sejas feliz como uma montanha coroada de ninhos e um cão a abanar a cauda em frente a uma porta aberta, uma menina com um balão muito vermelho cheio, preso ao seu pulso muito pequenino, ou alguém que vai ao jardim zoológico ver os humanos só para ser mais inteiro e verdadeiro amo a vida com o coração do sol que entrelaça os ninhos e com os dentes e o meu sangue feito de histórias e futuro amo a vida que é inteira e não tem fim. Amo a vida à escala humana – À escala maior – amo a vida e sou um animal feliz no centro de uma migração – um animal que não sabe já onde começa ou onde acaba e por isso não começa ou acaba nunca –
Um animal fez entre outros.
RITMO E FOGO
Também o sol, meu irmão
gosta de desenhar com as sombras que o completam
e chega ao fundo dos poços, ainda inteiro.
Assim também o meu coração gosta de unir
e é um farol com febre
ou um pomar que brilha ao sol.
Cheio de espanto e espuma
Amo a vida que te acende os olhos
Do coração puro e inteiro das estrelas.
Obrigado meu deus
pela festa da unidade
que enche o meu coração.
Por o amor vencer o escuro.
Por o amor vencer o medo.
Por o amor vencer o ódio.
Obrigado meu deus…
BRAÇOS, MOINHOS, O SOL
Os meus primeiros poemas falavam muito sobre braços. A palavra braços não quer dizer sempre a mesma coisa. Quando apareceu a primeira vez queria dizer vida, digo, a vida toda, completa, verdadeira, sem nada que lhe seja oculto. Os braços servem para abraçar, mas podemos abraçar sem braços. Podemos abraçar com os olhos. Os relâmpagos abraçam-se como as sementes se abraçam, como a noite e o dia se abraçam como a vida e a morte se abraçam.
Mas a palavra braços continuou a aparecer e cada vez dizia uma coisa diferente, como a palavra moinho, a água que passava por baixo dela era já outra como outro tu e eu. A palavra braços, a palavra moinho e a palavra sol querem sempre dizer uma coisa nova a cada nomeação, porque o ar que respiras é já outro e passou por tanta gente e passou por tanta vida e o mundo todo rodou desde a última nomeação; é possível que desde a última vez que tenhas usado a palavra moinho, ou a palavra braços ou a palavra sol, o mundo se tenha transformado numa estrela, é possível ainda assim que todos os caminhos sejam novos e sejam um só e que todo o amor está a começar agora como uma oração que só aceita o presente. Porque o amor todo está a começar agora como um sumo de cerejas que envelhece ao lado de uma janela o amor todo está a começar agora e há uma felicidade nuclear nisso, como o leite, a noite, as portas, a morte, a esperança, o amor não tem fim e talvez seja apenas isso que a palavra moinho e a palavra braços e a palavra sol querem dizer como todas as palavras e todas as danças e todas as febres e todas as mãos, as palavras não deixam nunca de girar, todo o caminho e toda a luz e toda a vida, e a luz que nos trazem é sempre nova como nova deve ser toda a vida a cada segundo que passa, porque nasceste para viver com toda a luz e com toda a vida e com todo o amor que nasce no centro do sol –
Nada será como antes.
Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É Professor Visitante no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York e autor dos livros: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022).