Cultura

A descoberta | Alexandre Brandão

Naquele dia, a criança, criança assim bem criança, mas não muito, descobriu uma coisa. Tudo foi acontecendo, acontecendo e, de repente, aconteceu; e, quando aconteceu, a criança não soube dizer o que era. 

 

Às quatro horas da tarde, ela estava no quintal, embaixo do abacateiro, embaixo e encostada nele. O vento soprava tudo e levantava as folhas do chão. Era gostoso tomar o vento. Um passarinho miúdo, que a criança não conseguia ver, mas sabia bem que estava no tronco da mangueira logo em frente ao abacateiro, piava como a gente da casa cantava no banheiro, na hora do banho, ou seja, sem compromisso, pouco se importando com o resto do mundo. O passarinho cantava melhor que o pai, a mãe e a irmã da criança.

 

Ela gostava tanto do quintal, que não havia dia que não fosse brincar nele. Com amigos ou sozinha, não se importava. Então vento, passarinho, abacateiro, mangueira formavam o seu mundinho. Se perguntassem a ela o que era o mundo, ela corria a responder: o quintal. O quintal. 

 

Encostada no abacateiro, começou a sentir, a sentir. O que é isso? Ela quase gritou, e só não gritou porque teve medo de alguém sair da casa para ir ver o que estava acontecendo e não encontrando nada diferente se assustasse. O que foi, nossa criança? Você viu alguma coisa? 

 

Ela não viu nada, o que acontecia não era de ver. Era uma assombração que não metia medo, que simplesmente existia. Onde? Nela, na criança. O acontecimento acontecia nela. Isso, fosse o que fosse, media um tamanho acima do grande, fazendo a criança pensar que deveria ter medo. Tenho de ter medo, mas ela não tinha, não se convencia a ter.

 

A assombração, ou a coisa, ou o nada, começou a interferir na respiração da criança. Primeiro, a fez respirar rápido e forte. Aos poucos, a respiração voltou ao normal e, em seguida, ficou lenta. Faltava ar, apesar do vento, que se exibia levantando as folhas, espalhando poeira. Apesar do passarinho, que, sem ar, não cantaria, e estava cantando. A criança não pensou na morte, pois ainda não lhe passava na cabeça a ideia ou o medo da morte. Ela apenas sentia. Voltou a respirar bem, mas, em instante, a respiração acelerou, o peito encheu e murchou velozmente, e, de novo, voltou ao normal. A respiração parecia ter sido desligada. Não desligada, mas era como se a criança ouvisse música e de uma hora para outra o som fosse diminuindo, diminuindo. Sim, como se o som diminuísse sem que ninguém mexesse em sua regulagem. 

 

Resolveu andar. Não muito. Sair do abacateiro, ir para debaixo da mangueira. Olhar para cima, flagrar o passarinho, dar-lhe um susto, um sustinho. Na realidade, dividir o seu susto com ele. A criança amaldiçoava estar sozinha. Se gritasse pelo Zezinho? Pela Mel? Se assobiasse para o cachorro e o chamasse: Vem, Xampu! Se sentia impedida. Se estar sozinha não lhe agradava, estava certa de que não poderia estar de outro jeito. A caminhada restabeleceu a respiração.

 

Ficou indo do abacateiro à mangueira e da mangueira ao abacateiro. Uma hora um cisco entrou em um de seus olhos, e a criança fechou aquele olhinho. Fechado, ela pensou, o cisco se ajeita lá dentro e some. Mas não foi assim, e ela então coçou o olho fechado com o indicador dobrado. O cisco incomodou mais ainda, mas, em seguida, uma água — de fato, uma lágrima, mas a criança não a reconheceu, pois não estava chorando — molhou o olho por dentro, e a criança conseguiu abri-lo e, por ele, viu o seu mundinho um pouco umedecido. Esqueceu por um momento o que vinha passando. O cisco distraiu sua atenção, e ela agradeceu por isso. Mas não demorou muito a sentir tudo outra vez. A assombração crescendo dentro dela. A respiração saltando de uma cadência para outra. O passarinho estava diferente, quieto, quem sabe houvesse voado. O vento também se aquietara. A criança então sentou-se no chão de terra. Dobrou os joelhos, envolveu-os com os braços. Como estava sentada entre o abacateiro e a mangueira, ao olhar adiante, com o queixo apoiado nos joelhos, viu, à esquerda, a laranjeira que jamais deu laranja, à direita, um balde enferrujado e, no final do quintal, o muro. 

 

Lá da cozinha, chamaram por ela. Hora do leite com pão. A criança gostava tanto do lanche da tarde. Já ia correndo para dentro de casa, quase esquecida do que lhe aconteceu ou acontecia, mas resolveu olhar mais uma vez com atenção a laranjeira sem laranja, o balde enferrujado, o muro. O muro.

 

A partir daquele dia, e enquanto durou a infância, a criança passou uma, duas, três, muitas vezes por uma situação semelhante — inexplicável. Na juventude, reconhecia aquilo e sabia lidar com o que associou à esterilidade, à decomposição e ao muro, o impedimento.

 

Fotografia de Alexandre Brandão

Autor de sete livros de prosa e dois de poesia, o brasileiro Alexandre Brandão tem no prelo seu próximo livro — duas novelas sob o título “Aí onde não cabe” —, a sair pela Editora Patuá, em parceria com o artista plástico Ricardo Tamm. “A descoberta”, no entanto, é de um livro ainda inédito e sem plano de publicação. Alexandre é cronista na revista Rubem (rubem.wordpress.com) e mantém o blog No Osso (noosso.blogspot.com).

 

Qual é a sua reação?

Gostei
8
Adorei
12
Sem certezas
2

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura