Há muitas curiosidades a respeito do português nas várias regiões em que é falado. Uma boa ideia dessas curiosidades está na coletânea Estudos linguísticos crioulos – reedição de artigos publicados no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, com introdução e notas de Jorge Morais-Barbosa (Lisboa: Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1967).
Só para exemplificar: na página 62 dessa antologia, que corresponde às páginas 167 e 168 do Boletim Os dialectos românicos ou neolatinos na África, Ásia e América, de autoria de Adolpho Coelho, nela integralmente reproduzido, há a informação de que, no português de Macau, o plural se forma pela repetição: criança criança (“crianças”), sium sium (“senhores”), amigo amigo (“amigos”). Os tempos verbais se formam com um advérbio seguido do infinitivo: o futuro, com logo; o passado, com já: logo ficá (“ficará”), já principiá (“principiou”). O presente se exprime com o infinitivo ou com tá (“estar”), em todas as pessoas: tá fazê (“eu faço, tu fazes, ele faz”), tá andá (“ando”), tá falá “(falo”) entre outras curiosidades deliciosas.
Paul Teyssier, no livro História da língua portuguesa (tradução de Celso Cunha. 4.ed. Lisboa: Sá da Costa, 1990, p.96) cita uma construção passiva curiosíssima, típica e popular da gente humilde de Luanda, Angola, extraída de um estudo de Michel Laban (L’oeuvre littéraire de Luandino Vieira, tese de doutorado, Paris: Sorbonne, 1959, datilografada): O João, lhe bateram na mãe dele. João é o paciente; mãe é o agente. No português lisboeta ou carioca, essa frase se traduz mais ou menos assim: João foi surrado pela mãe. Mudei bater para surrar porque o verbo bater com complemento introduzido pela preposição em (transitivo indireto) não poderia ter equivalente passivo adequado.
No meu livro Estudos sobre o pronome (Brasília: Thesaurus, 2016, p. 36-37) cito o poema “Mudança de tratamento”, de Bastos Tigre, em que o poeta dialoga com a mulher amada primeiro usando Vossa Excelência, depois a senhora, depois você e, finalmente, tu, do mais formal para o menos formal, dando a impressão de que, no dialeto carioca, o pronome tu, à época da publicação do livro de onde foi extraído o poema (Poesias humorísticas. Rio de Janeiro: Flores & Manos, 1933), era mais familiar e mais íntimo do que o pronome você. Se essa diferença entre tu e você realmente existiu, fica difícil determinar por quê e quando essa diferença deixou de existir.
Curiosa também é a concordância que teria existido no português seiscentista do particípio com o objeto direto, existente no francês atual, como, por exemplo, na frase: J’ai déchiré la lettre que j’ai écrite (“Rasguei a carta que escrevi”, em que se observa a concordância do particípio écrite com o feminino lettre, anteriormente citado; o particípio déchiré não concorda com o objeto, porque este vem depois do verbo).
Assim, em Os Lusíadas, V, 47, lê-se: “Depois de ter pisada longamente / Cos delicados pés a areia ardente”. O particípio pisada está concordando em gênero e número com o objeto direto areia ardente. Se essa concordância realmente existiu, certamente não terá sido influência do francês, porque, ao contrário do exemplo francês citado, o particípio em Os Lusíadas concorda com o objeto que vem depois.
Não sei o quanto já sabemos sobre a nossa língua, mas sei que há muito ainda a aprender sobre ela…
José Augusto Carvalho, Mestre em Linguística pela Unicamp e Doutor em Letras pela USP, é autor de várias obras sobre língua portuguesa, entre as quais: Gramática Superior da Língua Portuguesa, Estudos sobre o Pronome, Pequeno Manual de Pontuação, Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa, todas pela Thesaurus, de Brasília.