Cento e sessenta as aldeias incendiadas,
Mil casas arruinadas pela chama devoradora,
Assolados os campos, com suas riquezas;
Passado tudo ao fio da espada
José de Anchieta,
De Gestis Mendi de Saa
Pode ligar o seu gravadorzinho, moça. Você não é a primeira jornalista que vem conversar comigo sobre a história de nossa cidade. Parece que Ibirapema quer dizer “tacape”, em tupi ou guarani, sei lá, mas Ibirapema nasceu de uma parada de tropeiros. Nem era mais terra de índio. No entanto, descobriram uma igaçaba nas terras do finado Tião Taborda, em 1973. Igaçaba, você sabe, é aquela urna de barro que os índios usavam pra enterrar algum manda-chuva deles. A nossa era a maior igaçaba já descoberta no Brasil, o que botou Ibirapema em todos os jornais do país. Isso foi no governo militar. Eu tinha 20 anos, estava no meu primeiro mandato de vereador, e papai era prefeito.
O governador Pedro Evaristo fez uma boa oferta pela peça, mas Ibirapema não quis abrir mão do privilégio de possuir a maior igaçaba do Brasil. Papai mandou colocar o trambolho no saguão do paço municipal, numa urna de vidro, onde ficou por mais de trinta anos.
Pois essa bendita igaçaba foi o chamariz de uma invasão de índios em nossa região. Uma romaria de bugres começou a bater por aqui, e foram se malocando à beira da lagoinha, no campo onde acharam a igaçaba. Um historiador de nossa cidade, o Ataíde Avelar, visitou o rancho da tribo e conversou com o pajé deles, um velho chamado Jareté. Eram uns guaranis de Mato Grosso, tinham vindo ocupar a terra de seus antepassados, que chamavam de tekohã. Diz que o velho Jareté tinha sonhado com esse retorno. Para eles, a tal tekohã ficava bem ali, na fazenda do Tião Taborda. Alegavam que tinha sido um cemitério deles. Verdade que, de vez em quando, os lavradores achavam umas ossadas no campo, mas tudo osso antigo, do tempo da colônia. Segundo o Ataíde, essa bugrada sempre viveu batendo perna atrás de uma tal de “terra sem mal”, onde a caça corre na direção do caçador, e a enxada vai sozinha trabalhar na roça. Olha o tamanho da preguiça dessa gente. E tome mais índio chegando e se arranchando por lá.
Claro que o Tião Taborda não gostou nada de ver aquela bugrada fazendo auê em sua terra. Ele era chamado de Tião Trabuco pelo povo daqui, mas você sabe como é — essa gente não respeita ninguém. Daí que a tribo levantou umas cabanas, plantou uma roça de mandioca, outra de milho, e começou a vender uns badulaques na beira da estrada.
Tá vendo aquela lança na parede? Pertenceu ao próprio pajé Jareté. Ganhei de presente do Tião Taborda, há mais de quarenta anos. Ele era meu tio postiço, foi casado em segundas núpcias com tia Veridiana, irmã de mamãe.
Sei lhe dizer que essa invasão de bugre tirou o sossego da cidade. A molecada da escola fugia pro campo toda tarde, pra ver índio pescando, fazendo rede, tocando chocalho, dançando e coçando o saco, me desculpe o palavreado.
Naquela altura, o Tião Taborda já tinha recorrido à justiça, reclamando o despejo dos invasores. Papai também pediu auxílio à secretaria estadual de Segurança, falou com um coronel do exército, que ficou de mandar um sertanista aqui pra se entender com a tribo, mas isso nunca aconteceu, não que eu me lembre. E a infestação de índio aumentava sempre, já tinha pra mais de cem bugres na maloca do Jareté. Foi aí que o Tião Trabuco, descrente da justiça, resolveu tomar uma providência.
Desligue o gravador agora. Desligou?
Bom, correu um boato de que o Tião fez uma aliança com outros fazendeiros, e que mandou buscar uma jagunçada lá em Goiás. Então, certa noite, uma tropa armada até os dentes cercou a aldeia do Jareté e passou fogo em todo mundo. Não ficou um cachorro vivo. Diz que os corpos foram recolhidos por caminhões e enterrados em vala comum, em várias fazendas. Mas não há nenhuma prova de que isso tenha ocorrido. Aliás, nem a romaria deles pra cá saiu nos jornais da capital, menos ainda um suposto massacre, porque decerto já havia censura à imprensa.
