Cultura

Poemas | Ângelo Alves

1.

 

Mexeu comigo

A luz tão azul,

O calmo rio.

Mexeu comigo

O álamo esguio,

O tronco frio.

Mexeu comigo

O monte fendido,

O sexo rendido.

 

2.

 

Se eu amar, se houver amor,

E o amor por vezes é um rio veloz

Ficando aquém da razão de florir,

Canto, como se fossem mar

Até as águas que não foram foz.

 

3.

 

A noite longe de ti, mãe.

Longe do teu colo e do brilho.

Tenho o quarto, ninguém.

Tenho o rio, ninguém.

Olho ao redor, ninguém.

Estou só, longe de ti, mãe.

Apenas o coração ainda faz

Com que eu chame retiro

A este quartinho e ao rio.

Oh, o peito perseguido pela dor!

A noite longe de ti, mãe.

E jazem o quartinho e o rio.

E jaz o sonho latente.

Jaz tudo em mim e ao redor.

O teu passo estugado persigo

Na terra dura do trilho, mãe.

Então começa, no amplo silêncio, 

Do menino o amplo sopor.

Ao teu colo, me retiro,

Em paz, do mundo, onde

Ainda nada sei sobre o amor.

 

4.

 

Os pássaros, gelados e mortos,

Voaram com o meu coração.

Saciados, cantam na caleira.

Acabaram de erguer-se do chão.

 

Os pássaros, gelados e mortos,

Voaram, ergueram-se do chão.

Correm o côncavo da caleira.

Cantam agora no meu coração.

 

5.

 

Fui o primeiro a esperar-te em vão,

De rosto caído para as lágrimas, em martírio.

Fui o primeiro a amar-te como se fosses mosto.

E sei que serei o último a esperar-te 

E que nunca vou esquecer-te.

Ainda que o céu se abata sobre cada círio.

Ainda que as lágrimas tenham perdido o rosto.

 

6.

 

O rosto, lã, nuvem

De rastros, azul sereno.

O rosto, olho, avelã,

Terra, passos, o vento.

 

7.

 

Foi um sonho a ribeira cristalina,

O distinto acolhimento das ipomeias,

A sombra do tronco dolente

À superfície do desejo das águas,

As pedras avolumando-se no leito,

Os nastúrcios feitos de sol e áscuas,

E a ponte voltada para o rosto da corrente.

Hoje, na foz soez, sem poemas,

Fenecem, abúlicos e sem cor, os patos,

E um idoso não encontra seu rosto

Nem eu encontro em seu rosto o espanto.

Tudo é tão real que nada se imagina.

Tudo é nefando e não é de ser apenas iminência.

Não haveria talvez, mesmo se aqui houvesse poemas. 

E eu não queria acordar em pranto 

Para a clarividência deste tempo.

 

8.

 

Que rio é este na lezíria

Que diz às aves

Que sejam elas águas?

Que sol é este no cume

Que diz às aves

Que sejam elas lume?

Que azul é este em mim

Que diz às aves

Que elas sejam sem fim?

 

9.

 

Eu sei que nada será dito com enlevo,

Sem que o arrebol caia no lagamar.

Sem que a lágrima azul eleve a flor do trevo.

10.

 

Começa agora a mágoa.

No canto do olho direito,

A iminência do rio.

Como pode tanto,

Ir tão longe, uma lágrima?

 

11.

 

Esplêndido arroubamento é o amor,

Estado em que não se teme o futuro.

E a vida é o caminho onde o amor

É a luz que nos guia ao tempo mais puro.

 

 

Ângelo Alves nasceu em 1978, em Cantanhede. Viveu sempre na Póvoa da Lomba, localidade vinícola pertencente ao concelho referido anteriormente. É professor de Física e Química e poeta. Publicou, entre outros livros de poesia, O Leve Odor dos Noveleiros, Temas Originais, 2016, e Um Grande Sol Aproxima-se a Nado, Temas Originais, 2018. Escreve amiúde poemas no blog, de pendor mais científico, De Rerum Natura.

Qual é a sua reação?

Gostei
2
Adorei
10
Sem certezas
3

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura