Cultura

Embriaguez como máquina de guerra | Clécio Branco

Em um pequeno texto intitulado “Duas questões”, Deleuze traz a ideia de um agenciamento de conjunto-droga. Pensar a droga é tratar um território com duas correlações, de exterior e de interior. No caso relacionado com o interior, leva-se em consideração o que as “diversas espécies de drogas” podem causar no sistema-percepção; por outro lado, existem as questões médicas do uso e suas consequências externas: dependência, crises de abstinência, paranóias, violência doméstica etc.

 

            Em “Duas questões”, Deleuze ressalta em primeiro lugar a dessexualização da droga fruto do investimento direto no desejo-percepção, contrariando a posição psicanalítica da reminiscência: alguns interpretam como uma mudança na hierarquia de valores dos usuários; outros, com uma perspectiva mais psicanalítica, veem como um deslocamento do gozo sexual para um gozo farmacológico.

 

Deleuze procurou estabelecer uma ligação entre uma dimensão micro e macro da análise para compreender as causalidades interiores e exteriores do uso e abuso de drogas. Sugere que as diferenças entre as substâncias são secundárias e dizem respeito a velocidades. A noção de tempo e espaço ajuda a estabelecer uma relação entre a vivência do tempo no cotidiano e o efeito das drogas. A escolha das drogas tem relação maior com as velocidades e os graus em relação ao cotidiano: a escolha das drogas, dos modos de preparar para o uso, do ritual e da construção dos efeitos, das viagens e dos relatos.

 

Delinear um território conjunto-droga facilitará a compreensão das motivações internas e externas ao consumo, além de estabelecer uma relação entre vivência do tempo, território e o significado sociocultural de usar drogas em determinadas redes de amizades, classes, grupos de status e distintas relações de gênero.1

 

 As pesquisas antropológicas procuram separar os diversos tipos de drogas visando à identificação de seu uso. Qual é o sentido da busca de seus usuários? Carlos Castañeda parece ter ido mais longe nessa pesquisa. O guerreiro indígena procura “tocar a eternidade que o cerca” e atingir a “totalidade do ser”. Diz ele: “Sabe que neste momento você está cercado pela eternidade? E sabe que pode usar essa eternidade, se assim o desejar?”2

 

A psicanálise, segundo o pequeno texto de Deleuze, aborda, nesse caso da droga, a questão do desejo. A psicanálise mostra que “o desejo investe um sistema de traços mnésicos e de afetos”, que abre condições de possibilidades para a fuga da consciência e a produção de novas sensibilidades. Falando a partir da psicanálise, quando da primeira experiência de satisfação, essa deixa um traço mnésico no psiquismo. E, mais tarde, quando o estado de tensão pulsional reaparecer, esse traço mnésico será reativado; e a imagem/percepção de um objeto será reinvestida. Essa “primeira experiência” não precisa ter existido; é a forma de funcionamento de um constructo a partir do qual podemos elaborar uma reflexão teórica. Não precisa ter havido um objeto que se perdeu. O desejo não depende de tal objeto para se movimentar; só se relaciona com um sujeito subjetivo, que é dele mesmo que o experimentador quer evadir-se, para que o desejo possa fluir livremente, sem objeto algum. Despedimo-nos da psicanálise no momento em que essa fica presa à produção de fantasmas para a realização do desejo. Ou seja, logo que haja uma nova excitação, produzir-se-á, graças à ligação que foi estabelecida na primeira experiência de satisfação, uma moção psíquica que procurará reinvestir a imagem mnésica dessa percepção (e até mesmo invocá-la), isto é, estabelecer a situação da primeira satisfação: a essa moção, a psicanálise vai chamar desejo; o reaparecimento da percepção é a “realização do desejo”.

 

A procura do objeto no real é inteiramente orientada por essa relação com os sinais. É a articulação desses sinais que constitui aquele correlativo do desejo que é a fantasia. A dependência nasceria desse complexo sistema: marcas mnêmicas que produzem a ilusão de um objeto perdido, dependência física em relação à química, incapacidade do usuário em lidar com suas questões existenciais etc.

