Cultura

Poemas inéditos | Leonardo Almeida Filho

Spoiler 

Um dia vou beijar a sua boca

e você vai pedir que não me afaste

eu lhe asseguro: haverá manhãs de sol

como frias e escuras algumas tardes. 

Você há de sorrir em certas horas

e há de chorar também, tudo faz parte

da história que escrevemos todo dia

e que se vai sem pena e sem alarde 

Haverá momentos de euforia

que surgirão sem dar qualquer sinal.

É como quando o filme anuncia

que a gente sempre morre no final.

 

 

Proximidade do encanto

 

Há tempos percebo que

se afogam os anos que me restam

a nadar sem rumo na correnteza

como aquela flor levada na enxurrada

em seu caminho líquido de incerteza

 

Chego a ver, no horizonte riscado ao longe,

a noite e sua foz assustadora 

a pulsar no mistério grandioso

e tragar todas as flores, sem remorso,

e todas as enxurradas.

 

Por isso danço, giro, salto

canto todas as canções

que azeitam o rútilo eixo do sol

que me cerca e queima a pele

que insiste em enrugar-se.

 

Ainda é cedo, mesmo que tarde.

 

 

Áspero périplo 

 

Há corações densos, opacos,

que escondem segredos e dores

e mesmo amores em sua escuridão

São como enormes salões gelados

Em cujas paredes há mofo, limo

E lodo pelo chão.

Cercados com cortinas escuras, pesadas

que lhes vedam toda luz.

Ali, nas sombras, impera o silêncio

e o amargor de horas infindáveis

e noites sem luares

costuradas pelo canto de corujas

sobre o pântano que lhes atravessa

a pulsação ritmada e tediosa.

 

Outros se deixam levar

pela maré do fluxo quente

que lhes rasga os orifícios

atravessa câmaras

em desespero e soluço

como lava numa imensa foz 

que tudo arrasta

para oceanos insuspeitados.

São corações de faca e fogo

que batem como rútilos martelos

em bigornas incandescentes

e explodem em faíscas

que nos cegam

em paixões que cintilam

e que se inflamam

queimando tudo.

 

Mas há aqueles corações

translúcidos, onde o desejo

é claro e o sorriso largo

e que deixam vazar toda claridade

e leveza como se fossem

um enorme corredor de cobogós

na parede da alma.

Eles nos abraçam, nos derrotam

na delícia da maior das batalhas

a de se entregar ao vitorioso

desse áspero périplo que é viver

sem receio, sem ponto cego

sem sombra e sem temor

em pura mansidão.

 

 

Perdigotos

 

                 Para muita gente

 

Quando te vejo

arrotando importância 

espumando pelo canto dos lábios

lembro

que todo mausoléu 

protege um gigante morto

engole um insigne defunto

abriga os restos de alguma sumidade

penso então que

todo encômio monumental

é uma certidão de óbito

um necrológio de granito e concreto

registro do que deixou de ser

gigante, insigne, sumidade

e que agora é nada

mera espuma na areia da praia

nem importância, nem arroto.

 

 

Medusa

                Para Marielle Franco

 

Que medo é esse

que o falo tem de não falar?

 

O que lhe falta

além do fato de que a falha

reside em acreditar

que a existência de sua fala

pressupõe fazer calar?

 

O falo existe 

ao fazer silenciar?

 

Que teme o falo

a fêmea fala que conquista

sem pedir licença ou benção

o que é seu, sempre foi seu,

o seu lugar?

 

Cortar a cabeça

para cortar a língua?

 

Essa a medida 

do falo para, à míngua

deixar a fala que o amedronta

em seus fantasmas mais terríveis

e que ele crê vir lhe castrar?

 

Não vê o falo

que há incompletude em seu falar?

 

E que o que ele busca é a fala fêmea

ombreando-lhe na estrada

pela longa caminhada

completando o que lhe falta

a plenitude ao falar.

 

Fotografia de Leonardo Almeida Filho

 

Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/Paraíba, Brasil, 1960), professor, escritor, músico. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), O livro de Loraine (Edição do Autor, romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia, contos, 2014 e nova edição impressa em 2021), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Editora Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), Tutano (poesia, Editora Patuá, 2020), Os possessos (romance finalista do Prêmio Candango de Literatura, Editora Patuá, 2021), Berro (contos, Editora Patuá, 2022) além de contos, crônicas e poemas em coletâneas, revistas e jornais. 

Como músico (violonista e compositor) participou de diversos festivais e gravou o CD Papo de Boteco, uma produção independente, em 2017, disponível no Spotify e na sua página no Youtube.

Blog de poesia: www.poesianosdentes.blogspot.com.br

Instagram: @leonardoalmeidafilho

Facebook: Leonardo Almeida Filho

e-mail: leo.almeidafilho@gmail.com





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