Engenharia
É preciso encontrar Deus na floresta.
Caminhar pela floresta
de olhos fechados,
até que Deus e a floresta
sejam um.
~*~
Mecânica
[para Lázara Papandrea]
Olhas demoradamente para teu cão
farto dos dias que para ti
foram anos, para ele talvez
uma eternidade.
Olhas sem pressa o ventre
gordo subir e descer
sob a mecânica impessoal
que lhe garante o justo fornecimento
do mesmo ar que respiras.
Nesse momento curto e comprido
esqueces as previsões climáticas
o vazamento de Hélio-3 do núcleo da Terra
as crianças assassinadas na Faixa de Gaza
– olhas sem pressa o teu cão.
Com ele aprendeste o cuidado,
a paciência, o amor. Amanhã,
a esta hora, ele estará morto.
E esqueces que, como os milênios
são anos e os anos são dias,
em breve nenhuma troca gasosa vital
restará neste mundo.
A ubíqua máquina de respirar
nunca terá existido. Agora, porém,
sem saber que vai morrer,
teu velho cão te olha de volta, agradecido.
Teu cão, impondo, entre ti e ele,
esta verdade simples e irrisória:
vocês respiram.
~*~
O abridor, a luz
Agora que estás (tu o sentes)
só,
se te revelam novas regras de não-destino.
Jamais terás uma adega,
mas comprarás um abridor.
Tu o usarás até que
o amarelo cristalino no copo
seja a única luz nos teus olhos.
A televisão será apenas
um elemento da decoração autoimposta.
Revistas e roupas espalhadas
negarão que há um vaso à porta
reclamando visitas.
Não serás nunca poeta,
mas amarás tuas filhas.
Agora que estás só,
pouco importa falte água:
só precisas de luz.
~*~
Santidade
Meus erros trago-os comigo.
Com eles me cubro
de fina e pegajosa escama,
entupo orelhas
visto meus pés
faço uma auréola para o prepúcio.
Então saio na rua
como quem acabou de tomar
banho depois de rezar muito.
Por onde passo
vejo fármacos e advogados.
Percebem o mau disfarce
e me oferecem ajuda,
sabem que estou nu.
No entanto, estou
completamente coberto.
A cidade ferve de gente correta
faz 36 graus
mal posso respirar.
Não fosse meu manto de erros,
estaria coberto de medo
e meu pai coberto de vergonha.
~*~
Homem à noite
Do quarto alugado
no terceiro andar
você vê a noite do país.
Sob a paz ociosa
muitas crianças
dormiram sem jantar
e, nesta rua mesmo,
uma mulher desempregada
apanha do marido.
Que mundo injusto, você diz,
e fecha a janela.
Ao amanhecer,
você e esse homem
tomarão o mesmo ônibus
no caminho do trabalho,
e a noite do país
pesará inteira
sobre teus olhos.
Então você lembrará:
não faz muito tempo,
alguma luz habitava
as noites do meu país.
Que sentimento estranho,
desejar a luz
que não mereceu
tua coragem.
~*~
Eleazar Carrias é um poeta brasileiro, nascido em 1977 no estado do Pará. Publicou os livros Regras de fuga (e-galáxia, 2017; Urutau, 2023), Máquina (Urutau, 2021), e Quatro gavetas (Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, 2009), vencedor do Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura. Com Máquina, foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2022 e finalista do 4º Prêmio Mix Literário. Em 2023, pela editora Fictícia, publicou no Instagram a plaquete Perder Partir.
00