 

O experimentador em Castañeda não está em busca dos fantasmas, não é esse o propósito da experimentação, a busca de um objeto perdido, mas de uma faculdade perdida, da capacidade de tocar outros mundos, de experimentar outras realidades. No caso de Don Juan de Malta, trata-se da abertura à imaginação, e ele tinha consciência disso. Não é o caso de acreditar em uma alucinação, que seria outra coisa; trata-se de um saber consciente.

 

O saber imaginante é uma consciência que procura transcender-se, colocar-se em relação com um externo. Não para afirmar sua verdade – aí teríamos apenas um julgamento –, mas colocando seu conteúdo como existente, por meio de certa espessura do real que lhe sirva de representante. O personagem conceitual de Castañeda fala de dois mundos: o mundo tonal e o mundo nagual. São duas realidades distintas que atravessam os indivíduos.

 

O mundo tonal é o mundo das formas que inclui tudo o que é pensado. “Somos um sentimento, uma consciência encerrada ali”, toda forma de conhecimento se encontra no mundo tonal. O que o guerreiro busca na relação com a mescalina é romper as barreiras que mantêm a consciência confinada no interior das muralhas do mundo tonal. A existência do mundo tonal é que abre as condições de possibilidades de adentrar em outro mundo, o mundo naqual, do qual falaremos mais adiante. É que, para se sair do mundo, distanciar-se dele, é preciso ter entrado nele. Daí a importância desse duplo da consciência imaginante (tonal/nagual), que é constituir um mundo como totalidade material sensível e debruçar-se sobre a eternidade, imaginada como fora de alcance em relação a esse mundo tonal.

 

Sartre diz o seguinte: “Para que uma consciência possa imaginar, é preciso que, por sua própria natureza, possa escapar ao mundo, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo.” É preciso estar no mundo, mas, ao mesmo tempo, saber que a situação de estar no mundo esconde (um) outro mundo em que as relações de sujeito e objeto estão suspensas.

 

Embriaguez como máquina de guerra – conclusão

 

Don Juan afirmava que, para ver, era preciso necessariamente deter o mundo. Deter o mundo exprime perfeitamente determinados estados de consciência durante os quais a realidade da vida cotidiana é modificada, isso porque o fluxo das interpretações, normalmente contínuo, é interrompido por um conjunto de circunstâncias estranhas a esse fluxo.[3]

 

A consciência livre, “cuja natureza é ser consciência de alguma coisa, mas que por isso mesmo constitui-se ela própria diante do real e a cada instante o ultrapassa”, nessa capacidade de ultrapassar o real, não se reduz à consciência do cogito, mas é nele que se revela enquanto “estiver-no-mundo”, ou seja, vivendo sua relação com o real como situação.[4]

 

Na experiência indígena, a relação se estabelece na duplicidade tonal/nagual. O mundo dos homens é o tonal, mas o mundo dos demônios é o nagual. A finalidade da experimentação é levar a consciência à sua própria desmensura. É o elemento anômalo de que tratam Deleuze/Guattari no platô de número (10 – 1730, devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível).[5] O tipo de aliança que o feiticeiro trava com o anômalo requer prudência. As minúcias, os inúmeros detalhes do protocolo do feiticeiro mexicano têm essa única finalidade: ficar em uma situação constante de aliança com a potência anômala. Eles sempre “tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos ou dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se encontram (…) numa relação de aliança com o demônio (…) na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos.”[6] Para permanecer bordejando a fronteira entre o visível e o não visível, é necessário perceber o jogo de permanência. Estados de consciência com o mínimo de eu. Daí a necessidade de conservar alguns órgãos em um estado mínimo necessário para se andar no mundo.

 

A prudência deve levar em conta os fatos de se estar em relação com as forças de uma natureza desconhecida. Tal relação “implica uma primeira relação de aliança como um demônio”.[7] O que apavora é essa entrada sombria do desconhecido, o contágio de uma estranha peste. “Porque este demônio exerce a função de borda de uma matilha animal na qual o homem passa ou está em devir, por contágio”.[8]

 

Em outros termos, Freud já teorizava essa fronteira entre as forças anímicas e as forças somáticas, o que, para a Filosofia da Diferença, seria o campo das singularidades pré-individuais. “A instância que existe entre o caos absoluto e o mundo das ‘formas’.”[9] Não é o abismo indiferenciado, nem o “caos absoluto”, onde as determinações são impossíveis. Trata-se, sim, segundo entendemos, do inegendrado corpo sem órgãos, lugar da gênese em que se começa a criar um “ser”. “Primeiro momento da diferenciação da matéria.”[10]