O que se sabe é que um incêndio destruiu a maloca do Jareté, da noite pro dia. Se algum índio escapou com vida, correu de volta pra Mato Grosso. É incrível como, em pleno século 21, o Brasil continua tendo problema com índio. Já pode ligar seu gravador.
Entenda que remexer nisso não leva a nada, moça. Você precisa fazer um trabalho positivo, falar sobre a modernização da nossa agricultura, a safra recorde, o crescimento da nossa economia. Converse com meu primo Jaiminho Taborda, neto do Tião. É um dos maiores produtores rurais deste país, está toda hora na capa das revistas de agronegócio. Como dizem, “agro é pop”. A gente tem que louvar quem merece, moça. Porque nossa cidade tem sido alvo de um noticiário muito maldoso.
Certa imprensa esquerdista insinua que o excesso no uso de defensivos tem relação direta com o índice de câncer em nossa região. Chegam a dizer que as mães estão amamentando seus filhos com veneno, porque o próprio leite materno estaria contaminado por agrotóxicos. Eu acho que esse tipo de intriga só compromete a credibilidade dos nossos produtos no exterior.
Mas deixa contar como foi que o Tião Taborda morreu. Ele vinha voltando pra fazenda, dirigindo a caminhonete, acompanhado pelo filho mais velho, Dioguito. Era um fim de tarde, com o tempo fechando, ameaçando temporal. Quando atravessavam o campo onde acharam a igaçaba, um pneu dianteiro da caminhonete se soltou, e disparou pelo descampado coberto de palha seca, porque já tinham feito a colheita da cana.
Tião mandou o filho correr atrás do pneu e já foi pegar o macaco e a chave de roda pra recolocarem o maldito pneu no lugar. Aí um raio estalou no chão, e Dioguito só teve tempo de ver seu pai ser torrado pela descarga. Isso acontece bastante por aqui. Cai muito raio. Claro que essa gente ignorante viu nisso um “castigo de Deus”, por causa do tal massacre que teria acontecido ali. Mas se teve algum culpado nesse caso, foi o porra do mecânico, que não parafusou direito a merda daquele pneu, desculpe o palavreado.
Eu mesmo também fui atingido por um raio, há mais de dez anos, quando cavalgava no campo. O cavalo morreu, e acabei aqui, nesta cadeira de rodas. Mas agradeço a Deus por ter sobrevivido. Ah, mas estava demorando pra você me perguntar que fim levou a tal igaçaba. Está num museu de Buenos Aires, hoje em dia. Foi comprada por um milionário argentino que andou arrematando umas pinturas aqui no Brasil.
O hermano ficou sabendo da igaçaba, ofereceu mucha plata, e meu primo Zé Mauro, que era prefeito na ocasião, não é homem de perder um bom negócio.
Quer ver que logo mais alguém descobre outra igaçaba enterrada por aí? Até maior do que a primeira? Nesse chão de Ibirapema, o que não falta é riqueza, meu bem.
Estou vendo que você gostou da lança do pajé. Tem ponta de ferro. Cuidado, é uma peça de estimação. Não, menina, não tire a lança do encaixe, isso é coisa antiga, frágil.
Olha só, você leva jeito: sabe mesmo como empunhar uma lança. Com esse cabelo liso, esse olho puxado, até parece uma bugrinha de verdade. O que é isso, mulher? Não brinque assim, você me assusta. Não aponte essa lança pra mim, isso aí é uma arma mortal! Largue isso, sua louca!
Poeta,escritor, tradutor e letrista, Luiz Roberto Guedes escreve para pequenos e grandes. É autor da novela histórica “O mamaluco voador” e dos contos de “Miss Tattoo” e “Como ser ninguém na cidade grande”. Seus infanto juvenis “Treze Noites de Terror” e “O Livro das Mákinas Malukas” foram adotados pelo Ministério da Educação para o PNBE — Plano Nacional Biblioteca na Escola.