Cultura

Cultivar um outro tipo de fé, as letras e a razão | José Manuel Simões

No Brasil de meados do século XVII, chefes indígenas eram maltratados, o destacado líder Pedro Poty, filho de Colibri e neto de Sinã e de Itapiã, antes de ser assassinado foi preso e torturado. Inimigo dos portugueses, aliou-se aos holandeses, tornou-se protestante. Embora recebesse insistentes pedidos para mudar de aliado, recusava-os veementemente, deixando destilar o rancor que tinha aos portugueses. Em carta escrita no seu acampamento no dia 31 de outubro de 1645, assinada por si mesmo, “Regedor e Commandante do Regime de Índios na Parahyba”, e em resposta ao seu primo Filipe Camarão, revela-se indignado: 

 

“Eu me envergonho da nossa família e nação ao me ver induzido por tantas cartas vossas à traição e deslealdade, isto é, a abandonar os meus legítimos chefes, de quem tenho recebido tantos benefícios. É tolice o imaginardes que nos illudis tão facilmente com essas palavras vãs, e até fico pensando que, não ousando nos vir visitar como soldados, procurais usar essas falsas imposturas. Ficai sabendo que serei um soldado fiel aos meus chefes até morrer. Estou bem aqui e nada me falta; vivemos mais livremente do que qualquer de vós, que vos mantendes sob uma nação que nunca tratou de outra cousa senão nos escravizar. Os cuidados que dizeis ter por mim e o favor que os Portuguezes nos dispensariam não são mais que histórias contadas para nos illudir.
Por minha parte só tenho um sentimento, e provem de não me virdes visitar aqui. Não acrediteis que sejamos cegos e que não possamos reconhecer as vantagens, que gosamos com os Hollandezes (entre os quaes fui educado). Jamais se ouvio dizer que tenham escravizado algum indio ou mantido como tal, ou que hajam em qualquer tempo assassinado ou maltratado algum dos nossos. Elles nos chamam e vivem comnosco como irmãos; portanto, com elles queremos viver e morrer.” 

 

Pousou a pena e, arreliado, amarrotou a folha com incontido escárnio. Andava perturbado por ver a sua tribo deixar-se subjugar por um povo, o português, que considerava cruel e traidor. 

 

Sabia que podia contar com os seus irmãos holandeses, os quais admirava, podendo com eles desenvolver conhecimentos e exercitar as suas capacidades, aprendendo a cultivar um outro tipo de fé, as letras e a razão.

 

Pedro Poty, inquietado, indignava-se com a forma como os seus parentes se deixavam submeter aos desígnios de uma nação, a portuguesa, que definia como sendo “poderosa e ruim”. Considerava de alma e coração que os holandeses eram um povo superior e a eles fazia sentir toda a sua gratidão e lealdade, mostrando-se incrédulo por as suas gentes, ou pelo menos parte delas, se terem aliado a “gentalha” pela qual sentia desprezo. Pegou noutra folha, recomeçando a carta ao seu primo, sempre na mesma linha de maldizer, debitando o seu rol de ódios e apelos:

 

“Em todo o paiz se encontram os nossos escravisados pelos perversos Portuguezes, e muitos ainda o estariam, se não os houvesse libertado. Os ultrajes que nos têm feito mais do que aos negros e a carnificina dos da nossa raça, executada porellles na bahia da Traição, ainda estão bem frescos na nossa memória. E o que pode dar melhor a conhecer os seus designios tyrannicos do que a crueldade commettida recentemente contra os nossos em Serinhausem depois de concedido o quartel? Aquelle sangue clamará a Deus por vingança, já tendo, todavia, o meu irmão Antônio tirado uma boa desforra no Rio Grande. Não, Filippe, vós vos deixais illudir; é evidente que o plano dos scelerados portuguezes não é outro senão o de se apossarem deste paiz, e então assassinarem ou escravizarem tanto a voz como a nós todos. Vinde, pois, enquanto é tempo para o nosso lado afim de que possamos com o auxílio dos nossos amigos viver juntos neste paiz que é a nossa pátria e no seio de toda a nossa família. Sobre isso aqui estamos todos de accôrdo; vinde vos unir a nós e garanto-vos que os Hollandezes vos farão os mesmos benefícios que nos fazem. Não tenhais a menor duvida: os Portuguezes terão que se escapulir: esses bandidos hão de desapparecer como o vento.
Sou christão e melhor do que vós: creio só em Christo, sem macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. Aprendi a religião christã e a pratico diariamente, se vós a tivésseis aprendido, não servirieis com os perfidos e perjuros portuguezes, que apezar das promessas do rei e do juramento feito por elle, depois de roubarem os bens dos Hollandezes, vêm atacar traiçoeiramente a esses e a nós mesmos; mas hão de receber o castigo de Deus.” 

