Cultura

Manuel Pinheiro da Rocha: a pedra do Rocha | Maria Estela Guedes

Recorte da foto de Siavash Ghanbari na Unsplash

“Manuel Pinheiro da Rocha: a pedra do Rocha”

 

 

Comecemos pelo que diz respeito à cultura geral: alguns identificadores, ou símbolos, mais comuns das maçonarias, e em especial da Maçonaria da Pedra, para além da régua, do compasso e do esquadro, são a pedra, matéria bruta que precisa de ser trabalhada para se tornar obra de arte, a representar o próprio iniciando, aquele que terá de se polir pelo estudo para de Aprendiz alcançar o grau de Mestre; o número 3, que aparece em várias formas; e o triângulo, dentro do qual tanto pode figurar a letra G como o olho de Hórus, o olho que tudo vê, Deus. A pedra representa o maçon, “pedreiro”, em francês, aquele que trabalha a pedra, o construtor de catedrais. Aos maçons chamava-se, em tempos de perseguição, “pedreiros livres”.

 

Pinheiro da Rocha era tão bom alfaiate como fotógrafo. E muito moderno nas duas artes, como se nota no pioneirismo do seu recurso à publicidade. É precisamente o que vamos analisar: um curto filme publicitário que mandou realizar, para dar mais luz ao seu atelier de costura. Com fotografia e montagem de Manuel Santos, música de Carlos Calderon e som da Lisboa Filme, a obra, de cerca de 3 minutos de duração, era regularmente exibida nas salas de cinema. Ora o filme intitula-se “A Pedra?..”, e logo nos interrogamos: porquê pedra e não rocha, pinheiro, ou pinheiro da rocha, se ambos eram nome do alfaiate e mais facilmente o referenciariam em termos de publicidade? Mas não acaba aqui o distanciamento entre o nome simbólico e o nome real, que fechará em gáudio o filme: a pedra é posta em dúvida pelo ponto de interrogação, e a seguir, um pequeno lapso de ortografia rouba um ponto às reticências para que no total, somado o ponto do ponto de interrogação aos dois das reticências, sobrem três pontos. Em suma, modestamente declara-se ser a pedra, aquela pedra bruta que dificilmente se arranca da terra, é preciso às vezes dinamite para a soltar, e com isto já entrei na banda sonora e nas imagens iniciais do filme, pedra sem valor se o artista a não esculpir até nascer dela a graça feminina de uma escultura.

 

Voltando aos três pontos, eles rematam os nomes simbólicos, quer da designação de grau, das lojas, das alfaias ou do nome simbólico do maçon. Nem sempre os três pontos assumem a forma de triângulo, podem parecer reticências. Vamos supor, Loja Fortaleza.’., Venerável Mestre .’. ou Pedra.’. . A tripontuação é um elemento muito importante da escrita maçónica; copiemos da Internet um segmento:

 

“Bal = Balaústre; Bat = Bateria; C = Companheiro;

C do M = Câmara do Meio… Simb = Símbolo;

Sin = Sinal; Sin Cord = Sinal Cordial; Sin de Ord…”

 

Porém, a imagem do título é uma obra de arte mais extensa, que ultrapassa a pedra e a tripontuação. Só ela basta para nos situar no universo simbólico da Alvenaria (existe outra maçonaria, cujo símbolo central, ou cuja matéria-prima não é a pedra, sim a madeira, a Maçonaria Florestal) . Onde está a obra de arte? Ele optou por um tipo de letra que permitiu aquele «A», em cima da pedra, em forma de triângulo. Na sequência, na cena em que vemos as pedras já cortadas, elas estão alinhadas em forma de triângulos, o vértice para cima.  

 

Então perguntamos: teria sido maçon o nosso costureiro/fotógrafo? A forma como o filme nos apresenta os símbolos fundamentais é uma obra de alvenaria, talvez aquela que apresentou para ser iniciado ou passar de um grau a outro. Um trabalho de casa, em linguagem pagã. O maçon estuda muito, a subida de grau é penosa, ele tem de chegar a Mestre e é aliás tratado por Mestre, mesmo sem consciência do véu de sagrado que recobre o termo.  Conto um caso do nosso quotidiano. Ed Guimarães, o fotógrafo de São Paulo que foi companheiro de Herberto Helder nas reportagens em Angola, e que passou uma noite, ainda garoto, no estúdio de Pinheiro da Rocha, a vê-lo revelar um painel com uma ramagem, usando técnica novíssima, que permitia a imagem sair em vários tons de sépia, ou cinza, o Ed declarou, sobre Pinheiro da Rocha, no Facebook: “Era um Mestre!” Sim, é um grande artista plástico.

 

Pinheiro da Rocha foi um iniciado, e, em período de maior folga, até podemos consumir alguns meses de investigação para averiguarmos em que Loja foi iniciado. No Porto, tal não será muito difícil. Se foi no estrangeiro, no curso das viagens que fazia para se inteirar do rumo da moda, ou participar em exposições de fotografia, é mais difícil. De qualquer forma, a pequena obra de arte maçónica “A Pedra?..” não deixa margem para hesitações. Que Bom Primo’.’ ou Bom Irmão.’. deseja opor à nossa uma diferente hipótese? 

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O vídeo “A Pedra?..” faz parte do espólio de Pinheiro da Rocha, conservado no CPF – Centro Português de Fotografia, Porto. Foi exibido no CPF em “Pinheiro da Rocha – 130 Anos do nascimento”, exposição aberta de Novembro de 2023 a Fevereiro de 2024. 

fotografia de Maria Estela Guedes

Maria Estela Guedes (1947/-) tem umas centenas de títulos publicados, em Portugal e no estrangeiro, entre livros, ensaios e crónicas, sobre literatura e outras artes. Figura em diversas obras coletivas, entre as quais salienta Todos os Saramagos (2022) e Contos que Fernando Pessoa não escreveu (2019). Foram levados à cena dois trabalhos seus, O lagarto do âmbar, na Fund. Calouste Gulbenkian, dirigido por Alberto Lopes, e A Boba, no Teatro Experimental de Cascais, dirigido por Carlos Avilez. Também tem participado em eventos de artes plásticas, o último dos quais em 2021, no Museu de Arte Contemporânea de Lisboa, no âmbito das comemorações do Centenário de Ernesto de Sousa. Dirige o site e a Revista Triplov, em triplov.com. Considera suas obras de referência: Herberto Helder, Poeta obscuro, Lisboa, 1979 e A obra ao rubro de Herberto Helder, São Paulo, 2010. Livros publicados mais recentemente: Esta noite dormimos em Tânger e Conversas com Federico García Lorca, ambos de poesia e ambos publicados pela Editora Urutau, Pontevedra/São Paulo, em 2021 e 2022.

 

 

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