

I.
Podes ver o meu fundo transparente
e nele contar uma mão cheia de estrelas
é isso que eu faço à noite para dormir.
Conto-as diretamente do meu fundo
porque todas elas cabem em mim,
e como a conta é infinita sou infinito também,
Em algum sítio qualquer continuarei
E depois de mim outros poços, maiores ainda
como os da Lua e Mercúrio. Irmãos poços
de cores várias e poços duplos
inteiros e plurais como o universo.
Podes ver o meu fundo e nele o teu reflexo,
dou-te a transparência das estrelas
e um fundo perfeito onde te podes misturar:
Dorme por isso agora irmão
recheado de espuma e sonhos como uma estrela
com uma vontade enorme de rir e de criar
Para lembrar Agostinho: (Criar Criar Criar!)
É nossa matéria também.
Tudo se entrelaçar é do que é feita a vida
mas partir é ser inteiro também,
Dorme agora irmão-poço, e para te lembrar o que aqui viemos fazer
põe a mão segura sobre o coração
ouve-o bater em tudo
plural, nas minhas paredes, no meu fundo
tens duas mãos e um coração,
e o grande milagre do mundo
Somos parecidos sim meu irmão
(feitos de rimas pobres e complexas)
Mas ao contrário de mim tu não tens fundo
e, futurado, nenhum círculo te limita.
És livre por isso ainda mais do que eu,
também em ti todas as estrelas cabem inteiras,
e nelas o amor humano, à escala maior, nos continua
O amor humano e divino se vem deitar no teu fundo.
Somos parecidos ainda irmão-poço
E estamos muito perto
Conta comigo as estrelas do teu fundo.
II.
Se em mim cair um barco de papel
não irá longe, apenas uma repetida viagem circular
mas se o puseres na beira do mar
ele seguirá a sua viagem, poderá chegar,
ainda que empapado a uma ilha ou uma cidade estrangeira.
E se nele estiver escrito: “Gosto de te ver sorrir”
Ele poderá chegar aos pés de uma menina na praia,
e poderá ir ao fundo se esse for o seu destino.
Mas poderá isso dar a ideia de fazer também um barco maior,
de madeira, bem calafetado e resistente
E levar nele também um poema ainda maior.
Mas haverá algo maior que ver uma criança feliz?
III.
Conheci dias melhores,
a meio da viagem, uma aldeia inteira e alguns que vinham doutras aldeias perto,
servia impessoalmente como a chuva ou o vento, antigo como um moinho.
Passa agora um caminho que já poucos usam, um girassol por perto e às vezes um cão.
Ouço barulho de uma escola que teve também dias melhores
Uma professora e um contínuo velho, as crianças todas nas cidades: França, Suíça, Canadá,
e as que estão não chegam, todas juntas de mão dada
para abraçarem por inteiro a cerejeira antiga que ocupa o recreio
Tenho ainda os pássaros felizmente a sede não acaba:
Não acaba a água, nem os poços, nem a vida.
Não acaba o meu amor por ti
Que é inteiro e humano e por isso verdadeiro.


Fotografia de Nuno Brito
Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É Professor Visitante no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York e autor dos livros: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022).