

Spoiler
Um dia vou beijar a sua boca
e você vai pedir que não me afaste
eu lhe asseguro: haverá manhãs de sol
como frias e escuras algumas tardes.
Você há de sorrir em certas horas
e há de chorar também, tudo faz parte
da história que escrevemos todo dia
e que se vai sem pena e sem alarde
Haverá momentos de euforia
que surgirão sem dar qualquer sinal.
É como quando o filme anuncia
que a gente sempre morre no final.
Proximidade do encanto
Há tempos percebo que
se afogam os anos que me restam
a nadar sem rumo na correnteza
como aquela flor levada na enxurrada
em seu caminho líquido de incerteza
Chego a ver, no horizonte riscado ao longe,
a noite e sua foz assustadora
a pulsar no mistério grandioso
e tragar todas as flores, sem remorso,
e todas as enxurradas.
Por isso danço, giro, salto
canto todas as canções
que azeitam o rútilo eixo do sol
que me cerca e queima a pele
que insiste em enrugar-se.
Ainda é cedo, mesmo que tarde.
Áspero périplo
Há corações densos, opacos,
que escondem segredos e dores
e mesmo amores em sua escuridão
São como enormes salões gelados
Em cujas paredes há mofo, limo
E lodo pelo chão.
Cercados com cortinas escuras, pesadas
que lhes vedam toda luz.
Ali, nas sombras, impera o silêncio
e o amargor de horas infindáveis
e noites sem luares
costuradas pelo canto de corujas
sobre o pântano que lhes atravessa
a pulsação ritmada e tediosa.
Outros se deixam levar
pela maré do fluxo quente
que lhes rasga os orifícios
atravessa câmaras
em desespero e soluço
como lava numa imensa foz
que tudo arrasta
para oceanos insuspeitados.
São corações de faca e fogo
que batem como rútilos martelos
em bigornas incandescentes
e explodem em faíscas
que nos cegam
em paixões que cintilam
e que se inflamam
queimando tudo.
Mas há aqueles corações
translúcidos, onde o desejo
é claro e o sorriso largo
e que deixam vazar toda claridade
e leveza como se fossem
um enorme corredor de cobogós
na parede da alma.
Eles nos abraçam, nos derrotam
na delícia da maior das batalhas
a de se entregar ao vitorioso
desse áspero périplo que é viver
sem receio, sem ponto cego
sem sombra e sem temor
em pura mansidão.
Perdigotos
Para muita gente
Quando te vejo
arrotando importância
espumando pelo canto dos lábios
lembro
que todo mausoléu
protege um gigante morto
engole um insigne defunto
abriga os restos de alguma sumidade
penso então que
todo encômio monumental
é uma certidão de óbito
um necrológio de granito e concreto
registro do que deixou de ser
gigante, insigne, sumidade
e que agora é nada
mera espuma na areia da praia
nem importância, nem arroto.
Medusa
Para Marielle Franco
Que medo é esse
que o falo tem de não falar?
O que lhe falta
além do fato de que a falha
reside em acreditar
que a existência de sua fala
pressupõe fazer calar?
O falo existe
ao fazer silenciar?
Que teme o falo
a fêmea fala que conquista
sem pedir licença ou benção
o que é seu, sempre foi seu,
o seu lugar?
Cortar a cabeça
para cortar a língua?
Essa a medida
do falo para, à míngua
deixar a fala que o amedronta
em seus fantasmas mais terríveis
e que ele crê vir lhe castrar?
Não vê o falo
que há incompletude em seu falar?
E que o que ele busca é a fala fêmea
ombreando-lhe na estrada
pela longa caminhada
completando o que lhe falta
a plenitude ao falar.


Fotografia de Leonardo Almeida Filho
Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/Paraíba, Brasil, 1960), professor, escritor, músico. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), O livro de Loraine (Edição do Autor, romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia, contos, 2014 e nova edição impressa em 2021), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Editora Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), Tutano (poesia, Editora Patuá, 2020), Os possessos (romance finalista do Prêmio Candango de Literatura, Editora Patuá, 2021), Berro (contos, Editora Patuá, 2022) além de contos, crônicas e poemas em coletâneas, revistas e jornais.
Como músico (violonista e compositor) participou de diversos festivais e gravou o CD Papo de Boteco, uma produção independente, em 2017, disponível no Spotify e na sua página no Youtube.
Blog de poesia: www.poesianosdentes.blogspot.com.br
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