Poemas III | Daniela Pace Devisate
SACERDÓCIO DA FLOR
eu atravessava os densos
bosques de nuvens
ficavam farrapos e fios de cabelo
presos nas árvores brancas
eu avançava em direção ao centro
à liturgia de celebração da vida
eram os tempos do sacerdócio da orquídea
eu comungava sua hóstia
escura e perfumada
bebia seu orvalho, seu suor de amor,
seu sacro licor,
seu sangue transparente …
e assim ressuscitava
***
JARDIM FECHADO
vem, entra
a porta do jardim
está destrancada
colhe um suspiro
ou um gemido
mastiga esse ai
cravando os dentes
em sua doce carnadura
até que o sumo escorra
empapando de vermelho
a tua camisa
então, despe a camisa
e caminha
mais ao fundo,
existem flores
que querem machucar-se
contra o teu peito nu
mas, cuidado com a noite :
quando ela desce
uma mão oculta
tranca o jardim
e joga fora a chave
(não vá ficar cativo
desse pequeno paraíso)
***
FESTA
cada fio
do teu claro cabelo
está prenhe de luz
disposto a partejar
mil sóis
Henri Matisse,
hoje,
inspirou Cupido:
no colo pálido daquela,
refulge uma opala
impressionista
uma criança
chora baixinho
na madrugada de mormaço
em que casais
dançam o minuete
uma senhora
já madura
ri alto
excitada pela visão
do belo anjo
que circula
exibindo as grandes asas
respingadas de vinho
há um odor pesado
de flores que envelhecem
e da cera das velas,
derretida
pela vidraça
agora chove
uma chuva leve
para brindar a aurora
***
FEBRE
flores cadentes
estrelas perfumadas
Rimbaud na mente
a última serpente
de um jardim sem éden
música transparente
induz ao desmaio dócil
na bruma, na brisa branca,
no leito de espuma,
na nuvem de bruços
deito e me cubro
com colcha de lírios
que pegam fogo
febril a fronha:
desfaleço e peço
água da fonte
para minha fronte
***
JUSTA
com um florete agudo
deflorei teu peito
e ajoelhei
para o banho de flores
a jorrar da ferida
sangue de rosas
na poça
onde o unicórnio bebe
na trégua
do galope alado
***
MUDRAS
é sêmen ou chuva
o que rega a noite?
as mãos abençoam
vertendo sândalo sagrado
sacerdotisa
de róseo manto
em transe extático
trânsito
travessia
e quatro mundos estremecem
ao ímpeto
do nosso amplexo
Daniela Pace Devisate nasceu em São Paulo, capital, em 20 de julho de 1971. Vive atualmente em Iguape. é professora de arte, poeta e artista visual. Teve poemas publicados em diversas revistas literárias digitais, como Germina, Mallarmargens, Literatura&Fechadura, entre outras. Em 2018, participou da coletânea da antologia Voos Literários, pela editora Essencial. No mesmo ano, participou de feiras de publicação independente, onde vendia seus livros artesanais de poesia, editados por sua editora cartonera, a Verso Livre. Em 2019, lançou Haikai Tupy, edição independente com tiragem minúscula. Em 2020, participou da plaquete As luas e suas variações, organizador Cláudio Daniel; participou da antologia Simpósio dxs poetxs bêbadxs; publicou um poema na revista portuguesa T¨lön, editada por Luiza Nilo Nunes e nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro individual, Tantos Quartos lunares, pela editora Urutau. Em 2021, saiu no livro As mulheres poetas na literatura brasileira, editora Arribaçã. Lançou um livro pela editora Kotter, Véus de Alethea.