 

Escrevia em catadupa, sentindo a fúria apoderar-se do seu corpo miúdo, por vezes batendo os dentes com ruidoso desdém, tentando mostrar ao primo que ele estava do lado errado, procurando amedrontá-lo, fazendo-o crer que Deus iria castigar os portugueses e por consequência os que a eles se aliaram. Parou; por momentos imaginou que se conectava com os espíritos da floresta e seus entes, mas estava demasiado desfocado dessa realidade por causa da raiva que preenchia o seu coração. Não desistindo de tentar convencer o primo, prosseguiu a carta:

 

“Vinde, portanto, para o nosso lado, e afastae-vos dos perjuros e traidores, que não poderão se sustentar aqui, donde brevemente os expulsaremos á força e também da Bahia. Deveis saber que os seus feitos no sul não têm a minima importância: quem tem mais gente fica senhor do campo.O Pontal foi entregue por traição, mas os Hollandezes o retomarão com valor, pois deveis reconhecer que o mar domina o Brasil. Têm vindo bastantes socorros da Hollanda para a nossa manutenção, e esperamos a toda hora uma grande armada extraordinariamente forte, á qual juntaremos os navios aqui existentes e então poremos mãos á obra. Em summa, os Hollandezes aproveitarão a occasião para se apossarem de todo o Brasil, pois o rei de Portugal se acha sem recursos ou forças.
Os da Bahia perderam seus navios na bahia de Tamandaré, e não têm meios de adquirirem outros. Não me falleis sobre a fraqueza dos Hollandezes. Estive e me eduquei no seu paiz. Existem lá navios, gente, dinheiro e tudo em tanta abundância como as estrellas no céo; e disso vem vindo para cá alguma cousa. (…) Não entendi a phrase em que dizeis “que elles terão compreendido a deslealdade que aqui se seguirá “. Elles puderam tomar ao Rei de Castella e de Portuguale conservar não só esse paiz mas também as Indias Orientaes a muitas outras terras, e agora não ireis julgar certamente que elles devam ceder tudo a esse novo Dom João. Abandonai, portanto, primo Camarão, esses perversos e perigosos Portugueses e vinde juntar-vos comnosco; garanto-vos que vos dareis bem. Formaremos uma força respeitável e expulsaremos esses trapaceiros e traidores. Mantenhamo-nos com os extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na nossa terra. Os bandidos portuguezes até agora nada têm conseguido senão por traição. Se o Capitão-mór fosse vencido no campo, na Varzea, parecia ter alguma importancia; mas surphrehender á noite uma casa, onde se encontra uma quantidade de pessoas desarmadas, não é cousa de que valha a pena gabar-se”.

 

Pedro Poty, cansado que estava, antes de terminar a missiva, pediu ao primo para que não mais lhe escrevesse, mostrando-lhe que a amizade entre ambos estava a definhar e que, caso este não cedesse e decidisse juntar-se aos holandeses, o que seria deveras improvável, não teriam mais condições de relacionamento.
“Não pude encontrar nas vossas cartas menção alguma sobre a maneira como fostes tratado em Itamaracá no dia 24 de setembro e como vos correu tudo por lá; mas parece que não quereis vir a mim como amigo. Se tivesseis vindo e ficado aqui no quartel junto comnosco, não se teria dado o que se deu. Nada conseguiremos por meio de cartas, portanto não mais me escrevais. Não quero receber taes cartas. Em summa, vos queixareis ainda desta guerra e estais illudido por essa corja de scelerados perjuros e perversos, que tanto tem seduzido a vós e a todos os nossos amigos e opprimido tão tyranniente os nossos. Adeus”.

 

 

Fotografia de José Manuel Simões

 

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos. 




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