 

O “outro mundo” não é exatamente outro (hétero), o feiticeiro sabe disso: “Você acha que há dois mundos para você… dois caminhos. Mas só existe um (…). O único mundo possível para você é o mundo dos homens, e esse mundo você não pode resolver largar. É um homem!”[11] Esse mundo de que nos fala Castañeda nos parece ser o mesmo “espaço entre vilarejos” de que nos dizem Deleuze/Guattari, anteriormente citado.

 

A prudência se destina aos experimentadores que, muitas vezes, agem de forma temerária e comprometem todo o experimento. Para continuar o experimento, é preciso preservar um fio para guiar os sentidos na escuridão do caos, assim como as crianças cantarolam ritornelos para espantar os maus espíritos e os fantasmas que vêem causam a desmesura em seus pensamentos. Uma medida territorial necessária que o ritornelo da criança garante em forma de estabilidade. Um território seguro para prosseguir com os experimentos infantis. “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha.”[12] É também o fio da aranha que a conduz para o centro ou em busca do alimento no ato de vibrar os fios que ela tece cuidadosamente.

 

Notas

 

[1] DELEUZE, G. “Duas questões”. Revista Saúde Loucura,  n. 3, São Paulo: Hucitec, p. 64.

 

[2]  CASTAÑEDA, C., op. cit., p. 16.

 

[3] Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mille Plateaux,  p. 173.

 

[4] SARTRE, J, P. O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação. Tradução de Duda Machado. São Paulo: Ática, 1996, pp. 240242.

 

[5] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux,  pp. 284-380.

 

[6] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 300.

 

[7] Idem, p. 301.

 

[8] Idem, ibidem.

 

[9] SCHÖPKE, R. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e o eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 362. O que a autora está falando “aqui de ‘mundo das formas ‘é o mundo dos indivíduos, dos corpos, o mundo físico, ao contrário do que diria Platão”, é o próprio mundo da matéria sensível.

 

[10] Idem, p. 363.

 

[11] CASTAÑEDA, C., op. cit., 195.

 

[12] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 382. Os experimentadores de chá de ayahuasca relatam as sensações de medo em suas mirações: “Tudo começou com uma sutil e agradável sensação percorrendo cada poro de minha pele. Foi então que apareceu uma profusão de linhas de força sobre a minha cabeça –  linhas que cortavam o espaço, dançando como feixes de  luz. Abri os olhos e a realidade exterior me pareceu normal, exceto por esse novo brilho que parecia emanar das coisas – minha percepção já não se interessava pelo mundo e sua solidez. Fechei os olhos e voltei a esse outro mundo fantasticamente iluminado. Como raios incandescentes, com cores que variavam entre violeta, azul e vermelho, eu era arrastado por uma enxurrada de  imagens, vindas não se sabia de onde, pois, com  certeza, não  faziam  parte  de  minhas  memórias. Nunca em minha vida eu havia vivenciado algo ao mesmo tempo tão  extraordinariamente fantástico e assustador. As  linhas agora se dirigiam a um  portal,  e  tudo  era  desenhado com uma precisão geométrica, por alguma  mão  invisível,  de  outra  inteligência,  sobrenatural. Tornei-me  um  observador consciente do meu Eu, que se dirigiu para o fim do portal. Um frio remexeu meu estômago: era o medo de fazer a travessia – o medo e a morte são figuras sempre presentes quando são encaradas. Finalmente, a expansão da consciência. Vi um cometa que se aproximava da Terra e ia explodir tudo. Fui lançado para fora, girando em outra dimensão,  como um planeta percorrendo uma órbita infinita em direção ao Sol. Por trás do fundo negro da minha percepção, havia essa luz tão intensa que fez do meu próprio corpo um campo irradiador de luz. Mas, assim, a morte passa como nesses momentos de frio na espinha.” (COSTA, Rafael Barroso Mendonça. “Ayahuasca: uma experiência estética”. Dissertação, Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2009, pp. 20-21).

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia. 

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